Autores: Luna Gámez e José António Bautista,
FOLHA DE S. PAULO
01/10/2014
No início de setembro uma notícia
interrompeu o pequeno-almoço do embaixador marroquino no Brasil e, possivelmente,
do próprio Mohamed VI, rei de Marrocos: todos os partidos da Câmara dos Deputados
do Brasil, incluindo o oficioso Partido dos Trabalhadores (PT), pediram à presidenta
Dilma Rousseff que reconheça a República Saharaui, o
último território africano pendente de descolonização, atualmente ocupado
por Marrocos de forma ilegal, segundo as Nações Unidas.
A relevância deste acontecimento reside
no facto de África constituir um ponto estratégico das relações exteriores do
Brasil, país que já conta com mais embaixadas nesse continente
do que o Reino Unido.
Desde há 39 anos o conflito do Sahara
Ocidental, tão desconhecido como decisivo, mantém os países do Magrebe
divididos e faz com que Marrocos seja o único país africano que não pertence à União
Africana.
Segundo o ACNUR, existem mais de 165 00 refugiados saharauis na região argelina de Tindouf, contígua à fronteira com o Sahara Ocidental |
A petição unânime dos deputados
brasileiros põe entre a espada e a parede o governo de Rousseff em plena corrida
eleitoral: se reconhece o estatuto diplomático da República Saharaui, receberá
o beneplácito dos 54 países que compõem o continente africano… De todos menos
de um: Marrocos.
Se não o fizer, o Brasil evita um
confronto diplomático com Marrocos e continuará, juntamente com o Chile e a Argentina,
a integrar o pequeno grupo de países da América Latina que não reconhecem a
República Saharaui.
Mas, por que é tão importante para o Brasil
manter uma boa relação com Marrocos?
A resposta é simples: o Sahara Ocidental
alberga as maiores reservas mundiais de fosfatos, matéria-prima essencial à
fabricação de fertilizantes agrícolas.
O Brasil, onde o setor
agrícola representa quase 6% do PIB, aumentou, entre 2003 e 2013, em 930,6% as suas
importações de fosfatos procedentes do Sahara Ocidental, segundo dados da
Organização Mundial do Comércio.
O pujante agronegócio brasileiro necessita
cada vez mais fertilizantes e Marrocos controla as minas de fosfatos saharauis,
pelo que os diplomatas brasileiros temem que o reconhecimento se traduza em perdas.
“Há consenso no Parlamento, o que se
pede é que o Brasil estabeleça relações com o Sahara tal como fez com a Palestina
em 2010”, afirma Mohamed Zrug, representante da Frente Polisario no Brasil.
O diplomata saharaui explica que “não
há motivos de peso para que o Brasil não estabeleça relações” e cita o exemplo
do México, que mantém uma relação cordial com Marrocos ao mesmo tempo que reconhece
a República saharaui.
No Brasil, o setor agrícola
representa quase 6% do PIB. Foto: Eduardo Knapp/Folhapress
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Para Zrug, o reconhecimento é importante
porque “pressiona Marrocos para a mesa da negociação” para realizar o referendo
de autodeterminação.
A antiga colónia espanhola do Sahara
Ocidental foi ocupada por Marrocos em 1975. Após 16 anos de guerra entre Marrocos
e os saharauis, organizados na Frente Polisario, em 1991 as partes chegaram a
um acordo debaixo do chapéu da ONU para negociar um referendo de autodeterminação
em que se decidiria o futuro do território.
Desde então, as autoridades marroquinas
têm colocado obstáculos para impedir esta votação, apesar do próprio Conselho
de Segurança manter mais de 500 efetivos no terreno para organizar o referendo.
Os deputados brasileiros também pediram
a Dilma Rousseff que o governo brasileiro se junto aos países que pedem que a
ONU observe a situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental.
Desde há vários anos, organizações da
importância da Amnistia Internacional e a Human Rights Watch denunciam a “sistemática
violação dos direitos humanos no Sahara Ocidental por parte das autoridades
marroquinas”.
“A pressão é muito forte por parte de
Marrocos”, declara Alfredo Sirkis, deputado da bancada socialista e promotor da
petição parlamentar.
Sirkis explica que o governo brasileiro
nunca se pronunciou acerca da violação de direitos humanos no território e
acrescenta que o “Brasil deveria dar o reconhecimento porque é justo, independentemente
do que façam outros países”.
Os diplomatas marroquinos no Brasil não
acederam a compartilhar a sua opinião com os autores deste artigo quanto à proposta
dos deputados brasileiros.
O pujante agronegócio brasileiro necessita
cada vez mais fertilizantes e Marrocos controla as minas de fosfatos saharauis.
Foto: Juca Varella/Folhapress.
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“Ainda que todavia não reconheça a
República Saharaui, o Brasil defende uma solução justa, pacífica e mutuamente
aceitável para o território baseada no princípio da autodeterminação”. As palavras
são de um diplomata brasileiro que acedeu conversar preservando o anonimato.
Esta fonte explica que em 2013 Brasil
enviou 120 000 dólares e quase 2000 toneladas de arroz para os campos de
refugiados saharauis na Argélia. Acrescenta que, desde que Mohamed VI acedeu ao
trono as relações entre Brasil e Marrocos intensificaram-se, especialmente em
matéria de cooperação agrícola.
Seguindo os passos do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, a presidenta e economista Dilma Rousseff falou em 2012
de construir uma relação com África “livre de todas as práticas coloniais que
devastaram o meu continente e o continente africano”.
Brasil, o país do mundo onde vivem mais
descendentes de origem africana, já
tomou partido em 2002 a favor do referendo de autodeterminação em Timor-Leste,
antiga colónia portuguesa posteriormente invadida pela Indonésia. Desta vez, o
Brasil deverá posicionar-se em relação ao último território africano pendente de
descolonização.
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