O especialista em
Magrebe do diário EL MUNDO, Ignacio Cembrero, escreve sobre a influência das vagas de
imigrantes ilegais que chegam a território espanhol nas relações entre Espanha
e Marrocos.
- Rabat teve um grande 'descuido', mas é provável que restabeleça com celeridade os controlos
- Não pode inimizar-se com o Governo espanhol, seu único amigo na vizinhança
Quando, no início do
ano, se acentuou a pressão
migratória sobre Ceuta e Melilla o porta-voz do Governo
marroquino, Mustafa el Khalfi, explicou que o facto era
atribuível à blindagem por Marrocos das suas costas. Assegurou que o número
de imigrantes irregulares que haviam chegado às costas andaluzas procedentes de
Marrocos tinha, em poucos anos, caído cerca de 95%.
Outros membros do
Executivo marroquino compararam com o caso da Líbia, onde a chamada
"primavera árabe" foi esmagada fazendo cair o país no caos – no
primeiro semestre do ano zarparam das suas costas 64 000 imigrantes rumo a Itália
-, enquanto em Marrocos o rei Mohamed VI tinha empreendido reformas sem desestabilizar
al país.
Um só dia, terça-feira
12 de agosto, deixou cair por terra essas declarações. Procedentes de Marrocos,
920
imigrantes alcançaram as costas andaluzas a bordo de 94 embarcações, na sua
maioria em lanchas insufláveis, e outros
80 conseguiram saltar a barreira
de Melilla. Nos últimos dez dias entraram em Espanha 1 388 imigrantes
irregulares.
Hicham Racihid, fundador
de uma associação marroquina de ajuda aos imigrantes (GADEM), recorda, para
explicar o fenómeno, que "o verão é propenso às travessias" e que os
"imigrantes temem o que lhes possa suceder quando, em dezembro, estiver
concluída a operação de regularização" posta em marcha por Rabat.
Vinte e quatro horas
após o desembarque de terça-feira, o ministro do Interior marroquino, Mohamed
Hasad, explicou, no entanto, que o que aconteceu não de deveu ao bom clima de
verão, mas a "disfunções
que foram acontecendo." Não aclarando, no entanto, em que consistiam.
Assegurou que "serão corrigidas muito rapidamente", sem explicar
como.
As disfunções são tais
que num único dia chegaram a Andaluzia e Melilla, vindos de Marrocos, dez vezes
mais imigrantes irregulares dos que, em 2013, atingiram as costas das ilhas
Canárias provenientes da Mauritânia, a outra grande frente de imigração da
Espanha. Foram 104.
"Quando partem tantas
embarcações, a partir de tantos pontos diferentes e durante tantas horas num mesmo
dia, não pode tratar-se de meras disfunções; há algo mais", assegura uma fonte
que colabora com as forças de segurança espanholas.
Há que recuar a 2001
para encontrar uma vaga de imigração de proporções semelhantes, ainda que
menor. No penúltimo fim-de-semana de agosto chegaram às costas da Andaluzia
cerca de 800 imigrantes, na sua maioria marroquinos. O então ministro de
Negócios Estrangeiros, Josep Piqué, convocou
o embaixador de Marrocos para protestar, mas agora o ministério do Interior
optou pelo apaziguamento. Ontem, destacou os "estreitos
contactos” com Rabat.
As autoridades marroquinas
tiveram, no entanto, nestes últimos tempos outros gestos pouco amigáveis para
com o seu vizinho espanhol. Terça-feira recusaram, pela primeira vez desde há meses,
readmitir os subsaharianos empoleirados na barreira Melilla. Após várias horas permitiu-se-lhes
entrar na cidade autónoma.
Há um mês o rei Mohamed
VI recebeu Felipe VI em
Rabat anunciando-lhe que tinha firmado
o acordo de pesca com a União Europeia, pendente de rúbrica desde fevereiro,
de que beneficiariam 126 barcos, na sua maioria espanhóis. Mas o acordo
continua sem entrar em vigor e os últimos rumores apontam que assim continuará
até setembro. Há armadores que já pagaram a licença.
A visita
do monarca espanhol a Rabat mostrou a excelente relação bilateral entre
ambos os países. Tão boa que, com discrição, as
Forças Armadas de Marrocos levantam ao redor de Melilla a sua própria barreira,
que se vem juntar à dupla rede do lado espanhol, para proteger da imigração uma
cidade que reivindicam como sua.
De todos os seus vizinhos,
o único com que Marrocos tem agora uma relação cordial é Espanha. Com a Argélia
continua guerreando, com a Mauritânia a relação é tensa como o é também com a França,
desde que, em fevereiro, a
polícia judiciária se apresentou na residência do embaixador marroquino em Paris
para tentar levar ante um juiz Abdellatif Hammouchi, diretor da DST (policía
política marroquina). O magistrado queria-o interrogar sobre alegadas torturas
que teria infligido.
A relação franco-marroquina
passa por um momento tão mau que Rabat já deu instruções verbais aos seus
ministros e altos funcionários para que não solicitem os vistos Schengen, para
viajar a Europa, nos consulados de França, como era hábito fazê-lo, mas que o
façam nos de Espanha.
Vai arriscar-se agora
Marrocos a enfrentar-se com o único amigo que lhe resta na vizinhança? Rabat
tem alguns motivos de insatisfação com Espanha, que não manifestou
publicamente. Teme perder a sua influência sobre os muçulmanos em Melilla. Pela
primeira vez, não se orou por Mohamed VI, em julho, no fim do Ramadão. O PP, que governa
Melilla, e a Coalición por Melilla - o partido da oposição muçulmana -, selaram
um pacto social que mantém o Islão local marroquino.
Num país como Marrocos,
onde a Justiça não é independente, torna-se difícil compreender que um juiz de
Melilla tenha também aberto um inquérito [documento
PDF] este mês para averiguar se, em 18 de junho, a Guarda Civil e as Forças
Auxiliares (anti distúrbios) marroquinas se tenham excedido contra os
imigrantes. O juiz enviou uma carta rogatória a Rabat para identificar um
agente que é visto num vídeo a bater num sub-sahariano [ver
fotos].
Por muito que tudo
isso desagrade a Rabat, são pecadilhos em comparação com os benefícios que pode
extrair da relação com Espanha, seu único amigo no tópico que mais lhe importa
- o Sahara Ocidental - agora reativado com um novo périplo pela região de
Christopher Ross, o enviado do Secretário-Geral das Nações Unidas. "90% da
relação [com a Espanha], passa pelo Sahara", disse mais de uma vez
Taieb Fassi-Fihri, conselheiro de Mohamed VI. Daí que, provavelmente, as
disfunções imigratórias sejam sanadas em breve.
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