sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Espanha, único amigo de Marrocos





O especialista em Magrebe do diário EL MUNDO, Ignacio Cembrero, escreve sobre a influência das vagas de imigrantes ilegais que chegam a território espanhol nas relações entre Espanha e Marrocos.
  
  • Rabat teve um grande 'descuido', mas é provável que restabeleça com celeridade os controlos
  • Não pode inimizar-se com o Governo espanhol, seu único amigo na vizinhança


Quando, no início do ano, se acentuou a pressão migratória sobre Ceuta e Melilla o porta-voz do Governo marroquino, Mustafa el Khalfi, explicou que o facto era atribuível à blindagem por Marrocos das suas costas. Assegurou que o número de imigrantes irregulares que haviam chegado às costas andaluzas procedentes de Marrocos tinha, em poucos anos, caído cerca de 95%.

Outros membros do Executivo marroquino compararam com o caso da Líbia, onde a chamada "primavera árabe" foi esmagada fazendo cair o país no caos – no primeiro semestre do ano zarparam das suas costas 64 000 imigrantes rumo a Itália -, enquanto em Marrocos o rei Mohamed VI tinha empreendido reformas sem desestabilizar al país.

Um só dia, terça-feira 12 de agosto, deixou cair por terra essas declarações. Procedentes de Marrocos, 920 imigrantes alcançaram as costas andaluzas a bordo de 94 embarcações, na sua maioria em lanchas insufláveis, e outros 80 conseguiram saltar a barreira de Melilla. Nos últimos dez dias entraram em Espanha 1 388 imigrantes irregulares.

Hicham Racihid, fundador de uma associação marroquina de ajuda aos imigrantes (GADEM), recorda, para explicar o fenómeno, que "o verão é propenso às travessias" e que os "imigrantes temem o que lhes possa suceder quando, em dezembro, estiver concluída a operação de regularização" posta em marcha por Rabat.

Vinte e quatro horas após o desembarque de terça-feira, o ministro do Interior marroquino, Mohamed Hasad, explicou, no entanto, que o que aconteceu não de deveu ao bom clima de verão, mas a "disfunções que foram acontecendo." Não aclarando, no entanto, em que consistiam. Assegurou que "serão corrigidas muito rapidamente", sem explicar como.

As disfunções são tais que num único dia chegaram a Andaluzia e Melilla, vindos de Marrocos, dez vezes mais imigrantes irregulares dos que, em 2013, atingiram as costas das ilhas Canárias provenientes da Mauritânia, a outra grande frente de imigração da Espanha. Foram 104.



"Quando partem tantas embarcações, a partir de tantos pontos diferentes e durante tantas horas num mesmo dia, não pode tratar-se de meras disfunções; há algo mais", assegura uma fonte que colabora com as forças de segurança espanholas.

Há que recuar a 2001 para encontrar uma vaga de imigração de proporções semelhantes, ainda que menor. No penúltimo fim-de-semana de agosto chegaram às costas da Andaluzia cerca de 800 imigrantes, na sua maioria marroquinos. O então ministro de Negócios Estrangeiros, Josep Piqué, convocou o embaixador de Marrocos para protestar, mas agora o ministério do Interior optou pelo apaziguamento. Ontem, destacou os "estreitos contactos” com Rabat.

As autoridades marroquinas tiveram, no entanto, nestes últimos tempos outros gestos pouco amigáveis para com o seu vizinho espanhol. Terça-feira recusaram, pela primeira vez desde há meses, readmitir os subsaharianos empoleirados na barreira Melilla. Após várias horas permitiu-se-lhes entrar na cidade autónoma.

Há um mês o rei Mohamed VI recebeu Felipe VI em Rabat anunciando-lhe que tinha firmado o acordo de pesca com a União Europeia, pendente de rúbrica desde fevereiro, de que beneficiariam 126 barcos, na sua maioria espanhóis. Mas o acordo continua sem entrar em vigor e os últimos rumores apontam que assim continuará até setembro. Há armadores que já pagaram a licença.

A visita do monarca espanhol a Rabat mostrou a excelente relação bilateral entre ambos os países. Tão boa que, com discrição, as Forças Armadas de Marrocos levantam ao redor de Melilla a sua própria barreira, que se vem juntar à dupla rede do lado espanhol, para proteger da imigração uma cidade que reivindicam como sua.

De todos os seus vizinhos, o único com que Marrocos tem agora uma relação cordial é Espanha. Com a Argélia continua guerreando, com a Mauritânia a relação é tensa como o é também com a França, desde que, em fevereiro, a polícia judiciária se apresentou na residência do embaixador marroquino em Paris para tentar levar ante um juiz Abdellatif Hammouchi, diretor da DST (policía política marroquina). O magistrado queria-o interrogar sobre alegadas torturas que teria infligido.

A relação franco-marroquina passa por um momento tão mau que Rabat já deu instruções verbais aos seus ministros e altos funcionários para que não solicitem os vistos Schengen, para viajar a Europa, nos consulados de França, como era hábito fazê-lo, mas que o façam nos de Espanha.
Vai arriscar-se agora Marrocos a enfrentar-se com o único amigo que lhe resta na vizinhança? Rabat tem alguns motivos de insatisfação com Espanha, que não manifestou publicamente. Teme perder a sua influência sobre os muçulmanos em Melilla. Pela primeira vez, não se orou por Mohamed VI, em julho, no fim do Ramadão. O PP, que governa Melilla, e a Coalición por Melilla - o partido da oposição muçulmana -, selaram um pacto social que mantém o Islão local marroquino.

Num país como Marrocos, onde a Justiça não é independente, torna-se difícil compreender que um juiz de Melilla tenha também aberto um inquérito [documento PDF] este mês para averiguar se, em 18 de junho, a Guarda Civil e as Forças Auxiliares (anti distúrbios) marroquinas se tenham excedido contra os imigrantes. O juiz enviou uma carta rogatória a Rabat para identificar um agente que é visto num vídeo a bater num sub-sahariano [ver fotos].

Por muito que tudo isso desagrade a Rabat, são pecadilhos em comparação com os benefícios que pode extrair da relação com Espanha, seu único amigo no tópico que mais lhe importa - o Sahara Ocidental - agora reativado com um novo périplo pela região de Christopher Ross, o enviado do Secretário-Geral das Nações Unidas. "90% da relação [com a Espanha], passa pelo Sahara", disse mais de uma vez Taieb Fassi-Fihri, conselheiro de Mohamed VI. Daí que, provavelmente, as disfunções imigratórias sejam sanadas em breve.


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