domingo, 27 de janeiro de 2019

Fatma Medhi: «Marrocos já não se fia nem nos seus próprios saharauis»



Publicado de 27 janeiro, 2019 - Fonte e foto: Gara // Por Andoni Lubaki - Fatma Mehdi, secretária-geral da União Nacional de Mulheres Saharauis, que participou na primeira ronda de contactos [em Genrebra], assegura que Marrocos se viu pressionado pelos acontecimentos políticos e a mudança na perceção internacional da questão saharaui.

O que mudou nestes seis anos sem conversações?

Desde 2012, o problema do Sahara já não é algo que diz apenas respeito ao povo saharaui ou ao movimento de solidariedade, mas que ganhou relevância internacional, no interesse da segurança e estabilidade na região e não apenas nesta parte de África, mas também em todo o mundo. Hoje vemos que existem outras partes que querem encontrar uma solução rápida para este conflito. Também podemos ver que a situação atual criou mudanças, outra atmosfera.

Essa atmosfera é sentida também nas Nações Unidas?

Sem dúvida existe outro ambiente. Os assessores do Secretário-Geral da ONU sobre o Sahara também mudaram; antes a prioridade era mais dada ao consenso fosse . Agora outras opiniões são encaradas, há oposição a certas ideias. Há interesses por parte das grandes potências, como os EUA e a Rússia, para agilizar a solução. Também está ganhando força a ideia de que a MINURSO deve ser uma missão como qualquer outra no mundo e que tem de realizar a missão para a qual foi criada. Isso é pressão para o Marrocos.

Como reagiu Rabat?

Nessa reunião [de Genebra], que foi na verdade uma ronda de contatos para preparar e facilitar as negociações diretas, Marrocos mostrou disposição e vontade de colaborar com o enviado especial e a ONU e para conseguir uma solução aceite por ambas as partes. É um gesto, mas não é suficiente. Sim, falam de uma solução política aceite, mas não há garantias para que se alcance uma solução duradoura e apoiada pelo povo saharaui, que é o único que pode decidir sobre o seu futuro.

Qual é então a posição de Marrocos?

Há momentos em que afirma que não é contra o direito de autodeterminação, mas que não está preparado para realizar um referendo. Outras vezes, garante que o referendo não é a única via de conseguir a autodeterminação e argumenta como prova de que, de 24 casos de exigência de autodeterminação, somente em quatro houve um referendo e muitos foram resolvidos por meio de negociações e políticas diretas. Mas na prática não têm propostas claras e têm uma posição muito confusa. Só apresentam e colocam em cima da mesa o plano de autonomia quando não se trata de um plano fiável para garantir a vontade do povo saharaui e quando todos sabem que o referendo sempre foi e é a melhor maneira de garantir a autodeterminação.

Se lhe falo do nome de John Bolton, o que lhe sugere?

A mensagem de John Bolton é nova neste conflito. É a posição atual dos EUA., uma das potências mundiais. Nas suas declarações vejo um nono interesse em solucionar o conflito. Essa pressão obrigou a que Marrocos comece a falar de forma diferente. Levou a que Marrocos se sente com a Polisario, já que durante anos argumentava que o problema não era com a Polisario mas com a Argélia. Na última reunião foi muito clara tanto a posição da Argélia como da Mauritânia (país com o qual a Polisario também manteve uma confrontação armada até ao ano de 1979, quando firmou a paz ao ser derrotado pelas forças saharauis). São países vizinhos que têm interesse em solucionar o problema para desenvolver a paz, a economia, a estabilidade. É um problema que os afeta de forma muito direta e que estão a colaborar de forma ativa para encontrar uma solução.

O que poderá acontecer se estes encontros não conseguirem a paz e a independência?

Quando iniciámos este projeto político não sabíamos quanto tempo ía durar. O mais importante é continuar lutando para conseguir a independência através de um referendo. Não creio que nem estas reuniões nem umas eventuais negociações diretas possam trazer a plena solução, mas há que continuar lutando.

Como é um dia nas mesas redondas em Genebra?

O mais importante é ver Marrocos sentado à mesma mesa com a Frente Polisario. Há quem diga que algo mudou porque estão também a Argélia e a Mauritânia, duas partes que até agora não tinham tido uma presença tão clara nestas rondas. Mas não é verdade, Argélia sempre esteve.

Não é surpreendente que até agora Marrocos tenha enviado políticos de segunda categoria para a ronda de contatos e que, de repente, apresente Jali Hanna Uld Rachid (*)?

Isso foi-me comentado por aqueles que têm mais experiência do que eu, que estava participando dessas reuniões pela primeira vez. Rabat sempre enviou os saharauis para as conversações (saharauis que são a favor de Mohamed VI e da ocupação do Sahara Ocidental). Seu objetivo é propagar a imagem de que há saharauis que são a favor do regime e fazer parecer que é a Argélia que controla os campos [de refugiados]. Mas insisto que esta foi uma ronda de contactos e estou certo de que nas negociações que se realizarão no futuro, não vão enviar sequer nenhum saharaui.

O que a leva a pensar isso?

Porque Marrocos não se fia nos saharauis, nem sequer nos que para ele trabalham. Foi sempre assim. Se tivessem confiança neles teriam aceite o referendo. No fundo sabem que há muitos que se fazem passar por pro-regime mas que não são assim. Marrocos sabe que perderá o referendo. Os que vão a este tipo de conversações têm um papel secundário, vêm com o discurso feito, dizem-lhes o que que têm que dizer e fazer. O mesmo quando regressam. Quem controla tudo não é sequer o Parlamento, mas o Makhzen (termo utilizado em Marrocos para definir o poder palaciano fora de qualquer controlo democrático. Poder que está por cima de qualquer desígnio democrático ainda que vá contra a vontade do povo).

Desta vez apresentaram três saharauis alinhados com o regime e a ocupação, saharauis que se estão enriquecendo com a atual situação. Mas é pura pose, para não ficar mal ante a opinião pública internacional. No fundo, nem sequer se fiam neles.

(*) saharaui, presidente do CORCAS - Conselho Real Consultivo para os Assuntos do Sahara, foi fundador do Partido da União Nacional Saharaui em 1974-1975, organização conhecida por PUNS, tendo sido um dos notáveis do Sahara colonizado por Espanha a prestar fidelidade ao rei de Marrocos, país para onde fugiu com as finanças do partido. Nota da tradução – AAPSO.

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