A grande corrupção do 'mandante' de Marrocos
- Um ex-oficial marroquino narra nas suas memórias os negócios obscuros de Bennani [general Abdelaziz Bennani, ocupou, entre 27 de julho de 2004 e 13 de junho de 2014, o mais alto cargo das FAR - Inspetor Geral das Forças Armadas marroquinas e comandante da Zona Sul (Sahara Ocidental)]
- Terá aberto as portas aos cartéis colombianos para que introduzissem cocaína em Espanha
A patrulha do subtenente Abdelilá Issou, que partia
do cabo Malabata, entre Tânger e Ceuta, começava todos os dias a sua ronda às 21:02
horas e acabava às 02.00 da madrugada. «Ao manter o mesmo horário, os
traficantes sabiam que até às nove e a partir das duas não corriam risco algum de
ser importunados na sua atividade», escreve Issou, de 49 anos, nascido em Tetouan.
Ante esta aparente cumplicidade entre os que fixaram
o horário das patrulhas de vigilância e os narcotraficantes que transportavam o
haxixe das montanhas do Rif até à costa para o embarcar em lanchas rápidas em
direção a Espanha, Abdelilá Issou transmitiu as suas dúvidas ao capitão Bana
que comandava a sua companhia.
Seu chefe ordenou-lhe "a não voltar a colocar
o assunto nem a ele nem a qualquer outra pessoa, porque os horários e a
programação são decididos pelo Estado-Maior da Zona Sul [Sahara Ocidental, 1 190
quilómetros de distância] de acordo com as instruções e diretivas emitidas pelo
general Abdelaziz Bennani".
Este general, que está prestes a completar 79
anos, é, desde há 31 anos comandante-em-chefe da região, onde se encontra
deslocado 75% do exército marroquino. É o mais poderoso dos militares de
Marrocos, porque a esse cargo acumulou há mais de uma década atrás o de Inspetor-Geral
das Forças Armadas.
Exílio
em Espanha
Dele e de outros quantos oficiais mais fala abundantemente
no seu livro recém-publicado “Memórias de um Soldado Marroquino”
("Memoires d'un soldat marocain" Edilivre Editorial, Paris). O autor,
Abdelila Issou, é um oficial do exército formado na Real Academia Militar de
Meknès, que acabou trabalhando para o CNI - serviço secreto espanhol - antes de
se exilar em Espanha no ano de 2000.
As memórias de Issou são uma viagem pela corrupção
nas Forças Armadas e no Sahara Ocidental, em tempos de guerra e paz, após o
cessar-fogo em 1991 entre Marrocos e a Frente Polisario, que reivindica a
independência da que foi colónia espanhola até 1975.
O livro confirma outras memórias, escritas por um
outro oficial, Tobji Mahjoub, 70 anos, e publicadas em Paris em 2006, sob o
título “Os oficiais de Sua Majestade - as manobras dos generais marroquinos
(1956-2006). O general Bennani "dedica as suas energias a acumular uma
grande fortuna", escreveu então Tobji, graças aos contratos de compra de
carne para o Exército, com a Argentina e a Austrália, e o recebimento, em conta
especial, das coimas aplicadas às embarcações pesqueiras espanholas que operam
em águas do Sahara.
Issou vai mais longe e acusa o general Bennani de ter
firmado nos anos 90 “um acordo com os cartéis colombianos que lhes permitia
abrir uma nova rota e uma porta de entrada para a Europa" à cocaína
através dos narcotraficantes marroquinos já então introduziam o haxixe em
Espanha. Apesar de ter reduzido a área de cultivo, Marrocos continua a ser o
principal produtor mundial de haxixe.
Estas denúncias não são produto da vingança de
dois oficiais. Num telegrama enviado para Washington em 2008 e revelado pelo
Wikileaks, o então embaixador dos Estados Unidos em Marrocos, Thomas Riley, assinalava
já que o general Abdelaziz Benanni "detém uma boa parte das pescas no
Sahara Ocidental." "Relatos credíveis indicam que (...) usa a sua
posição como comandante do setor para sacar dinheiro dos contratos militares e
beneficiar de decisões empresariais", acrescenta o telegrama. Thomas Riley
descreve também a luxuosa mansão de Bennani.
O enriquecimento de uns poucos não impedia que o
exército fosse pobre. A escassez de material era tal que "mais parecia sabotagem",
de acordo com Issou. Faltava-lhes, por exemplo, "óculos de visão noturna
essenciais para as sentinelas de noite". Por isso os combatentes da Polisario
"se infiltravam no dispositivo (...) marroquino sem disparar um só um
tiro" utilizando apenas as suas armas brancas.
"As terríveis condições de vida, a severidade
do clima, a falta de água e de comida, o stress depois dos combates e o abuso
dos comandos; todos esses fatores tiveram consequências nefastas sobre a moral
das tropas e, muitas vezes, terminaram em tragédia", segundo Issou. Relata
a ocorrência, por vezes, de suicídios de soldados após dispararem primeiro à queima-roupa
contra os seus oficiais.
'Um
duro golpe para o regime'
No início de 1998 Issou estava destacado na base
militar de Benguerir, perto de Marraquexe, quando decidiu oferecer os seus
serviços ao CNI [serviços secretos espanhóis] através de um dos seus agentes que,
oficialmente, era adido de imprensa do Consulado da Espanha em Tetouan. Quis fazê-lo,
segundo diz, "para assestar um golpe ao regime" marroquino, mas
também para obter um rendimento extra, tentado, provavelmente, em construir um
futuro ao norte do Estreito. O CNI deu-lhe formação em criptografia, técnicas
de monitorização, e assim por diante.
Abdelila Issou montou uma rede de cinco militares que
informavam a espionagem espanhola não sobre o armamento do Exército marroquino,
mas antes sobre as fraquezas dos seus generais corruptos e a vida privada daquele
que era então o príncipe herdeiro, atual rei Mohamed VI, e de sua mãe, Latifa
Hammou. Após a morte do rei Hassan II, a viúva casou com Mohamed Mediouri, que
tinha sido o chefe dos guarda-costas da família real.
O espião foi finalmente descoberto pela DST
[serviços de contra-espionagem marroquinos] em 2000, que não o conseguiu
prender porque ele conseguiu fugir para Ceuta. Os seus parceiros espanhóis falharam
com ele. Nem mesmo o ajudaram a passar da cidade autónoma para a península [Ibérica].
Teve que o fazer por conta própria, com documentos falsos, para atravessar o
Estreito. Ainda não estava totalmente seguro. Seu último susto deu-se a 12 de
agosto de 2010, quando alguns compatriotas tentaram sequestrá-lo à porta de sua
casa em Madrid.
Disfarçados
de funcionários
Nove anos depois da fuga de Abdelilá Issou de Marrocos,
o CNI viu-se obrigado a fechar a sua antena de Tetouan, que era então dirigida por
um coronel secundado por um comandante, ambos disfarçados de funcionários do
consulado. Tetouan era não só um lugar de recrutamento de colaboradores da
inteligência espanhola mas um bom observatório do que sucedia em redor de Ceuta
e dos movimentos do radicalismo islâmico, muito arreigado nessa zona de Marrocos.
Mustapha Adib, ex-capitão exilado em França |
Há um terceiro militar marroquino, o ex-capitão
Mustapha Adib, que não escreveu ainda um livro denunciando a corrupção na Força
Aérea, a que pertenceu. Não obstante não ter plasmado as suas acusações por
escrito, o seu compromisso em ajustar contas perdura. Em meados de junho, o
general Abdelaziz Bennani foi internado durante alguns dias no hospital militar
de Val-de-Grâce, em Paris, e o capitão Adib, que vive no exílio, precisamente em
França, apareceu na unidade hospitalar e conseguiu, a 18 de junho, chegar à
porta do seu quarto.
Levava consigo um ramo de orquídeas — flores mortuárias
— e uma carta para aquele que foi seu chefe repleta de insultos como anão, rato,
cobarde e criminoso. Não conseguiu ver o paciente. Teve que se conformar em
dá-las a alguém do seu staff.
O
homem que acusa
Oficial
Abdelilá Issou foi oficial do Exército formado na Real
Academia Militar de Meknès. Trabalhou para o CNI [serviços secretos espanhóis]
e exilou-se em Espanha em 2000.
Memórias
Issou denuncia a corrupção da cúpula militar
marroquina no seu livro Mémoires d'un
soldat marocain La Face cachée du royaume enchanté («Memórias de um soldado
marroquino. A cara oculta do reino encantado»), da Editorial Edilivre, Paris.
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