terça-feira, 31 de maio de 2016

Face à morte do líder histórico da Frente Polisario, Mohamed Abdelaziz




Hoje, dia 31 de maio, da parte da tarde, foi anunciada a morte de Mohamed Abdelaziz (1948-2016), presidente da República Saharaui (RASD) e Secretário-Geral da Frente Popular para a Libertação do Saguia el Hamra e Rio de Ouro (Frente POLISARIO). O seu mandato de quatro décadas, coincidiu praticamente com a história recente do povo saharaui. Estamos, por consequência, e sem exagero algum, perante uma figura incontornável na História do Sahara Ocidental. Qual o balanço da sua obra? Que perspetivas se abrem?

Artigo de Carlos Ruiz Miguel, catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela


I. A DIREÇÃO DA FRENTE POLISARIO ANTES DE MOHAMED ABDELAZIZ
Mohamed Abdelaziz, filho de militar, nasceu em Smara em 1948 (embora a propaganda marroquina afirme que nasceu em Marraquexe em 1947). Em Smara, viveu os seus primeiros anos mas como o seu pai se alistou no Exército marroquino mudou-se com a sua família para Marrocos e ali fez os seus estudos no ensino primário e secundário. Ao contrário de outros líderes saharauis daquela época, Abdelaziz não cursou estudos universitários.
Desde muito cedo se junta aos movimentos nacionalistas saharauis. Primeiro, em 1968, milita no movimento nacionalista de inspiração tradicionalista liderado por Bassiri, e depois desse movimento ter ficado sem liderança em 1970, com o "desaparecimento" (assassinato) de Bassiri, foi um dos fundadores, em 1973, da Frente Polisario que resulta do movimento nacionalista tradicionalista de Bassiri junto com outros grupos juvenis de orientação progressista.
O primeiro secretário-geral da Frente Polisario foi Brahim Gali, que um ano depois, em 1974, seria substituído pelo mítico e carismático líder El Ouali Mustaphá Sayed, que com uma sólida formação arquitetou os pilares ideológico-políticos da Frente Polisario. No entanto, dois anos depois, a 9 de junho de 1976, El Ouali morre em combate às portas de Nouakchott, a capital da Mauritânia. Após a sua morte foi eleito como Secretário-geral interino da Frente Polisario Mahfoud Ali Beiba (1953-2010). No entanto, no III Congresso da Frente Polisario, realizado semanas depois, Mohamed Abdelaziz é eleito como sucessor, cargo em que se manteve até à morte. Abdelaziz foi sendo reeleito sucessivamente, às vezes como candidato único, outras vezes derrotando outros candidatos que disputaram o seu cargo (como nos congressos de 1999 ou 2003).

II. MOHAMED ABDELAZIZ, UM GUERREIRO CONVERTIDO EM POLÍTICO
Para entender a figura e o significado de Mohamed Abdelaziz é necessário entender que o seu acesso à direção do povo saharaui se explica não tanto pelas suas qualidades políticas mas sim pelas suas qualidades militares. Ainda que a Frente Polisario tenha iniciado as atividades militares num primeiro momento contra a Espanha, a 20 de maio de 1973, foi no entanto após a invasão do território saharaui por Marrocos e pela Mauritânia que a guerra adquiriu uma grande dimensão. Mohamed Abdelaziz distinguiu-se pelo seu grande valor na frente de guerra, onde foi ferido várias vezes, como pelo seu companheirismo.
Daí que embora não tivesse a bagagem ideológica do falecido El Ouali Mustapha Sayed, a sua importância militar foi determinante para que acedesse à máxima responsabilidade da república saharaui, não tendo sido por acaso que ela se tenha produzido nos momentos mais intensos da guerra do Sahara.
Após a assinatura do "Plano de Resolução" por Marrocos e a Frente Polisario, em 1991, a guerra do Sahara acabou. O "Plano de Resolução" estabelecia um cessar-fogo em troca da realização de um referendo de autodeterminação. O referido "Plano de Resolução" foi aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU. Na realidade, é o ÚNICO plano aprovado pelo Conselho de Segurança. E precisamente para pôr em marcha ao disposto no "Plano de Resolução" o Conselho de Segurança aprovou a criação da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO).
Desde 1991 Abdelaziz converteu-se num político. Salvo o breve episódio de 2001 em que a crise do "rally Paris-Dakar" esteve a ponto de reativar a guerra do Sahara, Abdelaziz centrou toda a sua atividade em tarefas políticas. A sua gestão política foi, por vezes, criticada, por vezes elogiada, mas não há dúvida que decorreu em circunstâncias nada fáceis.

III. A DOENÇA DE ABDELAZIZ E A SUA SURPREENDENTE REELEIÇÃO EM 2015.
Que Mohamed Abdelaziz estava há anos doente não era segredo para ninguém. Qualquer pessoa que o tivesse ouvido a discursar poderia aperceber-se de que padecia de problemas respiratórios. Questão distinta era a de saber qual a natureza dos seus problemas de saúde. Alguns diziam que eram problemas de asma, outros que era um cancro de pulmão. Viria a morrer de facto devido a um cancro de pulmão.
Mas se era notório que Abdelaziz estava enfermo, por que razão então se apresentou à reeleição e por que foi reeleito? Creio que há duas possíveis explicações.
Em primeiro lugar, a situação de "não guerra" originou alguns problemas graves no interior da República Saharaui, e um deles foi o tribalismo. O carismático líder El Ouali Mustapha Sayed foi um grande opositor ao tribalismo e é verdade que no processo de edificação do Estado saharaui durante a guerra o tribalismo foi marginalizado. No entanto, o tribalismo foi utilizado na crise de 1988, a mais grave crise interna por que passou até agora a Polisario. Ao contrário de El Ouali Mustapha Sayed, Abdelaziz não adotou uma política de eliminação do tribalismo. No entanto, demonstrou uma grande habilidade ao reduzir as tensões tribais e ao tecer complexos equilíbrios, desativando algumas crises menores.
Em segundo lugar, a situação de pobreza extrema nos acampamentos de refugiados de Tindouf constituía um caldo de cultura favorável a que a Arábia Saudita enviasse grandes quantidades de dinheiro para financiar mesquitas e pagar a alguns imãs. A Arábia Saudita procurava assim alimentar o islamismo que contaminara alguns estudantes saharauis enviados para a Argélia para aí prosseguirem os seus estudos. Abdelaziz procurou manter um equilíbrio entre estes setores islamitas com os setores laicos compostos não só por boa parte dos dirigentes históricos, como também pelos estudantes saharauis enviados para estudar em Cuba e pelos saharauis emigrados na Europa. Uma das suas mais hábeis atuações para desativar, pelo menos politicamente, os islamitas financiados pelos sauditas foi o surpreendente pedido, formulado em junho de 2012, ao rei da Arábia Saudita para que mediasse entre a Frente Polisario e Marrocos. A falta de resposta do rei saudita, foi utilizada como prova evidente de que o grande financiador do islamismo nos acampamentos de refugiados saharauis se desinteressava totalmente pelo seu destino político.

IV. QUE SUCESSOR PARA MOHAMED ABDELAZIZ?
A morte de Mohamed Abdelaziz deixa um enorme vazio num momento extremadamente delicado.
Com efeito, a eleição do sucessor de Abdelaziz deverá ter lugar apenas una dias antes de que termine o prazo dado pelo Conselho de Segurança a Marrocos para permitir o regresso do pessoal civil da MINURSO.
O debate e votação no Conselho de Segurança constituiu um duro golpe para a política expansionista e anexionista marroquina no Sahara Ocidental. De um ponto de vista internacional, o momento é crítico.
A tudo isto há que juntar o facto de, nestes anos, o tribalismo e o  islamismo terem corroído internamente a República Saharaui.

Basta isso para compreender a enorme importância que tem a sucessão de Abdelaziz. Com efeito, a direção dada à política interior pode ter uma grande influência na gestão da política externa. Não há que duvidar que um candidato tribalista e islamista é o maior favor que se poderia fazer, num momento tão crítico como este, ao Makhzen de Marrocos.

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