MEMÓRIAS DA GUERRA DO SAHARA OCIDENTAL CONTRA O EXÉRCITO DE
OCUPAÇÃO MARROQUINO.
Marrocos perdeu um batalhão e quatrocentas toneladas de
armamento na batalha de Mahbes
Crónicas de imprensa sobre os 16 anos de guerra no Sahara
Ocidental contra a ocupação militar marroquina. Alguns meios, nas suas salas de
redação ou nas suas elaborações teóricas, afirmam que se tratou de “uma guerra
de baixa intensidade”. Demos a palavra aos que a viveram no palco de operações,
repórteres de guerra em muitos conflitos armados, analistas e estrategas
militares. Arquivos do diário espanhol com maior circulação em Espanha, El
País, distribuído nos últimos anos em Marrocos.
Marrocos perdeu um batalhão e quatrocentas toneladas de
armamento na batalha de Mahbes - Uma das mais importantes vitórias da Polisario
Às seis da manhã de domingo, 14 de outubro, os 1.200 homens
que integravam o XIV batalhão RIM de Infantaria das Forças Armadas marroquinas,
estacionadas em Mahbes desde há quatro anos, são sacudidos no seu sono, ou no
interior das trincheiras, por uma poderosa salva de disparos de diversos
calibres. Com o seu proverbial conhecimento do terreno, a Polisario, conseguira
fazer aproximar os seus Land Rover à distância de um tiro espingarda. Os
defensores da primeira linha foram ceifados em poucos minutos.
Os seus corpos, crivados de balas, alguns em avançado estado
de decomposição, encontravam-se ainda no mesmo lugar onde tombaram nove dias
depois do confronto.
Um pequeno grupo de jornalistas, integrado pelos correspondentes
da imprensa ocidental acreditados na capital argelina, puderam vaguear por esse
espaço durante várias horas na localidade devastada, onde unicamente emerge,
quase intacto, o antigo forte do Tercio (tropas coloniais espanholas). Foi
nesse lugar que procuraram refugiar-se os efetivos do batalhão marroquino
quando viram impedida a sua fuga. Os combatentes saharauis limparam por
completo todas as linhas de defesa em seis horas; quatro horas mais bastaram
para terminar com toda a resistência no perímetro de Mahbes. A jornada do dia
15 seria dedicada a inspecionar as imediações à procura de quem poderá ter
fugido. Alguns militares marroquinos chegaram a caminhar pelo deserto cerca de
setenta quilómetros antes de serem capturados, e é de supor que vários tenham
conseguido pôr-se a salvo junto da guarnição de Zag (sul de Marrocos).
Mahbes é uma localidade de morte e desolação quando a
visitámos. A reduzida escolta que nos acompanha – meia dúzia de saharauis,
armados unicamente de armas automáticas Kalasnikov – revela o inusitado desdém
que manifesta a Polisario ante a eventualidade de um intento marroquino em
recuperar a praça-forte. Essa hipótese parece ser descartada pela Frente que,
no entanto, controla ferreamente todas as Imediações e se é certo que optou por
não se instalar na própria localidade, isso obedece à constatação de que, se o
fizesse, constituiria um alvo demasiado fácil para os aviões F-5 e Mirage F-1
marroquinos, que vieram bombardear o local.
Contamos 132 cadáveres marroquinos; mais de metades jazem
amontoados no fundo das trincheiras; outros estão dispersos por toda a
localidade. Entre a última linha de defesa e o centro de Mahbes tropeçamos com
uma dúzia de homens mortos, cujos rostos, podem ainda ser reconhecidos,
denotando a juventude que possuíam e que lhes foi arrebatada em minutos.
O espetáculo é aterrador, e o fedor que emana dos corpos,
terrível. Um dos jornalistas não resiste a tudo aquilo e vomita.
Os homens do XIV batalhão da Infantaria Real Marroquina
estavam desmoralizados. Esta é a impressão retirada do conteúdo de muitas notas
pessoais que escreveram e que foram recuperadas pela Polisario. Os jornalistas
puderam ler também cerca de uma centena de documentos, todos eles com a
chancela de “secreto” ou “muito secreto”, enviados pelo chefe da posição
militar, o coronel Mohamed Chamsseddin, para a chefia do Estado Maior, o Estado
Maior General das FAR, o Estado Maior Avançado de El Aaiún e outras
departamentos oficiais.
Drogas,
homosexualidade e deserções
Num desses documentos, datado de Rabat e enviado pelo Estado
Mayor, adverte-se a guarnição do recrudescimento do tráfico e consumo de drogas
entre as forças marroquinas instaladas no Sahara Ocidental. À margem do mesmo
há uma anotação onde se lê: «um dos mais graves, o do Cabo Mohamed Bukhari, que
foi descoberto quando fotografa um grupo de soldados que fazem comércio de kif
com alguns membros da 2. RIM º ... ". Várias notas de serviços referem-se
a deserções. Uma delas, assinado em Mahbes, a 27 de março de 1979, pelo
sargento Ali Hadir, refere-se ao "desaparecimento" do soldado de
segunda classe El Jonssi ", que abandonou o seu posto de vigilância ao
depósito de munições."
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Soldado marroquino nas trincheiras: a espera, o calor, a desmotivação... |
Um dos documentos capturados pela Polisario é a cópia de uma
mensagem, recebida em Mahbes a 17 de julho de 1979, enviado pelo Estado-maior,
particularmente significativa do estado de ânimo em que se encontrava a alta
oficialidade em vésperas da cimeira africana de Monróvia. Diz o texto: «Sabemos
que, aproveitando-se da presença de Sua Majestade o Rei na cimeira da OUA, os
rebeldes decidiram intensificar os seus ataques a localidades que, por serem
conhecidas, podem suscitar um interesse internacional. Os objetivos
especialmente assinalados são Tan-Tan, Tarfaya, Laayun e todas as localidades a
norte de Uarkziz. »
Pelas descrição das circunstâncias do ataque, relatadas por
meia centena de prisioneiros marroquinos
que connosco falaram antes da visita a Mahbes, é possível deduzir que a
Polisario dispunha de uma importante concentração de forças, possivelmente da
ordem de 2.000 a 3.000 homens.
Um potente armamento
No que diz respeito ao armamento, os próprios prisioneiros
reconhecem que a guarnição tinha-o de sobra e era superior ao utilizado pelos
atacantes. A guarnição contava com um esquadrão de carros blindados, integrado
por oito AMX (apenas quatro deles estavam na localidade no momento do ataque),
um esquadrão de artilharia pesada e um grupo especial de apoio composto por
baterias de mísseis terra-terra, dos tipos TOW, fabricados pela firma norte
americana Hughes, e SAM-9, de fabrico soviético.
Ao atacar e ocupar Mahbes, a Polisario queria demonstrar a
ineficácia da aviação marroquina, já que o terreno sobre o qual se encontrava a
guarnição - totalmente plano - facilita a eventual intervenção da força aérea.
Mas nem os Mirage nem os F-5 puderam alterar o curso dos acontecimentos. Mahbes
caiu no espaço de um só dia, embora combates esporádicos tivessem continuado,
em alguns setores, durante mais de 36 horas. O coronel Chamsseddin não se
encontrava no local; o seu adjunto, o capitão Mohamed Sakka, depois de se ter
convencido de que não obteria os reforços que havia pedido a Zag, fugiria,
junto com outros oficiais, num dos carros blindados.
Mais de quatrocentas toneladas de armamentos diversos, entre
os quais, completamente intacto, um míssil norte-americano TOW e o seu sistema
completo de tiro, foram recuperados pela Polisario. Mahbes tinha para os
saharauis um valor simbólico. Nesta localidade não só se radicara em tempos
passados um grande destacamento das forças nómadas, mas também foi ali que se
instalou o embrião da primeira administração saharaui e se constituiu o
Conselho Nacional Saharaui, integrado por uma maioria de membros da antiga
Yemaa (parlamento indígena no tempo colonial espanhol). As forças marroquinas
tinham concluído em Mahbes a ocupação de todo o Seguiet el Hamra (região norte
do Sahara Ocidental).
A localidade constitui uma importante peça do eixo
Tinduf-Smara e a sua perda converte toda a zona sul do próprio território
marroquino num lugar ainda mais inseguro que no passado. Muito poucos pontos de
resistência restam a Marrocos na parte norte do Sahara Ocidental. Com exceção
do triângulo Aaiún-Bu-Craa-Smara, existem apenas guarnições localizadas em
Bojador, Guelta-Zemur e Bir-Enzaram. Todo o noreste da zona é controlado pela
Polisario.
Os saharauis dão provas de grande desprezo àquilo que
consideramos normas elementares de segurança, mas que, no seu caso, não têm
nenhum significado. A guerra do Sahara passou já, de forma clara, a uma fase
muito diferente da tradicional guerra de guerrilhas. Os seus objetivos são o
ataque e conquista de grandes guarnições, e o número das que vão restando a
Marrocos vai-se reduzindo rapidamente.
MANUEL OSTOS Argel 28 outubro de 1979