Francisco Carrión @fcarrionmolina - El Independiente
Era uma travessia simbólica e pacífica. Uma marcha pela liberdade que começou em Ivry-sur-Seine, nos arredores de Paris, e terminou em Algeciras, após dois meses de mobilização, workshops, cartas aos presos e reuniões com associações locais. Mas no último troço, quando Claude Mangin, mulher do preso saharaui Naama Asfari, tentou chegar a Tânger para o ver na prisão, a marcha deparou-se com um muro: a vigilância marroquina, implantada em pleno território espanhol.
“Assim que chegámos ao porto de Tarifa, a vigilância começou”, recorda um dos participantes em conversa com El Independiente. Agentes marroquinos em trajes civis fotografaram e filmaram os membros do grupo na cafetaria do porto. No momento do embarque, pelo menos quatro indivíduos filmaram os activistas, especialmente Mangin. Controlo sistemático, com gestos coordenados, numa zona sob soberania espanhola. “Diziam-nos onde podíamos estar e onde não podíamos estar”, conta outra testemunha.
“Estavam a filmar-nos um a um”, explicam. "No barco, estavam sempre a filmar-nos. Percebia-se que não eram passageiros normais. Alguns deles tinham-se sentado numa fila só para nos colocar ao alcance da câmara. Mangin recorda-se mesmo de ter visto um dos alegados passageiros a receber discretamente instruções de outro homem com um crachá ao pescoço: "Era uma operação coordenada.
Ao embarcarem no ferry para Tânger, a situação agravou-se. Vários "pseudo-passageiros" continuam a filmar o grupo a partir do interior. A delegação identificou pelo menos vinte pessoas com comportamentos típicos de uma vigilância secreta. Alguns deles foram posteriormente reconhecidos como agentes marroquinos pelos polícias fardados que se encontravam no barco.
O ferry, de bandeira espanhola, tem a bordo um posto da polícia marroquina para as formalidades de imigração. Mas o que é insólito é a proliferação de polícias marroquinos à paisana, que actuaram sem se identificarem e sem qualquer tipo de controlo por parte das autoridades espanholas.
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| Claude Mangin, empunha um cartaz com a cara do seu marido, que cumpre uma pena de prisão de 30 anos em cárceres marroquinos |
Fomos encurralados, sem polícia espanhola, num barco espanhol
A bordo, a pressão transformou-se em intimidação direta. Uma ativista foi agredida enquanto filmava no ferry: um indivíduo arrancou-lhe violentamente o telemóvel, causando-lhe dores na mão. Quando tentou recuperá-lo, o homem foi agressivo. Só depois de se ter dirigido a um polícia marroquino identificado, e em troca de apagar o vídeo gravado e esvaziar o contentor de imagens, é que o telemóvel lhe foi devolvido. A pressão era tal que não havia espaço para exercer os direitos básicos. "Estávamos presos, sem polícia espanhola, num barco espanhol", lamenta a vítima.
Este não foi um incidente isolado. Mangin afirma que vários membros do grupo sofreram intimidações semelhantes. "Fomos silenciados à força. É uma forma de repressão que tem por objetivo silenciar aqueles que denunciam a ocupação do Sahara Ocidental". A ativista francêsa sublinha que o objetivo de Marrocos é semear o medo: “Se atacam os europeus com esta impunidade, imaginem como tratam os saharauis”.
Detenção sem motivo e regresso forçado
Mangin, que já tinha sofrido cinco expulsões anteriores de Marrocos, nem sequer foi autorizada a desembarcar. Nem os seus acompanhantes: personalidades eleitas, jornalistas e activistas de França e Espanha. Ninguém recebeu uma justificação por escrito, como exigido por lei. Os sinais telefónicos foram bloqueados durante uma parte da viagem. A delegação foi detida e reenviada para Tarifa sem qualquer explicação.
A frieza com que foi efectuado o regresso dos catorze activistas, sem qualquer notificação, levanta sérias questões jurídicas entre os que sofreram o incidente. "Como pode um Estado agir com tanta impunidade num meio de transporte sob a jurisdição de outro? A resposta parece estar nos acordos de migração entre Espanha e Marrocos, que são opacos e sem controlo parlamentar. "Na nossa reunião no Congresso dos Deputados, denunciámos a ausência da polícia espanhola. Fomos deixados à sua mercê, tanto na ida como no regresso", lamentam.
“No ferry havia uma caterva de polícias marroquinos à paisana - que no início se faziam passar por passageiros com as suas malas e tudo - que agiam como se estivessem na sua aldeia, intimidando os passageiros, inscrevendo-os um a um, mesmo em solo espanhol, na cafetaria do porto e quando subiam ao passadiço, dizendo-lhes onde podiam filmar e onde não podiam e onde podiam estar e onde não podiam estar, recebendo ordens dos seus superiores, que estavam identificados”, denunciou a ativista pró-saharaui Cristina Martinez. "E onde estava a polícia espanhola para os defender? Não estavam. Tudo isto num navio da Balearia, que no seu sítio Web tem os seus navios registados como navios espanhóis ou da UE. E em águas espanholas", acrescenta.
Represálias políticas e silêncio institucional
A Marcha da Liberdade tinha por objetivo sensibilizar para a situação dos presos saharauis, muitos dos quais foram condenados na sequência de confissões feitas sob tortura, como reconhece o Comité contra a Tortura da ONU. Marrocos, no entanto, tem ignorado sistematicamente estas resoluções. [Claude] Mangin, cuja última visita ao marido [Enaama Asfari, um dos presos condenado a 30 anos de prisão na sequência do acampamento da dignidade de Gdeim Izik em 2010] se seguiu a uma greve de fome em 2018, tornou-se um símbolo desta luta.
Desde 2016, Marrocos impede-a de entrar no país. Segundo a ONU, trata-se de uma retaliação pelas queixas que ela e o marido apresentaram a organismos internacionais. “As autoridades marroquinas agem como se o direito internacional não existisse para elas”, diz Mangin.
A presença de agentes marroquinos a atuar em território e meios de transporte espanhóis abre um debate incómodo sobre a soberania. Até à data, o Governo espanhol ainda não tomou uma posição. Sumar e outros partidos de esquerda pediram explicações ao Parlamento. “Onde estava a polícia espanhola?”, perguntam os activistas. “Como é possível que um grupo de europeus seja intimidado por agentes estrangeiros em solo espanhol e em águas espanholas sem que ninguém intervenha?”, perguntam.
O que começou por ser uma iniciativa isolada transformou-se numa rede de solidariedade. Durante dois meses, a Marcha percorreu onze cidades, organizou workshops, recolheu cartas dirigidas aos presos saharauis e estabeleceu alianças com associações locais. “As respostas, quando chegam, tocam o coração daqueles que escreveram essas cartas da Europa”, diz Claude. "Estabelecemos contacto com associações espanholas de amizade com o povo sarauí. Agora somos amigos. São eles que nos agradecem por termos feito esta marcha. Reactivámos uma dinâmica. Estão todos desesperados porque não avançam, porque o governo espanhol bloqueia tudo e porque, no fim de contas, são obrigados a dedicar-se à ajuda humanitária, quando sabem muito bem que a ajuda humanitária não é solução e que não vão continuar a fazê-lo durante mais 50 anos. Mas este modus vivendi também parece ser imposto pelo governo espanhol, porque acabam por dizer: damos-vos dinheiro para apoiar as cidades geminadas e não chateiem".
A rede também cresceu em solo francês, onde a proximidade de Marrocos contribuiu para silenciar a causa. Mesmo as autarquias que até agora não tinham uma posição política começaram a interessar-se pelo conflito. “Fomos bem recebidos em Bordéus, Montpellier e noutras cidades francesas, apesar das pressões da diplomacia marroquina”, diz Mangin. E acrescenta que Marrocos promove geminações com cidades francesas para reforçar a sua versão do Sahara: "Mas isso gera reacções. Muitos presidentes de câmara recusam-se a colaborar com esta estratégia".
As queixas estão a decorrer
A organização começou a apresentar queixas formais. Há vídeos, fotografias, testemunhos. Mangin partilhou com os deputados espanhóis um relatório que documenta as violações de direitos no barco. Está também prevista a apresentação de um relatório ao Comité contra a Tortura da ONU. "Vamos prosseguir com as queixas contra Marrocos e ao Comité contra a Tortura, bem como com as queixas às autoridades espanholas sobre o tratamento que recebemos num navio espanhol em território espanhol e as violações dos direitos humanos de que fomos vítimas. Vamos também denunciar os franco-marroquinos que nos atacaram em várias cidades de França. Não deixaremos passar nada, somos muitos e já começámos a enviar cartas de protesto e pedidos de explicação. Pedimos a toda a nossa rede e a todas as pessoas com quem nos cruzámos que fizessem o mesmo. Marrocos terá de continuar a ouvir-nos", adverte.
Uma queixa apresentada à polícia de Madrid descreve em pormenor os acontecimentos. Descreve as agressões sofridas, as fotografias tiradas aos activistas à chegada ao porto, as intimidações no interior do ferry e as irregularidades cometidas pelos agentes marroquinos. O documento inclui fotografias, nomes de testemunhas e a identificação do agressor. "Em outubro de 2020, fui assaltado no porto de Tânger Med. A polícia marroquina levou-me duas unidades externas e um computador no porto de Tânger Med, e os meus pedidos de relatório de apreensão ou de apresentação de queixa por roubo foram recusados pelas autoridades marroquinas, que procederam à minha expulsão. Desta vez, a violência foi física", explica o queixoso, que pede o anonimato.
O silêncio oficial e o futuro
O Governo espanhol mantém-se em silêncio. O ministro dos Negócios Estrangeiros, o socialista José Manuel Albares, não fez qualquer declaração sobre o incidente. As perguntas dos deputados de Sumar, Podemos e IU ainda não obtiveram resposta. Os meios diplomáticos remetem para os acordos bilaterais com Marrocos, que em caso algum autorizam abusos a bordo de navios com pavilhão espanhol.
A delegação planeia outras acções. "Vamos apresentar queixas às autoridades judiciais espanholas e francesas, bem como às organizações internacionais", afirma Mangin. A mensagem que será transmitida se não reagirmos é devastadora. "Teremos de saber qual a responsabilidade de Espanha em tudo isto. Por mais acordos que existam entre os dois países sobre cooperação em matéria de imigração, não há justificação para o que aconteceu. A Espanha tem de se explicar", acrescenta Martínez.
A Marcha pela Liberdade não atingiu o seu objetivo final: permitir que Claude se reunisse com o seu marido. Mas alcançou outro objetivo: quebrar o silêncio. Colocou a situação dos prisioneiros saharauis de novo na ribalta internacional e pôs em causa a impunidade de Marrocos. “A luta pelo Sahara Ocidental ainda não terminou”, adverte Claude Mangin, “cada obstáculo que nos impõem torna-se uma nova razão para continuar”.



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