quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Marrocos enfermo com o Sahara Ocidental


Rei Mohamed VI de Marrocos

Desde 3 de outubro de 2014, um misterioso hacker está publicando centenas de documentos. Esta abundante literatura posta à disposição de qualquer internauta confirma a centralidade da questão do Sahara Ocidental na esfera da política marroquina. A prioridade acordada a este dossier foi reafirmada no discurso do rei, pronunciado a 6 de novembro 2014, por ocasião do 39.º aniversário da «marcha verde».

O Sahara Ocidental constitui uma verdadeira obsessão do poder. Erigido em «causa nacional» segundo a fraseologia oficial, ele está no centro das preocupações políticas do país desde há quatro décadas. Mas, à medida que o conflito se atola e que a «recuperação das províncias do Sul» depara com múltiplos obstáculos, a obsessão do regime torna-se ainda mais grave. O poeta marroquino Abdellatif Laâbi não se enganava ao considerar o seu país «doente do Sahara».

Em meados dos anos 1970, quando explode este "caso do Sahara" — assim o denominam os marroquinos — ele era aparentemente comum no contexto da época. Embora um pouco deslocado em relação à era das descolonizações, a reivindicação de uma ex-colónia espanhola por Marrocos e por um grupo de independentistas não era surpreendente. Ele é visto então como uma luta entre os Estados-nação que se constroem reivindicando soberania sobre territórios de fronteiras incertas e populações partilhadas e pouco consciencializadas.

No espírito de Hassan II, tendo em conta a desproporção das forças entre Marrocos e o punhado de guerrilheiros da Frente Polisario, o conflito só poderia ser de curta duração. O tempo suficiente que um formidável consenso político se faça em redor do trono Alauita neste Marrocos atormentado por tensões e divisões políticas, e depois de dois golpes perpetrados pelos militares contra a pessoa do rei em 1971 e 1972.

Hassan II, que inicialmente optou pela estratégia do “assunto encerrado”, estava longe de imaginar que este conflito, que se afundou na brecha do contencioso entre o seu país e a vizinha Argélia, seria longo e dispendioso. O custo é essencialmente político, Marrocos hipotecou a vida do país à causa sagrada da recuperação do que os marroquinos chamam de "províncias saharianas". É precisamente essa ligação entre o sucesso do regime e a propriedade do Sahara reconhecido pela comunidade internacional que está em causa. Hassan II, que achava que o tempo jogaria necessariamente a favor do seu país, gostava de dizer que "mais cedo ou mais tarde, é preciso que o nosso título de propriedade do Sahara seja arquivado no registo de terras da ONU". A incapacidade do poder em obter este título de propriedade explica o seu nervosismo, palpável nos documentos revelados pelo hacker que se diz chamar Chris Coleman, como o revela o discurso sobre o Sahara pronunciado por Mohamed VI a 6de novembro de 2014.

Em seu discurso, o monarca anunciou uma reorganização da sua política Sahariana, designa nomeadamente a Argélia como responsável pela atual impasse e apela aos seus súbditos de fazerem prova de patriotismo na defesa da causa sagrada do Sahara considerado como marroquino. Quanto aos Estados aliados, especialmente os EUA, eles devem necessariamente "sair da ambiguidade." Os documentos divulgados pelo designado  "Wikileaksmarroquino" revelam os métodos e meios utilizados por Rabat para implementar esta política.


UMA REVISÃO RADICAL

"Apelámos a uma revisão radical do nosso modo de governação das nossas províncias do sul", declarou o Rei Mohamed VI em seu discurso por ocasião do 39º aniversário da "Marcha Verde" (1). Se implicitamente os propósitos insinuam o fracasso das políticas anteriores, o rei ainda recita as muitas ações empreendidas por Marrocos no Sahara: investimento maciço e anos de sacrifício por parte dos marroquinos para recuperarem a "integridade territorial" do seu país.

Apesar disso, o monarca reconhece falhas na gestão do Sahara – que pretende corrigir. Mas isso é menos uma mudança de rumo do que a implementação de um novo método, mesmo que a "rotura" com o modo anterior de governação seja claramente afirmada.

Expressando seu desejo de substituir um sistema baseado no "respeito pela igualdade de oportunidades e justiça social" a uma "economia de rendimentos e privilégios indevidos" Mohamed VI refere-se à integração de Saharauis na sociedade marroquina que foi adotado por seu pai.

Manifestações em Marrocos reprimidas pela polícia

Hassan II, de facto, tinha-se apoiado numa elite saharaui para governar o território que o Marrocos administra desde meados da década de 1970, sem que a ONU se tenha pronunciado sobre a sua soberania. Em troca de sua fidelidade e lealdade, os saharauis que vieram em seu auxílio foram associados às atividades mais dinâmicas da região (pesca, construção, comércio). Cargos de funcionários ou conselheiros do rei também lhes foram atribuídos. O soberano conseguiu assim formar uma elite cooptada que ele usou como apoio e vitrina, na medida em que estes saharauis escolhidos a dedo simbolizavam tanto o sucesso possível como a integração dos Saharauis dentro sistema político marroquino.

Mohamed VI sabe que estes laços clientelistas, que ele não conseguiu manter, não atendem às expectativas das jovens gerações de saharauis. Imbuídos pela mudança política iniciada no final dos anos 90 em Marrocos, os jovens saharauis expressaram-se de forma diferente reivindicando trabalho, acesso à habitação e mais justiça na redistribuição das riquezas do Sahara. Foi para melhor atender a essas reivindicações de um novo registo referencial, como o dos direitos humanos, das liberdades individuais e políticas e do direito internacional, que o soberano teve a intenção de alterar a sua oferta ao propor uma regionalização qualificada e avançada. Esta regionalização corresponderia a "zonas e regiões interdependentes e complementares, que se ajudariam e apoiariam umas às outras." Regularmente anunciada, esta regionalização, que diria respeito em primeiro lugar ao Sahara, não foi implementada. O projeto visava alegadamente promover a gestão de Assuntos Saharianos pelas populações desta região.


DIREITOS FUNDAMENTAIS NA LINHA DE FOGO

O anúncio feito pelo soberano em 2014 de uma reorganização da política Sahariana visa traçar um grosso risco sobre a má gestão da região, principalmente no campo dos direitos humanos. Desde há quase 10 anos, de facto, muitos casos atestam as más relações políticas entre Saharauis e o poder marroquino. Considerando essas tensões recorrentes, os Estados Unidos (EUA), em abril de 2013, solicitaram a extensão do mandato da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) aos direitos humanos, antes de a retirarem.

As manifestações contra a ocupação nos territórios ocupados do Sahara Ocidental são constantes 

Um documento oficial divulgado pelo hacker Chris Coleman revela o acordo secreto entre Barack Obama e o rei Mohamed VI, em novembro de 2013. Os Estados Unidos teriam, assim, abandonado a sua proposta com base em três condições: que os saharauis não sejam julgados por tribunais militares (2); que Rabat facilite visitas ao Sahara de funcionários do Alto Comissariado para os Direitos Humanos e que aceite legalizar as associações que reivindicam a independência do Sahara.

Confrontado com estas reivindicações, o monarca decide estabelecer um quadro rígido. Em seu discurso, ele pede a abertura de um diálogo sobre as formas pelas quais é possível atender às "preocupações das populações da região."As ofertas reais incluiriam nomeadamente condições de vida mais dignas, mas em troca a ordem pública deve ser respeitada e a soberania de Marrocos sobre o Sahara não é negociável. O monarca é claro: "A autonomia é o máximo que o Marrocos tem para oferecer no contexto das negociações para encontrar uma solução definitiva para este conflito regional.»


PATRIOTAS OU TRAIDORES

Mais do que um quadro desenhado para os Saharauis, as propostas do rei assemelham-se a um verdadeiro diktat já que ele chama de "traidor" qualquer um que ouse ir além disso; "ou se é patriota ou se é traidor, não há meio termo", disse o rei no mesmo discurso.

Este jogo de inclusão e exclusão não se aplica apenas aos saharauis e marroquinos. O rei refere-se à Argélia como a principal causa de obstrução. Ele pede igualmente aos Estados Unidos, às Nações Unidas e às potências internacionais para "saírem de sua ambiguidade." No seu espírito, os elogios recebidos acerca dos avanços marroquinos em termos de abertura política e o papel desempenhado por Marrocos na luta internacional contra oterrorismo devem necessariamente conduzir ao apoio incondicional às posições marroquinas sobre o Sahara.

Os saharauis na diáspora são, cada vez mais, uma voz interveniente na cena internacional

Esta postura é uma constante na política externa de Marrocos, especialmente em relação ao Sahara. A imagem do país e seu papel na geopolítica regional são moeda de troca para alianças sobre o Sahara.

Contabilizados com minúcia, os Estados que não reconhecem a República Árabe Saharaui Democrática (RASD), autoproclamada pela Frente Polisário e reconhecida pela União Africana, devem também condenar a Argélia e apoiar o plano de autonomia proposto por Rabat em 2007. Qualquer um que viole esta política está sujeito à ira do poder e ser acusado de estar a soldo de Argel. A acusação, que se aplica a investigadores e jornalistas, também recai sobre os funcionários da ONU que se atrevem a quebrar as regras ditadas por Rabat em matéria de intrusão no conflito do Sahara.


TENSÕES COM A ONU

Em abril de 2004, Rabat rejeitou o plano de paz proposto pelo enviado pessoal do Secretário-Geral das Nações Unidas para o Sahara Ocidental, James Baker. O ex-secretário de Estado norte-americano havia proposto um plano que mantinha o princípio da autodeterminação com a eleição de uma autoridade local dentro de um Marrocos soberano. Mas o estatuto final do Sahara deveria ser determinado por um referendo após 4 a 5 anos após a sua entrada em vigor. Marrocos, que havia excluído qualquer projeto de autodeterminação, evocou então uma proximidade entre Baker e o regime argelino.



A 17 maio de 2012, Marrocos decidiu unilateralmente retirar a sua confiança ao enviado da ONU para o Sahara, Christopher Ross, acusando-o de realizar um trabalho tendencioso e desequilibrado. Um mês antes, o relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas — com base em relatórios de Chris Ross — elencara sem rodeios os entraves ao bom funcionamento da MINURSO por parte de Marrocos. O relatório, justamente, questionava o que é legítimo e o que é legal na ação no Sahara. Também interpelava sobre a credibilidade da MINURSO no Sahara. Apesar disso, o diplomata não foi desacreditado pelos seus superiores. Beneficiou abertamente do apoio de Ban Ki-moon, e foi mantido em seu posto.

Este apoio, tornado possível no contexto regional do pós-2011, concedeu um caráter inédito às relações entre Marrocos e a ONU. Os documentos postos online revelam as estratégias desenvolvidas pela diplomacia paralela marroquina para marginalizar Ross. Em um fax de 22 de Agosto de 2014, Omar Hilale, o representante de Marrocos junto das Nações Unidas, em Nova Iorque, sugere uma estratégia para "isolar Ross, enfraquecê-lo e empurrá-lo para os seus limites quanto à sua agenda escondida sobre o Sahara".

Em todas as questões relacionadas com a questão altamente sensível do Sahara, os documentos revelados nos últimos meses revelam e confirmam os propósitos do soberano quanto à política de Marrocos para o Sahara. Muito mais do que um velho protagonista no conflito regional, Marrocos define os atores, dita a política das potências estrangeiras e exclui as negociações para a resolução da questão.


Autor: KHADIJA MOHSEN-FINAN

(1)        A 6 de novembro de 1975, Hassan II lança uma marcha de 350 000 pessoas para ocupar o Sahara Ocidental, território até então colónia espanhola.


(2)        Referência à condenação a pesadas penas, por um tribunal militar marroquino, de 24 Saharauis acusados sem provas do processo de Gdeim Izik. No outono de 2010, os Saharauis ergueram um acampamento pacífico para denunciar as suas condições de vida no Sahara Ocidental. Após terem aceitado a constituição de um comité misto marroquino-saharaui, as autoridades marroquinas desmantelaram pela força o acampamento, com o pretexto que ele caíra nas mãos de grupos de traficantes e de criminosos que retinham uma parte da população saharaui contra sua vontade.

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