terça-feira, 6 de agosto de 2024

A descolonização não é uma anexação, a autodeterminação não é uma autonomia



Omar Mih - Representante da Frente POLISARIO em Portugal

EXPRESSO - 06-08-2024 | Para Macron, o povo do Sahara Ocidental é reduzido à expressão de “populações locais” (onde os colonos marroquinos imperam), ou seja, o povo saharaui é totalmente ignorado. Mas o Direito Internacional é claro na afirmação de que o Sahara Ocidental é um caso de descolonização e de que o povo saharaui tem direito à sua autodeterminação.

 

Há poucos dias, respondendo a um artigo publicado no blogue do Atlantic Council em Washington, o Embaixador americano jubilado Christopher Ross, Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental (2009-2017), começa por afirmar: “O meu interesse durante todos esses anos [em que foi Enviado Pessoal] não era no resultado das negociações, mas na necessidade de garantir que a população mais diretamente afetada – o povo do Sahara Ocidental, citado em sucessivas resoluções do Conselho de Segurança – tinha uma voz na determinação desse resultado”.

Recordando as anos posteriores ao acordo, patrocinado pela ONU e pela OUA, que ambas as partes, a Frente POLISARIO e Marrocos, assinaram em 1991, que previa “um cessar-fogo em troca de um referendo sobre o futuro do território e a criação de uma força de paz das Nações Unidas, a MINURSO – Missão das Nações Unidas para a o Referendo no Sahara Ocidental”, e a subsequente frustração por não se conseguir concretizar este plano, o Embaixador Ross, continua: “Esforços renovados para resolver o conflito começaram em 2007, quando as duas partes apresentaram [as suas] propostas – Marrocos para um Sahara autónomo sob a sua soberania e a FPOLISARIO para um referendo de autodeterminação com uma opção relativa à independência que conduzisse a relações privilegiadas com Marrocos.”

“Desde esse ano, e em todos os seguintes, o Conselho de Segurança «apela às partes para que continuem as negociações sob os auspícios do Secretário-geral sem pré-condições e de boa fé (…) de modo a conseguirem chegar a uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável, garantindo a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental.»”

“É justo perguntar por que razões não houve nenhum progresso”, escreve Christopher Ross. Resumindo, ele explica: “Em cada ronda [negocial] Marrocos declarou que só negociaria os detalhes da sua proposta de autonomia, e recusou-se a considerar a proposta da FPOLISARIO, desprezando-a como fora de prazo. A FPOLISARIO defendeu a sua proposta como sendo consistente com os requisitos [do princípio] de autodeterminação e inovadora ao referir a possibilidade de relações privilegiadas com Marrocos. Também assinalou que estava preparada para discutir a proposta marroquina numa base de reciprocidade se Marrocos concordasse em discutir a proposta da FPOLISARIO. Marrocos recusou, originando um bloqueio em todas as rondas.”

Vem o relato desta experiência vivida a propósito da carta que o Presidente francês, Emmanuel Macron, acaba de escrever (30 de julho) ao rei Mohamed VI, apoiando de forma inequívoca a “soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental”, porque ela contraria tudo o que o Embaixador Ross descreve.

Na missiva do Presidente francês, o povo do Sahara Ocidental é reduzido à expressão de “populações locais” (onde os colonos marroquinos imperam), ou seja, o povo saharaui é totalmente ignorado. A França, diz Macron, “pensa agir em coerência com esta posição no quadro nacional e ao nível internacional”, e “apoia os esforços do Secretário-geral das Nações Unidas e do seu Enviado Pessoal” (agora o diplomata italo-sueco Staffan de Mistura), mas o Direito Internacional é claro na afirmação de que o Sahara Ocidental é um caso de descolonização e de que o povo saharaui tem direito à sua autodeterminação, pelo que consequentemente a ação da ONU não pode contradizer estes princípios e é muito grave que seja um membro permanente do Conselho de Segurança a fazê-lo. “A autonomia sob soberania marroquina é o quadro no qual esta questão deve ser resolvida”, reza a carta, mas as partes envolvidas são duas, e cada uma tem a sua posição que, de acordo com o Conselho de Segurança, devem ser discutidas “sem pré-condições e de boa fé”. Paris firma que “a procura do desenvolvimento económico e social desta região é um imperativo”, mas foi justamente a recusa de Marrocos em discutir qualquer solução que não fosse a sua – a autonomia - que bloqueou as negociações e travou um processo de paz que permitiria uma verdadeira integração regional.

Num excelente artigo publicado pelo meu colega Alien Habib Kentaui, antigo embaixador da República Saharaui junto da OUA, ele refere como “Em 1950, e antes da criação da Organização de Unidade Africana (OUA, 1963), precursora da União Africana (UA, 2002), tentou impor-se o conceito de autonomia como forma de descolonização. A Eritreia foi a cobaia desta experiência arriscada (…). O resultado foi um fracasso retumbante e um custo incalculável em sofrimento e tragédia para o continente africano.” A ONU impôs então à Eritreia, como via para a descolonização, uma autonomia no quadro do império etíope, que a transformou rapidamente em anexação. “Após 42 anos de desordem regional e 30 anos de guerra, a ONU, arrependida, admitiu o seu mea culpa e voltou à estaca zero. Em 1992, criou a UNOVER (Missão de Observação das Nações Unidas para a Verificação do Referendo na Eritreia), e este realizou-se um ano mais tarde, remediando assim uma mágoa imposta por alianças circunstanciais em detrimento da legalidade, contra a vontade do povo eritreu e o espírito da descolonização em África.”

Não é por acaso que as Cartas fundadoras da OUA e da UA adotaram o princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do período colonial, pois no contexto histórico africano isso tornou-se um imperativo. O mesmo se fez na América Latina após as independências, para evitar conflitos decorrentes de reivindicações cruzadas. Ao contrário, Marrocos é o único país no continente que não reconhece as suas próprias fronteiras, baseando-se na ideia do “Grande Marrocos”, assim expondo o seu “expansionismo insaciável como ameaça”, origem de guerras com a Argélia, com a Mauritânia e com o povo do Sahara Ocidental.

Mais um fardo da Conferência de Berlim (1884-1885) que pesa sobre África. Que sejam países africanos a seguir-lhe as pisadas é inaceitável. Que sejam as antigas potências coloniais a apoiá-los nesse caminho destrutivo é condenável. Por isso continuaremos a combater pela liberdade e pela democracia, a nível interno e nas relações internacionais. Esse tem sido, será, o nosso contributo para um mundo mais justo.

A decisão francesa, que tem supostamente como objetivo abrir uma nova página nas relações franco-marroquinas, fechará outras páginas com países da região e não é mais do que um acordo (nem legal, nem moralmente válido) celebrado entre duas partes a expensas de uma terceira, o povo saharaui, legítimo dono da sua terra e do seu futuro.

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