Abdulah Arabi, delegado da Frente Polisário em Espanha, falou com o Expresso em Madrid
Texto e foto Gorka Castillo em Madrid
Os sarauís consideram-se filhos da nuvem, porque aprenderam a defender um território inóspito e alheio no deserto argelino — na zona de Tinduf, onde milhares habitam campos em condições muito difíceis — como se fosse a sua própria casa. Essa, abandonaram-na há 45 anos, quando a Espanha saiu do Sara Ocidental, entraram os marroquinos e começou a guerra. Nesse labirinto africano nasceu Abdulah Arabi (El Aaiún, 1966), delegado em Espanha da Frente Polisário, principal organização de luta pela independência da República Árabe Sarauí Democrática (RASD). Arabi, cujo cargo só tem par na delegação do território nas Nações Unidas, falou com o Expresso em Madrid, no dia em que o presidente da Frente Polisário e da RASD, Brahim Ghali, saiu de Espanha para a Argélia após ter recebido tratamentos médicos em Logroño, o que muito irritou Rabat.
Marrocos não ia tão longe no seu desafio desde a Marcha Verde de 1975. O reconhecimento pelos Estados Unidos da soberania marroquina sobre o Sara Ocidental influiu nesta crise?
Sem dúvida. O apoio declarado por Donald Trump em dezembro encorajou Marrocos a lançar-se em busca de novos reconhecimentos internacionais do Sara Ocidental, em concreto da União Europeia. Começou por Espanha e tentou também com a Alemanha, mas não conseguiu mais do que abrir uma grave crise diplomática com ambos países. Isso mostra que não só fracassou no objetivo como permitiu ver que todos os argumentos que utiliza são mecanismos de pressão destinados a mediatizar um posicionamento europeu conforme à decisão de Trump.
Refere-se à crise humanitária provocada em Ceuta?
A imigração é um assunto recorrente para Marrocos. Não foi por acaso que desde dezembro aumentou em direção às ilhas Canárias e agora se repetiu em Ceuta, a pretexto da presença do Presidente sarauí, Brahim Ghali, num hospital espanhol. Ficou patente que Marrocos é capaz de utilizar vidas humanas para fins políticos, mesmo contra países vizinhos com quem tem relações diplomáticas muito importantes, e que agora correm o risco de se romper, com consequências graves para todo o Magrebe.
"Espanha devia ser mais ativa na defesa da legalidade internacional"
Em comunicado oficial, o Governo marroquino chega a comparar o conflito do Sara com a situação na Catalunha. Há paralelismos?
Nenhuns. A questão do Sara Ocidental é um problema de descolonização inacabada. Para as Nações Unidas é um de 17 territórios não-autónomos no mundo, à espera de solução. Portanto, compará-lo com a Catalunha é mais uma forma de chantagem e manipulação que Marrocos utiliza como método de pressão sobre Espanha. Não devemos esquecer que toda esta ofensiva marroquina não resulta apenas do decreto de Trump. Está para sair uma sentença dos tribunais de justiça europeus sobre a exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental, que pode ser crucial para o futuro dos nossos territórios.
Está a falar dos acordos de pesca UE-Marrocos que a Frente Polisário levou à justiça europeia?
Sim, nem a UE nem Marrocos têm competências sobre um território que, diz a ONU, “está pendente de descolonização”. O Parlamento Europeu procurou saídas jurídicas para este contencioso, que se aplicam de momento, mas nós recorremos. Daí o esforço que Marrocos tem feito por atrair a França e a Alemanha
O que significaria para Rabat a revogação desses acordos?
Voltaria a vigorar o direito internacional como única via de resolução para o Sara Ocidental. Se a justiça europeia ratificar que o território não pertence a Marrocos, como defendem as Nações Unidas, de nada servirá o decreto assinado por Trump em dezembro, voltaremos a ver que a única saída é realizar um referendo de autodeterminação no Sara Ocidental, como pede a ONU.
"relações muito importantes correm risco de rutura no magrebe"
França, o aliado europeu mais fiel de Marrocos, começa a marcar distâncias com Rabat devido a esta crise. Espera uma mudança de posição de Paris quanto aos territórios ocupados?
Continuamos a pensar que a França é o melhor aliado de Marrocos na questão do Sara Ocidental. Ainda assim, a frieza que expressou face a Rabat nesta crise mostra que Marrocos não deixou argumentos de defesa aos seus parceiros, dada a barbaridade do seu comportamento e a utilização que fez de civis, entre eles menores de idade. Qualquer país que defenda os direitos humanos só pode censurar o que se passou em Ceuta. Isso explica que a França tenha mandado um recado claro a Rabat: se quer mesmo ser um sócio privilegiado, deve ter em conta algo tão elementar como o respeito pelos direitos humanos. Nós sempre dissemos que Marrocos é uma monarquia feudal. Nós, sarauís, sofremos há 45 anos todo o tipo de violações na parte ocupada do nosso país.
Esta grave crise com a UE pode gerar mais apoios ao referendo de autodeterminação?
Tudo quanto Marrocos faz no norte de África, seja a ocupação do Sara Ocidental, a violação do cessar-fogo na zona ou os problemas fronteiriços que tem com quase todos os países vizinhos, incluindo Espanha, exige uma solução definitiva que garanta a paz e a estabilidade em toda a região do Magrebe. A Frente Polisário defende a independência do povo sarauí e o direito internacional oferece-nos a possibilidade de nos pronunciarmos livre e democraticamente, através de referendo. É isso que queremos. Defendemos a independência e Marrocos está no seu direito de propor outra opção. A forma mais democrática de resolver isto é uma consulta popular, que a comunidade internacional deve fomentar, mas cujo resultado, seja qual for, terá de ser escrupulosamente aceite por todas as partes. A Frente Polisário está disposta a isso, mas é preciso que Marrocos também mostre uma vontade que, lamentavelmente, não vemos.
Criticaram o papel que Espanha desempenhou no conflito do Sara Ocidental. Como agiu nesta crise?
Entendemos que a União Europeia no seu todo, e Espanha em particular, apostou claramente na defesa do direito internacional nesta crise. Para nós, a Espanha continua a ser a potência administradora e, portanto, tem de assumir um papel especial no Sara Ocidental. Deveria ser politicamente mais ativa e agir com maior firmeza no cumprimento da legalidade internacional. Entendemos que tenha de manter relações de boa vizinhança com Marrocos, mas consideramos que é o país mais indicado para exigir aos marroquinos o cumprimento estrito dos direitos humanos.
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