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| Mohammed Mayara e Ahmed Ettanji, da Equipe MEDIA |
Catarina Martins (do Bloco de Esquerda) e outros dois eurodeputados foram impedidos de aceder ao território do Sara Ocidental. O que guarda Marrocos e por que pretende silenciar os testemunhos? Ahmed Ettanji e Mohamed Meyara, naturais da antiga colónia espanhola, contaram ao Expresso
21 fevereiro 2025 - Expresso artigo de Catarina Maldonado Vasconcelos
É uma prisão ao ar livre, como Gaza. É um lugar no mundo onde não existem direitos civis, nem política, nem nada. Estamos lado a lado com a Coreia do Norte e a Síria nas regiões mais militarizadas do mundo.” Foi assim que, em setembro, Ahmed Ettanji, um dos repórteres fundadores da “Equipe Media”, do Sara Ocidental, descreveu ao Expresso aquela região do mundo que resiste à ocupação marroquina. “A presença de jornalistas internacionais na área é completamente proibida”, refletiu o ativista.
Catarina Martins e mais dois eurodeputados de grupos de esquerda foram forçados a regressar a Espanha na noite de quinta-feira, 20 de fevereiro, depois de terem aterrado em Laayoune, capital do território disputado do Sara Ocidental, parcialmente controlado por Marrocos. Depois de aterrarem e descerem à pista, os eurodeputados viram a passagem negada por homens fardados e foram “violentamente forçados a regressar” ao avião, afirmaram os eurodeputados (o finlandês Jussi Saramo, da Aliança de Esquerda, Isabel Serra, do Podemos de Espanha, e Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, de Portugal). Encontravam-se, a título pessoal, numa “missão de observação” para fiscalizar o cumprimento de uma recente decisão do tribunal da UE que anulou os acordos agrícolas e de pesca entre a UE e Marrocos.
Contactado pelo Expresso, Omar Mih, representante da Frente Polisário em Portugal, expressou solidariedade em relação aos deputados do Parlamento Europeu que foram impedidos de entrar, e afirma que o ato “demonstra a arrogância e a impunidade das autoridades de ocupação marroquinas”. Acrescenta ainda que mais de 20 representantes políticos (deputados espanhóis, sobretudo) e jornalistas já foram proibidos de entrar no Sara Ocidental só este ano, totalizando mais de 320 pessoas desde 2014. “Marrocos demonstra que o que esconde é muito grave em termos de violação dos direitos humanos, repressão, presença policial permanente e extração de riquezas. Não quer testemunhas para o que está a fazer num território que está sob administração das Nações Unidas.” Mas Mohamed e Ahmed não deixam de o testemunhar.
Pouca informação é publicada no Ocidente
O Sara Ocidental, um deserto do jornalismo, é como “um buraco negro”, considerou também Mohamed Meyara, coordenador Geral da “Equipe Media”, que esteve de visita a Lisboa em setembro, e que, em entrevista ao Expresso, lamentava a supressão das liberdades e a vigilância a que a região tinha sido votada. O direito internacional considera este lugar como a última colónia de África, afirmava então Mohamed Meyara, na sede da Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO). “É uma questão de descolonização. Têm medo do ganho geopolítico na região. O Sara Ocidental ainda está ao lado das Ilhas Canárias. Tem base. O Sara Ocidental é o local que França utiliza para aceder à Mauritânia e Marrocos, para manter a sua presença em África.”
Situado na costa noroeste africana, a antiga colónia espanhola foi anexada por Marrocos, em 1975, dez anos depois de a ONU ter apelado à descolonização do território. O rei Hassan, desrespeitando uma decisão de Haia a favor do direito dos sarauís à autodeterminação, organiza uma invasão que atingiu centenas de milhares de marroquinos do Sara Ocidental. Foram “cometidos crimes contra a Humanidade, tendo havido ataques com napalm e bombas de fósforo atiradas de aviões”, contou Mohamed Meyara. “Destruíram tudo e Marrocos construiu a maior e mais longa parede do mundo, contaminada por oito ou nove milhões de minas terrestres. Também enviaram tropas e milhões de colonos marroquinos para o Sara Ocidental, ocupando os seus territórios e saqueando os seus recursos naturais.”
Uma faixa tampão, com minas terrestres e fortificações, atravessa todo o território disputado, e separa a porção ocidental administrada por Marrocos da área oriental controlada pela Frente Polisário.
Desde a invasão, prossegue uma longa disputa territorial entre Marrocos e o seu povo indígena, liderado pela Frente Polisário, movimento de independência fundado em 1973. Uma insurreição que durou 16 anos e terminou com uma trégua mediada pela ONU, em 1991, e a promessa de um referendo para a independência que nunca teve lugar. A República Árabe Sarauí Democrática (RASD, na sigla inglesa), declarada pela Frente Polisário em 1976, é reconhecida por muitos governos e é membro de pleno direito da União Africana. Possui reservas de fosfato e grandes áreas de pesca ao largo da sua costa, e alguns investigadores acreditam que o Sara Ocidental também tem depósitos de petróleo offshore ainda inexplorados.
Segregação em toda a linha
Mohamed Meyara formou a “Equipe Media” para quebrar o bloqueio total marroquino, em 2009. Marrocos “tem algo a esconder”, e a equipa queria contá-lo em francês, em inglês, em árabe e espanhol, para que a história passasse para um grande público. Aos olhos de Mohamed Meyara, o Sara Ocidental é isolado por uma parede de segregacionistas, a partir do Ocidente. “Nasci nos territórios ocupados e lá fui criado. Nasci em dezembro de 1965, pelo que, com as invasões marroquinas e as ocupações militares do Sara Ocidental, o resto da minha família fugiu para a Algéria. Esta é a situação que milhares de sarauís têm sofrido desde 1975. Experimentei tudo o que se pode imaginar, ainda criança. Na escola, senti a segregação, e vi como era a brutalidade em Marrocos.”
O coordenador geral da “Equipe Media” denuncia a “política sistemática de silenciar e suprimir” os seus colegas. “Os nossos amigos foram presos e condenados com penas pesadas. Um dos nossos colegas foi detido em 2010, só porque levou a sua câmara para cobrir essas ações da polícia. Ele ainda está lá, até este momento está preso. Temos quatro dos nossos colegas atrás das grades desde 2010.” Ahmed e a sua mulher foram detidos algumas vezes. Passaram dias nas prisões, e depois foram libertados. Mas confiscaram-lhes muito do equipamento que tinham.
“Somos criminalizados pelas leis marroquinas”, garantiu Meyara ao Expresso. “Marrocos também tem apoio dos colonos marroquinos para nos atacar, considerando que fazemos parte de uma agenda inimiga ou algo do género.” Não é o caso, e já várias instâncias do direito internacional reconheceram os sarauís e a sua independência. Uma missão das Nações Unidas, que foi estabelecida em 1991 iria ajudar a organizar o referendo. Por tempo indeterminado, e até agora, adiado.
O pronunciamento das instituições internacionais
Em outubro de 2024, o Tribunal de Justiça da UE apoiou a Frente Polisário do Sara Ocidental, e apelou à anulação dos acordos comerciais que permitiam a Marrocos exportar peixe e produtos agrícolas, do território ocupado para a UE. “Estamos a enfrentar duplos poderes coloniais, ou seja, Espanha e França, que são aliados e tentam silenciar os sarauís, desde 1965", defende Mohamed Meyara. A vizinha Argélia, pelo contrário, clama pela autodeterminação do Sara Ocidental, ao lado da Frente Polisário.
Meyara reclama um direito histórico: “Devemos concentrar-nos no que as regras internacionais dizem. Marrocos está a lutar em nome de França e Espanha. É muito claro. Antes de 1975, não tínhamos qualquer ligação com os marroquinos. Eu, o meu pai, os meus antepassados éramos do Sara Ocidental. Quando os espanhóis chegaram àquele território, em 1884, encontraram essas tribos locais, e assinaram um acordo com as mesmas. Nenhum marroquino estava lá. Portanto, isso é claro. O Tribunal Internacional de Justiça disse-o claramente”.
Os tribunais nunca estabelecem qualquer tipo de soberania de Marrocos ou da Mauritânia sobre o Sara Ocidental. A ONU reconhece que a descolonização, após a retirada espanhola, deveria ter sido continuada pelo povo do Sara Ocidental. Portanto, “é com a cumplicidade da França e da Espanha sobre as potências coloniais” que isto acontece, aponta o jornalista.
Colonialismo sistemático?
Ahmed Ettanji acredita que o silêncio da comunidade internacional se deve a vários fatores. “As forças coloniais veem Marrocos como um guardião dos seus interesses e objetivos na área. Por outro lado, infelizmente, os interesses económicos estão a ser colocados acima dos direitos humanos e do direito internacional. Existem reflexões do Tribunal Europeu sobre a extração dos recursos naturais no Sara Ocidental e o envolvimento das empresas europeias. Estas empresas continuam a explorar os recursos naturais, como minerais, que são importantes para a produção de carros elétricos.”
O repórter diz ainda que há outro problema com Espanha, na fronteira das águas do Sara Central e Espanha, em Gran Canaria, com as areias a serem transportadas e utilizadas para praias, por exemplo, nas ilhas como a Madeira, Gran Canaria e Baleares. Jornalistas como Ahmed, que querem denunciar estas ações de ingerência, são perseguidos, assediados, sofrem vigilância policial constante, ataques às páginas web e redes sociais, espionagem, tortura e maus tratos, apesar dos pedidos da ONU e das exigências de libertação.
A vida de Ahmed foi difícil desde o início, num território que enfrenta privações notórias. A universidade mais próxima fica a mais de 700 quilómetros e as instalações médicas são muito reduzidas e limitadas. “Foram construídas apenas para se os colonos ficarem doentes. Marrocos só construiu a infraestrutura que facilita a carga sistemática dos recursos naturais, como estradas e portos. De resto, estão a tornar o Sara mais pobre do que antes.” Os professores designados para trabalhar no Sara Ocidental viam aquele povo como “um povo punido”, e o estereótipo sobre a região era de que ali havia apenas “camelos e pombos”.
Na escola, o repórter em potencial conheceu os primeiros sinais da segregação, conforme relatou ao Expresso: “Não percebia por que sofria esta discriminação, mas, com o tempo, ao ir crescendo, percebi que era por ser sarauí. Por isso, envolvi-me no ativismo quando era muito jovem, aos 14 anos”. Fui detido muitas vezes. Nas suas palavras, “torturado e maltratado”, também. “Tentaram impedir-me de continuar no ativismo. Expulsaram-me da escola e tive de ir para outra cidade. Não me deixavam ir para a universidade. Tentei durante sete anos. Também sofri muitas detenções, torturas e maus tratos por ter recebido em minha casa jornalistas e ativistas estrangeiros que vêm ao Sara.”
Faz, no entanto, questão de apresentar a escala das suas vicissitudes, entre aquelas que a população de cerca de 500 mil pessoas - além de muitas outras em exílio ou na diáspora - sofre: “A minha história é um grão de areia em dunas de sofrimento muito grandes, de dor, de tristeza, de silêncio, de jovens que não têm voz, que são oprimidos, de crianças que não conhecem os seus pais porque morreram na prisão ou não sabem onde estão os seus corpos. Algumas crianças que hoje têm 14 anos não sabem como é o rosto do pai”. São histórias silenciadas, esquecidas. “Histórias proibidas”, diz, justificando com uma política “sistemática de discriminação”.
Em 2023, Israel reconheceu as reivindicações de Marrocos sobre o Sara Ocidental. Ahmed Ettanji nota que a aliança só agudizou as condições ali vividas. “Marrocos obtém o software Pegasus para controlar, por exemplo, os defensores dos direitos humanos ou os oponentes marroquinos, mas também os países de todo o mundo, porque Marrocos estava a espiar os Presidentes de França ou os primeiros-ministros em Espanha e alguns líderes argelinos.”
Os ativistas como Ahmed recorrem a mensagens cada vez mais codificadas para escaparem ao software sofisticado da vigilância. Apesar de a esperança ser um capital escasso no território não autogovernado, cuja autodeterminação nunca foi concluída na prática, Ahmed revela o seu sonho para o futuro: “Liberdade, igualdade e vida digna. Esse é o meu desejo”.




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