O documento oficial final da reunião, que se realizou em Lisboa no dia 12 de Maio, tem 117 pontos, repartidos por 13 temáticas e uma “introdução”
que abarca os primeiros 6 pontos.
A análise que se segue da AAPSO (Associação de Amizade Portugal Sahara - Ocidental) baseia-se numa selecção de seis pontos que se relacionam mais directamente com a questão do Sahara Ocidental, que não são apresentados pela ordem em que estão na “Declaração Conjunta”.
O regime marroquino: política interna...
Portugal saúda a dinâmica de abertura, progresso e modernidade vigente em Marrocos, através da implementação de reformas ambiciosas de modernização levadas a cabo sob a conduta de Sua Majestade o Rei Maomé VI, nomeadamente o novo modelo de desenvolvimento, a regionalização avançada, a estratégia nacional de desenvolvimento sustentável, e ainda a nova política de solidariedade social, entre outras. (Ponto 6).
Esta narrativa tipicamente marroquina é crescentemente contrariada por várias organizações internacionais e por entidades e estudos realizados no próprio país.
Politicamente, o Reino está em crise profunda, com um Rei, no qual se concentra todo o poder e a maior parte da riqueza, ausente do país durante muitos meses. A reportagem publicada a 14 de Abril pelo jornal “The Economist” tenta encontrar explicações
para “O mistério do rei marroquino desaparecido”, sugerindo que a direcção política está cada vez mais nos serviços secretos e em quem os dirige.
Do ponto de vista económico, é o próprio Alto Comissariado para o Planeamento de Marrocos que, num relatório divulgado no passado dia 13 de Abril,
indica que durante o primeiro trimestre do ano em curso 51,2% das famílias consideram que os seus rendimentos cobrem as suas despesas, enquanto 45% cento afirmaram recorrer ao endividamento para fazer face às suas necessidades de despesa. A mesma instituição revelou que dos cerca de 36 milhões de habitantes, apenas um pouco mais de 1 milhão está empregado no setor privado, enquanto outro milhão está empregado no sector público, com perto de metade destes alistados no exército e outros serviços
de segurança do Estado.
No domínio social, e no que se refere à educação, o Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD de 2022 mostra que a duração média da escolaridade no país é de 5,9 anos, e para o Programa de Avaliação de Estudantes Internacionais da OCDE o Reino de Marrocos está classificado entre os cinco últimos países. Relativamente à saúde, Marrocos consagra apenas 6,85% do orçamento do Estado ao setor da saúde, enquanto a OMS considera que a norma deveria ser 12% e o país conta com 30.000 médicos, ou seja, um médico para cada 12.000 habitantes.
Após o reinício do conflito armado com a Frente POLISARIO no território não autónomo do Sahara Ocidental (Novembro de 2020) e a assinatura do Acordo de Abraão com Israel em Dezembro de 2020, as despesas militares do Reino de Marrocos aumentaram acentuadamente - de 4,88 mil milhões de dólares americanos em 2020, para 12,8 mil milhões em 2022. (Fonte dos dados deste parágrafo e do anterior: Carta Aberta ao FMI do Grupo de Apoio de Genebra para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos no Sahara Ocidental).
Este contexto tem dado origem a manifestações na rua mais frequentes, contra a alta dos preços, o impossível custo de vida e pelo fim da repressão e a libertação dos presos políticos.
No último ano tornaram-se avassaladoras as denúncias contra as violações dos direitos humanos em Marrocos. Vejam-se, só a título de exemplo, os relatórios anuais da Human Rights Watch e da Amnistia Internacional, assim como trabalhos de investigação específicos das mesmas organizações (“Morocco’s Playbook to Crush Dissent”, Julho 2022 e “Derechos
humanos en Marruecos, diez ejemplos de represión y censura”, 20 Fevereiro 2023). Sendo a imprensa independente marroquina um dos alvos a abater, uma investigação do jornal 'Hawamich' foi cedida ao diário “Público” espanhol para difusão (“El reino del terror: así se silencia a periodistas y opositores en Marruecos”, 18 Abril 2023) .
A opção pelos elogios ao Rei tem a sua explicação: como recorda numa entrevista recente Jawad Moustakbal (CADTM, 16 Maio 2023), ele detém todos os poderes, “legislativo, executivo, judiciário, sobre a polícia, forças armadas, etc. O rei
preside ao Conselho de Ministros. (…) O rei é o actor económico principal, o maior banqueiro privado, com dois terços do sector. (…) O rei é o primeiro agricultor, com o Domínio
real que controla o essencial das terras férteis. Ele possui o sector energético, nomeadamente as empresas eólicas, em parceria com empresas estrangeiras.”
… e política externa
Portugal saúda os esforços envidados sob a liderança internacional de Sua Majestade o Rei Mohammed VI em prol da paz, do crescimento inclusivo e do desenvolvimento sustentável no seio do Continente africano. O papel especial de Sua Majestade o Rei enquanto Presidente do Comité Al Qods foi enfatizado. (Ponto 89)
Portugal considera igualmente que Marrocos é um ator regional e internacional credível e escutado, que desempenha um papel determinante para a estabilidade, a segurança e o desenvolvimento na região atlântica, no Mediterrâneo, na zona sahel-saara e em África. (Ponto 90)
Desde 2020 que Marrocos, ao aderir aos “Acordos de Abraão” em troca do reconhecimento da sua soberania sobre o Sahara Ocidental por parte do já derrotado eleitoralmente Presidente Donald Trump, se tornou um desestabilizador da região,
ao introduzir formalmente, e ao reforçar a cooperação, nomeadamente nos domínios da defesa e da segurança, com Israel. Como é evidente, isto significa na prática negar o compromisso de Mohamed VI enquanto Presidente do Comité Al Qods e introduzir um novo actor de peso na região, regido por um sistema cada vez mais percebido como de apartheid contra os palestinianos e parte activa dos conflitos do Médio Oriente.
Mais do que ser escutado internacionalmente, é Marrocos que escuta ilegalmente, utilizando
o programa espião Pegasus (e outros, mais recentes), de origem israelita, para aceder a informação pessoal de opositores e intelectuais internos e externos, assim
como de estadistas europeus, entre os quais o Presidente francês, Emmanuel Macron e o chefe do governo de Espanha, Pedro Sánchez, e vários dos seus respectivos ministros.
A credibilidade do regime marroquino ficou comprovada com o conhecimento do escândalo de pagamento de subornos, desde há cerca de uma década, a deputados e assistentes do Parlamento Europeu com capacidade de influência em matérias sensíveis como a violação dos direitos humanos no Reino, os acordos comerciais entre a União Europeia e Marrocos, e os direitos do povo do Sahara Ocidental.
A questão do Sahara Ocidental
No que respeita à questão do Saara, o Governo português reiterou o seu apoio ao processo gerido pelas Nações Unidas tendo em vista uma solução política, justa, duradoura e mutuamente aceitável pelas partes.
Os dois Governos concordaram quanto à exclusividade da ONU no processo político e reafirmaram o seu apoio à resolução 2654 do Conselho de Segurança da Nações Unidas, que assinalou o papel e responsabilidade das partes na procura de uma solução política realista, pragmática, duradoura e fundada no compromisso.
Neste contexto, Portugal reiterou o seu apoio à iniciativa marroquina de autonomia, apresentada em 2007, enquanto proposta realista, séria e credível, com vista a uma solução acordada no quadro das Nações Unidas. (Ponto 11)
O “Saara”, nome de um deserto, é o artifício para não mencionar o nome do território não-autónomo considerado pelas Nações Unidas como pendente de descolonização. O que está em causa nestes três parágrafos é o exercício da arte da dissimulação: a ONU, e nomeadamente o seu Conselho de Segurança, tem a responsabilidade de cumprir a sua Carta e as suas resoluções, não de “gerir” um processo que já dura há demasiado tempo (47 anos).
Em 1991, sob os auspícios da ONU e da então Organização de Unidade Africana (OUA), da qual a República Árabe Saharaui Democrática (RASD) era membro de pleno direito desde 1984, ambas as partes, a Frente POLISARIO e o Reino de Marrocos, acordaram num cessar-fogo e na realização de um referendo de autodeterminação. Para esse fim, a ONU estabeleceu a MINURSO – Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (ainda hoje no terreno), que ao fim de alguns anos de trabalho, em 2000, definiu com precisão o corpo eleitoral elegível para participar no referendo.
Foi nessa altura que Marrocos, não tendo conseguido impor os seus critérios, que lhe garantiriam a vitória no processo de consulta, rejeitou o seu compromisso e, sete anos mais tarde, apresentou o chamado “plano de autonomia”. O Enviado Pessoal do Secretário-geral
da ONU tem tentado envolver a União Africana (UA), da qual agora tanto a RASD como Marrocos são membros, no processo negocial, o que tem merecido a rejeição de Rabat.
A resolução 2654 é a última aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas relativa ao Sahara Ocidental (17 Outubro 2022) e a sua primeira frase é “O Conselho de Segurança, recordando e reafirmando todas as suas resoluções anteriores sobre o Sahara Ocidental”. O quadro negocial é enunciado em dois dos parágrafos da primeira parte da resolução (“Considerandos”): “Tomando nota da proposta marroquina apresentada ao Secretário-geral a 11 de Abril de 2007 e acolhendo os esforços sérios e credíveis de Marrocos para fazer avançar o processo com vista a uma resolução, e tomando nota também da proposta apresentada ao Secretário-geral pela Frente POLISARIO a 10 de Abril de 2007. Encorajando as partes, neste contexto, a que continuem a demonstrar a vontade política de alcançar uma solução, nomeadamente examinando de forma mais aprofundada as suas respectivas propostas (...)”.
Na parte decisória, enquanto o ponto 2 refere: “Sublinha a necessidade de alcançar uma solução política da questão do Sahara Ocidental que seja realista, viável, duradoura e aceitável para todas as partes e que esteja baseada no compromisso (...)”, o ponto 4 diz: “Exorta as partes a que retomem as negociações sob os auspícios do Secretário-geral, sem condições prévias e de boa fé, tendo em conta os esforços consentidos desde 2006 e os acontecimentos posteriores, com vista a conseguir uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental no quadro das disposições conformes aos princípios e propósitos enunciados na Carta das Nações Unidas, e nota o papel e as responsabilidades das partes a este respeito.”
Parece evidente que para haver um acordo é necessário que as duas partes discutam as suas propostas. Todos os países que reconhecem apenas uma das partes e apoiam
apenas uma das propostas estão a dificultar o processo negocial e a diminuir o papel da ONU. Se, além disso, apoiam a proposta que não respeita a Carta das Nações
Unidas, a resolução no 1514 (XV) da Assembleia Geral "Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais", todas as outras resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança pertinentes, o parecer do Tribunal Internacional de Justiça e, mais recentemente, as três sentenças já publicadas do Tribunal Geral e do Tribunal de Justiça da União Europeia, incorrem em grave incumprimento do Direito Internacional.
Para que as Nações Unidas possam exercer o seu mandato, é preciso que os seus Estados-membro apoiem os mecanismos existentes, nomeadamente, na questão vertente, o Enviado Pessoal do Secretário-geral Staffan De Mistura, que ao fim de ano e meio em funções ainda não conseguiu visitar o território ocupado do Sahara Ocidental, por impedimento das autoridades marroquinas, como reconhece o relatório do Secretário- geral de Outubro de 2022.
No caso português, acresce que a Constituição da República estabelece, no ponto 3 do Artigo 7º: “Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.”
Em 16 de Fevereiro de 2021 o Gabinete do Ministro de Estado e Negócios Estrangeiros respondia assim a uma pergunta escrita apresentada pelo PAN a 13 de Janeiro do mesmo ano: (…) “A posição portuguesa sobre o Sahara Ocidental assenta na defesa de uma solução justa, duradoura e mutuamente aceitável, que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, no quadro das negociações lideradas pela ONU, das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e dos princípios da Carta das Nações Unidas. Nesta conformidade, Portugal tem mantido um diálogo aberto, equidistante e equilibrado sobre a questão do Sahara Ocidental com todas as partes, incluindo com o Reino de Marrocos, com representantes da Frente Polisario, bem como de outros Estados da região.” (...)
Uma política externa de “dois pesos, duas medidas”
Os dois países deploram a invasão da Ucrânia e apelam a uma solução que respeite os princípios do Direito Internacional e a Carta das Nações Unidas, nomeadamente o respeito pela soberania e pela integridade territorial de todos os Estados. Os dois Chefes de Governo manifestaram a sua preocupação com as violações dos direitos humanos e do direito humanitário e com os crimes contra a humanidade que têm sido denunciados no quadro do conflito. (Ponto 98)
Não é preciso dizer muito para se perceber, ao comparar a linguagem deste ponto com a do ponto relativo à questão do Sahara Ocidental, como o respeito pelo Direito Internacional e pela Carta das Nações Unidas, pela soberania e pela integridade territorial, e as preocupações com as violações dos direitos humanos e do direito humanitário não são iguais para todos os povos. Uns merecem, outros desaparecem.
O futebol também serve para encobrir
Os dois países saúdam a candidatura tripartida de Portugal, Marrocos e Espanha visando o acolhimento do Campeonato do Mundo de Futebol 2030, que constitui um precedente na história do futebol, unindo pela primeira vez países de dois continentes. Esta candidatura comum será de junção entre África e Europa, entre Norte e Sul do Mediterrâneo e entre os mundos africano, árabe e euro-mediterrânico. (Ponto 5)
A Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO) escreveu a 13 de Março de 2023 uma Carta Aberta ao Presidente da Federação Portuguesa de Futebol: “Que credibilidade tem Marrocos para acolher um evento desportivo desta natureza quando,
para alcançar os seus fins políticos, exerce chantagem sobre outros países utilizando rotas de migrantes e drogas, se socorre de subornos a parlamentares e funcionários europeus (como o demonstra o caso Marrocosgate) e deporta sumariamente todas as pessoas que querem visitar o Sahara Ocidental por não lhe convir que vejam o que aí se passa? Que inclusivamente tem impedido o Escritório do Conselho de Direitos Humanos da ONU e o Representante Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental de visitar este território?” [Os dados recolhidos pela Associação dos Amigos da RASD e a AFASPA - Associação Francesa de Amizade e de Solidariedade com os Povos de África indicam que 291 pessoas de 21 países e 4 continentes foram expulsas do Sahara Ocidental pelas autoridades marroquinas desde Janeiro de 2014. Sete ONG internacionais foram expulsas ou estão proibidas de entrar em Marrocos: Human Rights Watch-EUA, NOVACT-Espanha, Avocats sans Frontières-Bélgica, Friedrich Naumann Stiftung-Alemanha, Amnistia Internacional-Reino Unido, Carter Foundation-EUA, Free Press Unlimited-Países Baixos].
“Apelamos a que a Federação Portuguesa de Futebol reconsidere esta proposta, sob pena de o Campeonato Mundial de Futebol se transformar numa ocasião privilegiada de encobrimento das violações dos Direitos Humanos cometidas pelo regime marroquino e daqueles que, conhecendo a situação, lhe dão cobertura, ficando assim o evento desportivo indelevelmente desprestigiado e exponenciando o dever de denúncia por parte de pessoas e organizações defensoras dos Direitos Humanos.”
Lisboa, 18 de Maio de 2023