Antiga colónia espanhola defende o direito à autodeterminação, cujo referendo tarda em chegar. Com a passagem do tempo, há países a mudarem a sua posição de política externa e a optarem por apoiar um plano sugerido por Marrocos.
Salomé Fernandes - Expresso 12-06-2025
Depois de Donald Trump ter expressado no seu primeiro mandato na Casa Branca apoio ao plano de Marrocos sobre o destino do Sara Ocidental, e de Espanha ter seguido o mesmo caminho em 2022 e França em 2024, em menos de duas semanas surgiram relatos de que o plano submetido por Rabat às Nações Unidas há quase duas décadas reuniu o apoio de três novos países: Reino Unido, Gana e Quénia.
O Sara Ocidental é uma antiga colónia espanhola anexada por Marrocos em 1975, uma ocupação ilegal à luz do direito internacional. A reivindicação da soberania marroquina sobre este território não é reconhecida pelas Nações Unidas, que considera o Sara Ocidental um “território não autónomo”. É disputado por Marrocos e a Frente Polisário, movimento apoiado pela Argélia, que representa o povo sarauí na sua luta de quase meio século pela autodeterminação e autonomia territorial. Há décadas que a promessa das Nações Unidas de patrocinar um referendo de autodeterminação do território está por concretizar, apesar de ter constituído uma missão (a MINURSO) com esse objetivo em 1991.
Marrocos propõe um plano de autonomia para o Sara Ocidental em que o território ficaria sob a sua soberania, sujeito a partilhar o lucro da exploração dos seus recursos naturais e atribuindo a Rabat a jurisdição exclusiva de questões de segurança nacional, integridade territorial, relações externas, bem como prerrogativas constitucionais e religiosas do rei.
Riccardo Fabiani, diretor interino do Programa sobre o Médio Oriente e Norte de África do International Crisis Group, considera que a simultaneidade dos anúncios “é casual”, mas demonstrativa do lóbi exercido por Rabat. “Marrocos continua a operar incansavelmente nos bastidores para pressionar os seus parceiros a mudar a linguagem sobre o plano de autonomia para o Sara Ocidental”, escreveu em resposta ao Expresso, acrescentando que “há um aumento do número de países na Europa e em África que considera a sua relação com Marrocos demasiado importante para a pôr em risco, por não alterarem a sua linguagem sobre o Sara Ocidental, e que Marrocos está a capitalizar esta situação o mais que pode”.
No início do mês, o Reino Unido deixou por escrito que considera a proposta de autonomia de Marrocos “como a base mais credível, viável e pragmática para uma resolução duradoura da disputa”. Numa declaração conjunta com Marrocos, descreve que o momento para uma resolução “tarda demasiado” e que “se houver boa vontade de todos os lados, pode encontrar-se uma solução muito em breve”. No entanto, destacou o “papel central do processo liderado pela ONU” na procura de uma “solução política mutuamente aceitável”.
Esta mudança de postura já foi referida em debates políticos. A questão do Sara Ocidental esteve no centro de uma discussão do Comité de Descolonizaçãodas Nações Unidas, na qual Antigua e Barbuda defenderam que o apoio ao plano de um outro membro do Conselho de Segurança da ONU reforçava a legitimidade da proposta. Segundo a ONU, a representante de Marrocos alegou na reunião que o plano proposto reúne o apoio de 118 países e que o enquadramento do tema em termos de descolonização não reflete a realidade histórica ou evolução da questão. No entanto, também houve países, como o Zimbabwe ou a Namíbia, a expressarem solidariedade com a população do Sara Ocidental. Do lado da Frente Polisário, o representante Sidi Mohamed Omar, descreveu a proposta marroquina como “uma manobra através da qual o Estado ocupante tenta ‘legitimar’ a ocupação ilegal” daquele território.
Segundo a Reuters, o Quénia anunciou no final de maio que apoia o plano proposto por Marrocos, onde abriu uma embaixada, e o Gana adotou a mesma posição a 5 de junho. Nenhum dos dois países emitiu comunicado a partir dos seus Ministérios dos Negócios Estrangeiros a dar conta da mudança política externa, que foi antes anunciada pelo Governo marroquino. O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Marrocos destacou que o Quénia “considera o plano de autonomia como a única abordagem sustentável à resolução da questão do Sahara” e que o Gana o vê como “a única base realista e sustentável para uma solução mutuamente aceitável”.
A par deste passo diplomático foram anunciadas medidas de cooperação entre Marrocos e os dois países africanos. Com o Gana, ficou a promessa de cooperação na defesa, desenvolvimento de um acordo de isenção de vistos e cooperação ao nível da segurança alimentar. Com o Quénia, há planos para Marrocos acelerar a exportação de nutrientes para o solo e aumentar a importação de produtos quenianos - bem como para recomeçar os voos diretos entre Nairobi, Rabat e Casablanca para impulsionar o turismo.
Omar Mih, representante da Frente Polisário em Portugal, destaca que as posições recentemente assumidas pelo Reino Unido e outros governos “não alteram em nada o estatuto internacional” do Sara Ocidental, enquadrado pela ONU como uma questão de descolonização.
“Apesar do estatuto internacional muito claro do Sara Ocidental como questão de descolonização, as posições de certos governos continuam a encorajar Marrocos a manter a ocupação ilegal de partes do território sarauí e a impedir o povo sarauí de exercer o seu direito inalienável à autodeterminação e à independência. Estas posições complicam ainda mais os esforços da ONU para encontrar uma solução pacífica e justa para o conflito e podem causar mais tensões que não contribuirão de forma alguma para a paz e a estabilidade dentro e fora da nossa região”, comentou em resposta ao Expresso. Mih atribui a estes governos a responsabilidade pelo atual bloqueio do processo de paz e espera que “retifiquem a sua postura e contribuam, de forma construtiva, para a procura em curso de uma solução justa e duradoura, baseada no pleno respeito pelo direito internacional”.
O Expresso tentou entrar em contacto com os Ministérios dos Negócios Estrangeiros do Quénia, do Gana e de Marrocos, mas até à publicação deste artigo não obteve resposta.
Fabiani aponta para uma dificuldade crescente da posição diplomática e internacional da Frente Polisário. “A pressão sobre o movimento para que faça algo diferente da sua posição tradicional (o referendo pela autodeterminação) está a crescer e pode tornar-se insustentável a dada altura. A Frente Polisário terá de se adaptar a estas novas circunstâncias em algum momento, seja apresentando uma nova iniciativa diplomática, aceitando retomar as conversações com Marrocos ou intensificando o conflito com aquele país”, analisa.
Cinco anos marcados por tensões
Em 2020 a Frente Polisário acusou Marrocos de violar o cessar-fogo que vigorava desde 1991 e decretou o fim da trégua. Omar Mih defende que o movimento fez várias concessões e iniciativas para impulsionar o processo de paz e que o povo sarauí é, desde 1975, “vítima de contínuos atos de agressão por parte do regime marroquino”.
“Após quase três décadas de espera e paciência, foi Marrocos que violou, com total impunidade, o acordo de cessar-fogo e ocupou mais territórios sarauís a 13 de novembro de 2020, obrigando o povo sarauí a retomar a sua luta armada em legítima defesa. Isto demonstra claramente que Marrocos continua sem vontade política alguma para avançar no sentido de uma solução definitiva em conformidade com o direito internacional”, observou, acrescentando que “o que Marrocos não conseguiu alcançar pela força durante quase cinco décadas, não conseguirá através de uma declaração ou posição deste ou daquele governo, pois o Sara Ocidental e o seu povo não são ‘moeda de troca’”.
Um relatório das Nações Unidas divulgado em outubro descreve que a situação no Sara Ocidental continua a ser marcada por tensões e hostilidades de baixa intensidade entre Marrocos e a Frente Polisário. Apesar do secretário-geral reconhecer que a MINURSO não detetou sinais de escalada imediata das hostilidades, alertava para essa possibilidade tendo em conta os disparos e ataques aéreos em proximidade ao muro construído por Marrocos, a rodear parte do Sara, conhecido por ‘berm’.
Também Fabiani alerta para a ameaça de escalada e potenciais repercussões no Magrebe e Sahel. “Até ao momento, este conflito está contido e é de baixa-intensidade, mas pode não ser assim para sempre. O isolamento da Frente Polisário e a postura pró-Marrocos da administração Trump pode levar a Polisário a intensificar os ataques contra Marrocos, com o risco de que a situação se descontrole. É um risco baixo, um cisne negro, mas não pode ser subestimado”, defende.

Sem comentários:
Enviar um comentário