sábado, 28 de dezembro de 2013

Uma história … (que não deveria ter acontecido, mas aconteceu)




Há já muitos anos, o meu pai saiu de casa. Atravessou o deserto, cruzou o muro e, durante muito tempo, não soubemos nada dele. Demo-lo como desaparecido até que um bom dia nos chegaram notícias dele, dizia-nos que estava bem, embora a vida ali fosse também muito dura e sob o regime de ocupação marroquino estava muito complicado arranjar um trabalho, tinha decidido voltar a casar-se e a refazer a sua vida ante a suposta impossibilidade de retornar aos Acampamentos.

A minha mãe, o meu irmão e eu, mas sobretudo a minha mãe, tivemos que trabalhar muito para poder sobreviver na precariedade que implica sermos refugiados, mas graças a Deus, à ajuda internacional e à solidariedade das famílias espanholas, temos conseguido seguir em frente e, até hoje, continuamos trabalhando e podemos manter a nossa casa na wilaya de El Aaiún (Acampamentos).

Esta situação de abandono, por muito estranho que possa parecer, não implicou um desapego em relação à figura do meu pai, porque cresci sabendo que os pais ausentes também fazem parte das famílias, ainda que não nos conheçam, ainda que não os conheçamos, e ainda que as relações se limitem a esporádicas chamadas telefónicas ao longo do ano.

Há pouco mais de três anos, a população saharaui, farta de sofrer os danos materiais invisíveis da ocupação, foi para o deserto e ergueu um acampamento que passou a ser conhecido como Gdeim Izik e durou quase um mês. Durante esse tempo muitos saharauis deslocaram-se para esse lugar para aí se instalarem com as suas famílias e poderem gozar a experiencia da autogestão, o apoio mutuo, a liberdade, o direito a dizer quem és sem por isso sofreres represálias. Criaram algo parecido com o que vivemos nos Acampamentos de Refugiadas e Refugiados de Tindouf (no sudoeste da Argélia), uma realidade muito precária em recursos mas onde não corremos o risco de ser violentadas ou agredidos por pôr um pé na rua.

Foi como um sonho de que despertámos violentamente na manhã de 8 de novembro.

Nesse dia, nesse mês, do outro lado do telefone não ouvimos a voz de meu pai, mas a de uma das minhas irmãs, que nos contou que ele tinha sido preso durante o desmantelamento do acampamento de Gdeim Izik, e que ainda não sabiam muito bem onde estava nem o que lhe havia sucedido. Os nervos, o desespero, a sensação de vulnerabilidade e as chamadas telefónicas sucederam-se muitas vezes, tanta que agora não poderia enumerá-las.



Até que soubemos onde estava, numa prisão perto de Rabat, a 1.100 km dos seus familiares mais próximos.

Passaram-se dois anos até que os meios de comunicação nos puseram ao corrente, em princípios de 2013, de que 20 civis seriam julgados por um tribunal militar, de duvidosa moralidade e de muito mais duvidosa legalidade. As condenações foram desproporcionadas, sangrentas… algo destinado a ser dissuasório para a população saharaui residente no Sahara Ocidental: uma demonstração de poder do Reino de Marrocos, dono das vidas de quem reside no SEU território (tendo em conta que este mesmo reino delimita qual é a margem da legalidade internacional).

Após este julgamento, o estado dos presos de Gdeim Izik saiu nos órgãos de comunicação social, informações sobre o tratamento abusivo recebido por aqueles que estão retidos como presos políticos, não só no que diz respeito aos meios que as autoridades marroquinas utilizam para arrancar informações dentro das prisões, mas também no que diz respeito à alimentação, espaço, regime de visitas, acesso aos cuidados de saúde em caso de doenças crónicas ou resultantes de tortura... em suma, outra falha de direito internacional.

Sabia, sentia, desejava…ir visitar o meu pai, e a la família dos Territórios Ocupados, ainda que no fundo sentisse um pouco de medo quando pensava que teria que atravessar Marrocos, sozinha, num autocarro público que me levasse até à capital, e a partir daí outro que me levasse até à prisão. Tinha ouvido tantas histórias do assédio e perseguição que a polícia marroquina faz às famílias saharauis que vão a visitar os seus presos… sobre passaportes apreendidos, sobre longas detenções para comprovar o incomprovável, para que tenhas bem claro que é o seu Estado quem tudo controla e que tu, para ele, não vales nada.

Há seis meses, depois de quatro dias atravessando o deserto, os Territórios Libertados, Mauritânia e o Sahara Ocidental, cheguei por fim a El Aaiún, onde me recebeu a família, que me informaram sobre como realizar a viagem até Rabat da forma mais segura. Subi para o autocarro e, embora as pernas me tremessem em cada controlo policial, pude, por fim, chegar a tempo do horário de visitas e abraçar o meu pai.

Comprovei que, apesar da injustiça de que estão sendo vítimas, sentem-se muito unidos; e que graças a Deus e à enorme pressão que as e os ativistas saharauis realizam mediática e internacionalmente para dar visibilidade a esta violação dos Direitos Humanos em nossa casa e com a nossa gente, as condições mínimas de higiene, alimentação e horários de visitas estão a ser mais respeitados pelas autoridades marroquinas e deixam-nos permanecer todos juntos na mesma sala para receber os seus familiares.



A visita terminou muito rapidamente …demasiadamente rápido… e outra vez voltei ao caminho de 1100 km para voltar a El Aaiún com os meus olhos cheios de lágrimas e o meu coração a querer voltar.

Passaram-se 6 meses, 7, 8… e ao nono mês voltei a passar quatro dias de viagem para atravessar todo o Sahara Ocidental, Mauritânia e El Bedía, até chegar de novo aos Acampamentos… Tudo isto sem saber se haverá uma segunda oportunidade de visitar o meu pai, porque toda a família, e eu própria, vemos o enorme risco que é enfrentar de novo a aventura de me deslocar sozinha até Rabat: uma vez saiu bem, mas tentar uma segunda vez é, talvez, desafiar demasiado a sorte.

Não perco a esperança de que se faça justiça a meu pai, como a todos os outros presos, que possa ser julgado por um tribunal civil que elimine a condenação a cadeia perpétua que lhe foi imposta e permita que nos reencontremos e abracemos fora dos muros de uma prisão marroquina… Inshallah…


Chamo-me Fatimetu*, tenho 24 anos, e sou saharaui.

Fonte: El Sáhara de los Olvidados / Grupo Jaima // Por Auxi J. León


¡LIBERDADE PARA OS PRESOS POLÍTICOS SAHARAUIS!

SAHARA LIVRE!


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*Fatimetu é um nome muito comum que aqui é usado como pseudónimo para proteger a identidade da protagonista desta história.

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