domingo, 10 de abril de 2022

MARROCOS: UM REGIME VIOLADOR DOS DIREITOS HUMANOS



 

A Amnistia Internacional (AI) acaba de publicar o seu Relatório anual 2021-2022.

Entretanto, um ex-preso lançou no início do ano, em França, um livro esclarecedor: “No coração de uma prisão marroquina”. Quem se submeteria voluntariamente a um regime destes!?

 

A experiência de um preso político

O jornalista Hicham Mansouri, co-fundador da Associação Marroquina do Jornalismo de Investigação (AMJI), nomeado no Relatório da AI no capítulo do “direito à privacidade” pelo facto de ter sido uma das pessoas cujo telemóvel foi infectado pelo programa de espionagem Pegasus, vendido a instituições públicas de segurança de vários Estados pela empresa israelita NSO, conta assim como foi a sua detenção:

“No dia 17 de Março de 2015 uma amiga chega a minha casa por volta das 21h45. Passados alguns minutos, pancadas na porta. Não estando à espera de visitas imprevistas, ligo ao meu irmão Khalid para lhe perguntar se é ele, talvez se tivesse esquecido das chaves. Diz-me que não, que está justamente a caminho de casa.

A ou as pessoas que estão atrás da porta não respondem aos meus “Quem é?”, e as pancadas são cada vez mais insistentes e violentas. Telefono ao meu colega Samad Aït Aicha. O nosso escritório fica apenas a cinco minutos a pé e ele diz que chegará rápido. De repente, dez homens com uma figura imponente forçam a porta do meu apartamento, atiram-se sobre mim, agridem-me violentamente e começam a despir-me. Eu grito a pensar que vou ser morto ou violado. É nesse momento que um deles grita: “Polícia! Polícia!”. Estão todos à civil. Querem também despir a minha amiga, mas ela resiste e a seguir grita o mais forte que consegue que lhe tiraram o vestido. O chefe diz então aos outros polícias que basta. Obrigam-nos a deitar na cama e tiram-nos fotografias.

“Os polícias fizeram uma rusga aos meus livros, documentos e roupas. Mais tarde descobrirei que faltam dois livros e cerca de 6.000 dirhams. (. . . ).

“Levam-nos a seguir, de carro, ao comissariado da polícia de Rabat. Vou algemado e só com uma pequena toalha a cobrir-me. Uma vez no posto, os polícias encarregados do interrogatório obrigam-me a ser fotografado nu. Fotografam mesmo o meu sexo. Impedem-me de contactar os meus advogados, Abdelaziz Nouaydi e Naima El Gallaf. Alertada pelo meu irmão Khalid e pelo meu amigo Samad Aït Aicha, a Dra. El Gallaf dirige-se à esquadra de Rabat, mas os polícias dizem-lhe que não prenderam ninguém com o meu nome. Ela contou isso ao juiz durante o meu processo. “É a primeira vez que nos trazem para aqui alguém quase nu”, diz-lhe discretamente um polícia mais tarde. (. . . ).

“A acusação de que sou alvo é: “manutenção de um local de prostituição e cumplicidade em adultério”! Um comunicado da prefeitura da polícia de Rabat, divulgado pela MAP, a agência de informação oficial, precisa que a minha prisão ocorreu ‘devido a instruções escritas do julgado competente, que pediu uma investigação sobre a utilização de um apartamento para fins de prostituição com a apresentação de todas as pessoas implicadas nesses actos criminosos.”

“A quase totalidade do meu interrogatório, que dura dois dias, é sobre as minhas atividades, as minhas relações profissionais e as minhas opiniões políticas. O interrogatório é conduzido por, pelo menos, quatro ou cinco equipas em diferentes salas do comissariado de Rabat. (. . . ).

“Fico fechado durante dois dias num quarto obscuro situado no sub-solo, com numerosas pessoas embriagadas e agressivas. Não me dão nenhuma refeição nem nenhuma cama, e faz muito frio nesse mês de Março. De qualquer modo, não tenho apetite. No primeiro dia, recusaram as roupas e a alimentação trazidas pela minha família. A única sandes que foi autorizada a entrar no segundo dia dei-a aos meus co-detidos, que me reclamaram que a partilhasse com eles.”

Durante o julgamento foram evidenciadas diversas contradições. O juiz dispensava rapidamente as testemunhas que não corroboravam ou mesmo contradiziam os factos apresentados pela acusação.

“Apesar de todas estas contradições e de outras reveladas pelo relatório de observação do processo realizado pelos Advogados Sem Fronteiras (ASF), apesar do apoio do conjunto de ONG de defesa dos direitos humanos e da liberdade de imprensa, fui declarado, no dia 30 de Março de 2015, culpado de cumplicidade em adultério pelo tribunal de primeira instância de Rabat no seguimento de um processo iníquo. Fui condenado a dez meses de prisão e a uma multa de 20.000 dirhams marroquinos (cerca de

2.000 euros). A sentença foi confirmada depois pelo recurso, a 27 de Maio de 2015. Após um relatório publicado pelos Advogados Sem Fronteiras sobre o meu caso no dia 15 de Janeiro de 2016, Nisma Bounakhla, a representante desta ONG em Marrocos, foi expulsa a 20 de Fevereiro de 2016.”



Durante dez meses Hicham Mansouri viveu na prisão de Salé (nos arredores de Rabat) e continuou o seu trabalho profissional: dedicou-se, por um lado, a observar o funcionamento geral do estabelecimento e, por outro, a recolher testemunhos e factos sobre uma questão mais precisa: os tráficos que por ali passam, desde canábis, a telefones portáteis. Conseguiu escrever um diário e fazer passar para o exterior, através da roupa que entregava à família para lavar, 30 blocos de notas. Foi a partir desse

manancial de informação que agora foi publicado o livro “No coração de uma prisão marroquina”.

Voltaremos a ele, para compreendermos melhor como funcionam de forma coordenada os sistemas político, económico, judicial, de segurança e prisional, de modo a garantir a sobrevivência de um regime corrupto e autoritário.

“No dia seguinte à minha saída da prisão, sabendo que seria visado por um outro processo por ‘atentado à segurança interna do Estado’, tomei o primeiro avião com destino a Tunis.”

 

O Relatório da Amnistia Internacional

Este Relatório cobre as violações de Direitos Humanos ocorridas em Marrocos e no Sahara Ocidental - obra do mesmo aparelho repressivo - e abrange várias áreas: liberdade de expressão e de associação; direito à privacidade; liberdade de reunião; tortura e outros tratamentos degradantes; direito à saúde; direitos das mulheres e das raparigas; direitos das pessoas LGBTI; e direitos dos migrantes e refugiados. Em cada um destes contextos identifica casos concretos que foram investigados e têm dados confirmados. Expomos aqui alguns, mais diretamente ligados à falta de liberdades e garantias dos cidadãos e das cidadãs.

 

Liberdade de expressão e de associação

“Novamente durante este ano, defensores/as dos direitos humanos, jornalistas, utilizadores/as de redes sociais, académicos/as e militantes foram reprimidos no exercício legítimo da sua liberdade de expressão. Pelo menos sete pessoas foram presas e/ou levadas à justiça por infracções ligadas à liberdade de expressão. O professor universitário e militante dos direitos humanos Maati Monjib que estava na prisão de El Arjat, perto de Rabat, a capital, foi posto em liberdade provisória no dia 23 de Março. Sujeito desde Outubro de 2020 a uma medida arbitrária de interdição de deixar o território, não pôde, em Outubro, viajar até França como previsto, para comparecer numa consulta médica e visitar a família.

“O jornalista independente Omar Radi, que não poupava nas suas críticas às autoridades, foi condenado em Julho a seis anos por espionagem e estupro, no seguimento de um processo que não cumpriu as regras internacionais de equidade. Em particular, não conseguiu exercer o seu direito a conhecer todos os elementos apresentados contra ele de forma a poder contestá-los.

“Em Setembro, o Tribunal de Primeira Instância de Marraquexe condenou Jamila Saadane a três meses de prisão, por causa dos vídeos que ela publicou no YouTube nos quais as autoridades marroquinas eram acusadas de cobrir redes de prostituição e factos sobre tráfico de seres humanos em Marraquexe. Esta mulher foi declarada culpada de ultrajar as instituições e difundir notícias falsas. “As autoridades marroquinas continuaram durante todo o ano a violar os direitos dos/as saharauis que militam a favor da independência, submetendo-os/as a maus-tratos, a perseguições e procedendo a prisões. O jornalista saharaui Essabi Yahdih, diretor do órgão informativo virtual Algargarat, foi preso em Maio no seu local de trabalho no Sahara Ocidental. As autoridades interrogaram-no sobre as suas atividades jornalísticas e acusaram-no de ter filmado um edifício militar em Dakhla, uma cidade do Sahara Ocidental. Este homem foi condenado em 29 de Julho a um ano de prisão e a uma multa.

Na prisão de Dakhla foram-lhe recusados cuidados médicos para problemas de audição e de vista dos quais padecia antes de ser preso. (. . . ).”

 

Liberdade de reunião

“O militante Noureddine Aouaj foi condenado em Julho a dois anos de prisão. Preso em Junho depois de ter participado numa concentração pacífica de apoio aos jornalistas presos Omar Radi e Soulaimane Raissouni, este defensor dos direitos humanos foi acusado de ‘insultos às instituições constitucionais, aos princípios e aos símbolos do reino’ e de ‘denúncia de crime fictícios’ e de ‘atentado à autoridade judicial’. (...).”

 

Tortura e outros tratamentos degradantes

“Várias pessoas foram presas em condições extremamente duras, nomeadamente em isolamento prolongado com duração indeterminada, em violação da proibição da tortura e de outros maus-tratos.

“O jornalista Soulaimane Raissouni, chefe de redação do jornal Akhbar Al Yaoum, esteve detido em isolamento desde a sua prisão, em Maio de 2020. Em sinal de protesto contra esta medida, começou a 8 de Abril uma greve de fome, à qual pôs termo 118 dias depois.

“Condenado em ligação com a manifestação de Gdeim Izik, Mohamed Lamine Haddi estava submetido a isolamento desde 2017. Em Março, guardas da prisão acabaram com a greve de fome que ele fazia para protestar contra os maus-tratos a que era sujeito: alimentaram-no à força, o que é considerado um acto de tortura no quadro do Direito Internacional.

“Membros das forças de segurança assaltaram a casa de Sultana Khaya pelo menos três vezes, em 2021. Esta militante saharaui declarou que, no decurso de uma destas operações, em Maio, os agentes das forças de segurança lhe bateram e tentaram violar com matracas, e agrediram brutalmente e violaram a sua irmã. No dia 15 de Novembro, membros das forças de segurança entraram em sua casa, violaram-na e agrediram sexualmente as suas duas irmãs e a sua mãe de 80 anos.”

 

Direitos das mulheres e das raparigas

“(. . . ). Vítima duma campanha de difamação depois da cadeia de televisão ChoufTV ter publicado, em Dezembro de 2020, um vídeo que pretendia mostrar uma suposta relação extra-conjugal, a antiga polícia Wahiba Kharchich chegou aos Estados Unidos em Janeiro. Esta antiga polícia tinha apresentado uma queixa, em 2016, por assédio sexual por parte do seu superior, Aziz Boumehdi, chefe de uma unidade de polícia de El Jadida, queixa à qual não foi dado seguimento.”

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