sábado, 14 de outubro de 2023

A FALTA ATACANTE DE MARCELO e COSTA



Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa tecem hinos e louvores à organização de um campeonato do mundo de futebol que envolve um Estado (Marrocos) que ocupa ilegalmente o território do Sara Ocidental.


Artigo publicado no jornal “Público” a 7 de outubro de 2023 - José Manuel Pureza


Imagine o leitor que, lá por 1998, dois países do Sudeste asiático – a Tailândia e a Malásia, por exemplo – tinham ganho a competição para organizarem o campeonato do mundo de futebol. Imagine que ambos decidiam incluir na sua candidatura conjunta um terceiro país, a Indonésia. Imagine, enfim, que a então potência ocupante de Timor-Leste projetava a construção de um grande estádio de futebol em Dili, anunciando que ali se realizaria um dos jogos desse mundial.

É legítimo perguntar: se António Costa fosse então primeiro-ministro de Portugal e Marcelo Rebelo de Sousa fosse o Presidente da República desse momento, que reação a esse plano lhes exigiria a sociedade portuguesa? A resposta é evidente: que fossem coerentes com o que fizeram o Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro António Guterres e repudiassem firmemente, em nome de um país que então se mobilizava totalmente contra a ocupação de Timor, uma tal manobra de branqueamento futebolístico da violação mais grosseira do direito internacional. Que ambos dessem voz a nada menos que a autodeterminação daquele povo irmão. O que se exigiria a Marcelo Rebelo de Sousa e a António Costa seria, portanto, que não fossem em futebóis e não se distraíssem, nem a si mesmos nem a nós, do que verdadeiramente estava em causa.

Tudo isto é ficção, sim. Mas não é só porque essa candidatura nunca existiu. É ficção por algo muito mais sério que isso: porque, menos de um quarto de século depois desse imaginado 1998, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa tecem hinos e louvores à organização – essa sim, verdadeira – de um campeonato do mundo de futebol que envolve um Estado (Marrocos) que ocupa ilegalmente o território do Sara Ocidental, no qual anuncia que vai construir um grande estádio para a realização de um dos jogos da competição. O Presidente da República lavou a história com o discurso tradicional da direita e falou de “uma candidatura europeia, africana e sul-americana, ligando países que têm uma História em comum". E António Costa não a lavou menos, esquecendo tudo o que um socialista devia lembrar e escondendo a gravidade desta iniciativa atrás de uma assética “parceria com Espanha e Marrocos” e insistindo no estafado autocomprazimento de que “temos capacidade e provas dadas na organização de grandes eventos".

Pois sabe o que era um grande, mas mesmo grande, evento, senhor primeiro-ministro? Era o seu Governo não dar primazia nem aos negócios do futebol nem ao cinismo da realpolitik e conferir efetiva prioridade a uma política externa centrada na defesa sem cedências do direito internacional e da autodeterminação de todos (todos!) os povos, e não apenas daqueles que o vento dominante diz para defender. Sabe qual era a história comum que devia lembrar, senhor Presidente da República? Era a história que nos fez grandes quando fomos coerentes com a ligação umbilical entre a nossa revolução democrática e as lutas pela autodeterminação das ex-colónias portuguesas e fizemos do seu sucesso pilar do sucesso da nossa democracia.

Da FIFA que organizou o mais vergonhoso dos mundiais (o do Qatar), hoje provadamente envolvido numa teia de corrupção de que o Parlamento Europeu foi apenas um dos focos, não se esperaria nada em favor de critérios de decência e de legitimidade. Mas nenhum de nós é nacional de um Estado chamado FIFA. É enquanto cidadãos de uma democracia que inteligentemente vê no direito internacional uma salvaguarda contra os grandes poderes fácticos deste mundo que temos obrigação de não seguir Marcelo e Costa na sua desmemória tão conveniente e na sua complacência ativa com o poder do ocupante agora tornado parceiro. O Mundial que vem aí – e que os desavindos Marcelo e Costa se unem para elogiar – é um vexame para o país que se irmanou com a resistência timorense contra uma ocupação que os “realistas” de então (e eram tantos…) ditavam que devíamos deixar seguir. E é uma vergonha para quem apregoa, dia sim, dia sim, que não podemos ceder um milímetro aos ocupantes ilegais de territórios de outros povos.

Escrevo este texto quando estou, em Nova Iorque, a participar nos trabalhos da Comissão Especial de Políticas e Descolonização das Nações Unidas sobre a questão do Sara Ocidental. Junto-me aos tantos, de tantos países, que aqui vieram exigir que se cumpra o direito à autodeterminação do Sara Ocidental. Se a força não nos desviou desse princípio, não vão ser os negócios do futebol que o farão. Isso fica para outros.

José Manuel Pureza
Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda

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