segunda-feira, 4 de abril de 2022

Brahim Ghali: "O acordo de Sánchez com Marrocos é uma reedição, pior se possível, do abandono de 1975"


Brahim Ghali - SG da Frente POLISARIO e Presidente da RASD

Entrevista realizada por ANDROS LOZANO 

EL MUNDO  03-04-2022


O líder da Frente Polisario e presidente da República Árabe Saharaui Democrática fala em exclusivo ao EL MUNDO, a partir dos campos de Tindouf, na sequência do recente acordo entre Pedro Sánchez e Mohamed VI para que seja concedida autonomia ao Sahara Ocidental sob a soberania marroquina.

"Abandonaram-nos à nossa sorte em 1975 e 47 anos depois estão de novo a fazer a mesma coisa". Brahim Ghali, presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD) e a mais alta autoridade militar da Frente Polisario, decidiu quebrar o silêncio que tem mantido desde 18 de Março.

Naquela noite de sexta-feira, segundo pessoas que lhe são próximas, Ghali ficou "furioso" ao saber que Pedro Sánchez tinha confirmado que tinha aceite a proposta de Mohamed VI de que o Sahara Ocidental, uma antiga colónia e província espanhola até à morte de Franco, se tornasse uma região autónoma sob a soberania marroquina.

De facto, o presidente do Governo (espanhol) deixava para trás a possibilidade de se realizar o referendo sobre autodeterminação proposto pelas Nações Unidas desde 1991. Desde então, Marrocos sempre o boicotou, mas serviu para assinar um cessar-fogo entre as partes beligerantes na sequência da Marcha Verde (6-9 de Novembro de 1975), quando 350.000 marroquinos entraram no Sahara Ocidental para o colonizar.

O chefe do governo espanhol viajará "nos próximos dias" para o país do Norte de África, a convite do rei marroquino, para subscrever o acordo e o "roteiro que consolida a nova etapa entre dois países vizinhos" e "parceiros estratégicos", nas próprias palavras de Sánchez.

Agora, com esta informação em cima da mesa do seu escritório, Ghali fala exclusivamente ao El Mundo. É a sua primeira entrevista desde que o acordo entre Sánchez e Mohamed VI se tornou conhecido. Numa carta, o líder espanhol disse ao monarca marroquino que os seus respectivos países devem "construir uma nova relação que evite crises futuras" e salientou que a proposta marroquina de autonomia para o Sahara Ocidental é a "mais séria, credível e realista".

Ghali, apesar de ter recebido numerosas propostas dos meios de comunicação nacionais e internacionais para ouvir a sua opinião sobre o assunto, decidiu responder às perguntas do EL MUNDO. Fê-lo por correio electrónico. Fontes da Polisario em contacto directo e constante com ele explicam que até agora tinha preferido "observar e ouvir os movimentos" feitos pela Espanha e Marrocos após o anúncio do pacto. Das 22 perguntas colocadas, recusou-se a responder a três delas.

A partir do campos de refugiados saharauis em Tindouf, Argélia, Ghali declara que não compreende "a viragem radical" que o governo espanhol tomou em relação ao futuro do povo saharaui.

O homem que em Abril do ano passado, graças ao gesto humanitário que o governo Sánchez fez para com ele, foi internado num hospital em Logroño sob uma falsa identidade e quase furtivamente, sofrendo de Covid e com graves problemas de saúde, recorda que até agora a Espanha tinha "sempre" defendido "uma solução no quadro da ONU". Aos 72 anos de idade e com as suas forças retemperadas, está de volta aos olhos do público, sabendo que as suas palavras serão escutadas atentamente em Espanha.


Após o anúncio do acordo entre Pedro Sánchez e Mohamed VI, alguns meios de comunicação social na Argélia chamaram-lhe "traição" ao povo saharaui. Está de acordo?

É evidente que esta é uma viragem radical dos acontecimentos que não se espera de um país, a Espanha, que é de jure [de jure] a potência administrante do Sahara Ocidental. Para nós, é uma reedição, pior se possível, da situação de 1975, uma vez que está a ter lugar nas costas não só da sociedade civil espanhola, mas também ignorando as diferentes forças políticas e o Parlamento espanhol.


Sente-se pessoalmente traído?

Sinto como qualquer cidadão saharaui se sente face a esta gravíssima decisão. Abandonaram-nos à nossa sorte em 1975 e, 47 anos mais tarde, estão de novo a fazer a mesma coisa. Apesar de tudo, o povo saharaui tem resistido e continuará a resistir até impor os seus legítimos direitos à autodeterminação e à independência.


Alguma vez conheceu Pedro Sánchez ou manteve conversações com ele, e em algum momento ele ou alguém do seu governo expressou o seu apoio à autodeterminação do povo saharaui?

Reunimo-nos a nível multilateral [foi em Fevereiro, em Bruxelas, durante a última cimeira UE-União Africana]. A Espanha sempre defendeu uma solução no quadro da ONU e com base nas resoluções pertinentes da Carta das Nações Unidas. Isto significa defender a autodeterminação do povo saharaui, a fim de completar o seu processo de descolonização. É por isso que não compreendemos esta viragem radical por parte do governo espanhol.


A quem culpa? Quem considera mais responsável por esta nova relação que parece estar a abrir-se entre Espanha e Marrocos após anos de confrontos sobre a imigração ou Ceuta e Melilla?

As relações bilaterais entre Marrocos e Espanha sempre tiveram muitas crises e desentendimentos diplomáticos. Os vários governos de Espanha não conseguiram separar as suas relações bilaterais com Marrocos da descolonização do Sahara Ocidental.


MOROCOS EXIGIU A 'CABEÇA' DE GONZÁLEZ LAYA

Ghali, após ter tido alta do hospital onde foi internado e ter deixado Espanha, viu de Tindouf como o Presidente Sánchez pouco depois dispensou a sua então Ministra dos Negócios Estrangeiros, Arancha González-Laya. Foi ela quem liderou a operação de hospitalização do líder da Frente Polisario em território nacional.

A viagem de um Ghali doente a Espanha incomodou muito Marrocos, que viu a substituição de González-Laya como uma resposta positiva às suas críticas.


O primeiro-ministro espanhol, o seu governo, fez um gesto para consigo quando lhe foi permitido o acesso secreto a Espanha para ser hospitalizado. Como interpreta esse gesto agora, quase um ano depois, quando leu a carta que Pedro Sánchez enviou a Mohamed VI há alguns dias?

Não me cabe a mim responder a essa pergunta. Confunde uma questão puramente humanitária com relações bilaterais entre dois países.


Pensa que nesse momento, quando foi internado num hospital espanhol, o acordo já estava a ser urdido?  Nos salões da diplomacia dança-se lentamente...

Insisto que não me compete responder a essa pergunta. Uma questão puramente humanitária está a ser misturada com as relações bilaterais entre dois países.


O Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken deslocou-se a Rabat esta semana e disse apoiar a posição acordada entre Espanha e Marrocos como "exequível, credível e realista". Qual é a sua opinião?

Os Estados Unidos exprimiram essa opinião, mas sublinharam que ela tem de estar no quadro das Nações Unidas e em conformidade com as suas resoluções.



Em Novembro de 2020, a Frente Polisario voltou a declarar guerra a Marrocos. Está a planear aumentar os ataques contra alvos militares marroquinos?

Não declarámos guerra a Marrocos. Tal como em 1975, fomos obrigados a pegar em armas depois de Marrocos ter quebrado o cessar-fogo na presença dos capacetes azuis da MINURSO [a missão da ONU para o referendo no Sahara Ocidental].


REACÇÃO DA ARGÉLIA COM O GÁS

Na sexta-feira passada, o presidente da empresa pública argelina Sonatrach, Touffik Hakkar, declarou que o seu país está a contemplar um aumento do preço do gás que vende a Espanha, ao contrário do que foi decidido para o resto dos seus compradores europeus.

Hakkar disse à agência pública argelina APS que desde o início da "crise na Ucrânia", os preços do gás e do petróleo "explodiram", e que, apesar de tudo, a Argélia decidiu "manter" preços "relativamente corretos" para os seus clientes. "Contudo, acrescentou, "um novo cálculo de preços com o nosso cliente espanhol não está excluído". As suas palavras foram imediatamente compreendidas em Espanha como uma resposta à "traição" do povo saharaui que os media argelinos apontavam.


A Argélia é um parceiro estratégico da Rússia. Pensa que a invasão da Ucrânia penalizou a Argélia e, por sua vez, os saharauis?

Só posso falar em nome do meu povo e, a este respeito, não vejo as coisas dessa forma.


Pensa que a Argélia pode penalizar a Espanha, reduzindo a exportação de gás através do gasoduto que chega a Almeria? Pensa que ele pode ser fechado, como aconteceu no Outono com o gasoduto do Magrebe, que chega a Cadiz?

Não me cabe a mim responder a estas perguntas. É da responsabilidade de outro país.


Os saharauis que vivem nos campos de Tindouf, fora do muro erguido por Marrocos nas terras que tem vindo a colonizar, em que situação se encontrarão após este acordo?

São parte integrante de todo um povo que luta com dignidade pela sua liberdade e independência.


Neste novo estatuto que Marrocos parece querer conceder ao Sahara Ocidental, como autonomia no seu território e sob a sua soberania, aceitaria ser presidente de uma espécie de comunidade autónoma do Sahara marroquino?

Em primeiro lugar, não existe o Sahara marroquino, existe apenas o Sahara Ocidental no quadro do direito internacional. Tal variante não entra na minha imaginação porque sou o presidente da RASD, um Estado membro fundador da União Africana e reconhecido por mais de 80 países.


Pensa que o laxismo de Marrocos no ano passado ao permitir que milhares de imigrantes entrassem em Ceuta em apenas algumas horas através da sua fronteira foi uma medida de pressão que, a longo prazo, valeu a pena para Mohamed VI?

O que define como laxismo é pura chantagem através do uso de vidas humanas como arma para alcançar fins políticos por parte de Marrocos.


Pedro Sánchez vai viajar para Rabat nos próximos dias com o seu ministro dos Negócios Estrangeiros para visitar Mohamed VI. Marrocos está a dar mais um passo em frente na sua relação já privilegiada com Espanha e a UE, em detrimento da Argélia e do povo saharaui?

A determinação do povo saharaui pela sua luta é total e não está condicionada por qualquer acontecimento externo.


Vê agora o referendo que a ONU tem vindo a convocar há três décadas como um sonho impossível?

 É a única solução possível. É mais vigente do que nunca. A questão do Sahara Ocidental é uma questão de descolonização inacabada e o seu termo só é possível através de um referendo de autodeterminação.


Deputados de Podemos, membros do governo espanhol, incluindo a ministra Ione Belarra, recordaram, e alguns deles demonstraram-no nas ruas, que a sua posição é a favor da autodeterminação do povo saharaui e da mediação da ONU. Compreende que dentro do mesmo governo existam duas sensibilidades tão opostas?

Compreendo que se trata de um governo de coligação e, por conseguinte, não é surpreendente.


Lembra-se se em todos estes anos lhe tiraram uma fotografia ao lado de uma bandeira espanhola?

O que vos posso dizer é que tenho milhares de fotografias com a parte mais nobre de Espanha, que é a sua gente.


Será que tal fotografia se fosse tirada hoje, com o simbolismo que implicaria, Pedro Sánchez se sentiria desconfortável com tal imagem?

Não tem sentido.


Na biografia de Pedro Sánchez, a decisão de entregar o Sahara Ocidental a Marrocos será vista como uma conquista ou como um erro da sua presidência?

Penso que a minha resposta é óbvia. A história dirá.


3 PERGUNTAS, DE 22, NÃO RESPONDIDAS

Das 22 perguntas colocadas a Ghali pelo EL MUNDO, o presidente da República Árabe Saharaui Democrática optou por não responder a três delas. São as seguintes:


P.- Em Maio do ano passado, o Ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino, Naser Burita, questionou se a Espanha estava disposta a sacrificar a sua relação bilateral por si com aquele gesto que fez quando o hospitalizou para o tratar da Covid. O que pensa que aconteceu para que a posição marroquina tivesse feito Sánchez dar meia volta?


P.- Naser Burita descreveu-o, e estas são palavras literais, como "um violador que tolerou a escravatura, tortura, crimes de guerra, crianças-soldados e genocídio, e a Espanha sabe isto antes de qualquer outra pessoa". O que tem a dizer a estas acusações?


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