quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O ministro Margallo e o Sahara Ocidental: mentira ou irresponsabilidade?

O MNE espanhol, García Margallo

 As declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros sobre o Sahara Ocidental merecem uma análise cuidadosa. A ordem de repatriar os cooperantes espanhóis nos acampamentos de refugiados de Tindouf satisfaz claramente os objetivos de Marrocos. É a primeira vez, desde que existe o conflito do Sahara Ocidental, que um ministro espanhol dos Negócios Estrangeiros toma uma decisão semelhante. Isso torna necessário escrutinar a credibilidade e coerência do discurso do ministro espanhol. E, para o fazer, torna-se necessário considerar a trajetória da política sobre o norte de África do ministro Margallo, e do governo de Mariano Rajoy Brey. Análise esta que deve ser complementada, naturalmente, com a de outros elementos, como sejam as atuações o majzen marroquino nesse mesmo cenário.

I. GARCÍA MARGALLO & RAJOY: UMA POLÍTICA EXTERNA PARA O NORTE DE ÁFRICA TENDENCIOSAMENTE FAVORÁVEL A MARROCOS
Qual é a política externa do governo Rajoy e do ministro Margallo, em particular, em relação ao norte de África? Este é o primeiro dado que há que considerar para analisar as declarações de García Margallo e a ordem dada de repatriar os cooperantes espanhóis presentes nos acampamentos de refugiados de Tindouf (Argélia).

E os FACTOS que encontramos são os seguintes:
1- o presidente do Governo, Mariano Rajoy, visitou Marrocos, onde homenageou o criminoso Hassan II e reuniu com Mohamed VI.
2- o presidente Rajoy, no entanto, não visitou a Argélia, nem a Tunísia, nem a Mauritânia, nem os territórios da República Saharaui nem os acampamentos de refugiados, nem nenhum outro país da região noroeste de África.
3- o ministro dos Negócios Estrangeiros de Rajoy, García Margallo, visitou Marrocos, onde homenageou o criminoso Hassan II. Não foi recebido por Mohamed VI.
4- o ministro dos Negócios Estrangeiros de Rajoy, García Margallo, não visitou a Argélia, nem a Tunísia, nem a Mauritânia, nem os territórios da República Saharaui nem os acampamentos de refugiados, nem nenhum outro país da região noroeste de África... exceto o Burkina Fasso, país aliado do majzén e onde opera, como "assessor" do presidente desse país, um cidadão mauritano, Mustafá Chafi (o mediador que interveio para resolver os dois sequestros que ocorreram com espanhóis no norte de África), com ligações aos serviços secretos marroquinos.
5- o ministro dos Negócios Estrangeiros de Rajoy, García Margallo, declarou a 18 de março de 2012 numa entrevista a um diário progovernamental:

“A responsabilidade de Espanha neste tema é a mesma que a de qualquer outro membro da ONU”

Quer dizer que, para o ministro García Margallo, Espanha, que é e que continua a ser, embora isso lhe desagrade, a potência administrante do Sahara Ocidental tem "a mesma" responsabilidade que "qualquer outro membro da ONU". A Birmânia, por exemplo....

Os dois cooperantes espanhóis sequestrados
em Tindouf e entretanto libertados

II. AS DECLARAÇÕES DE GARCÍA MARGALLO SOBRE A SITUAÇÃO NOS ACAMPAMENTOS DE REFUGIADOS DE TINDOUF
O ministro García Margallo fez declarações sobre a questão... duas declarações onde diz coisas diferentes.
- No dia 28 de julho disse:

O governo deu ordem de iniciar esta operação após, nos últimos dias, ter indícios fundados que alertavam para um grave incremento da insegurança na zona e de possíveis atuações contra objetivos estrangeiros

No dia seguinte, dia 29 de julho, deu-se a repatriação de todos... menos de um cooperante, Pepe Oropesa, que foi intimidado ao ponto de o fazerem assinar um documento absolutamente assombroso no qual ele se comprometia a descartar o Governo de qualquer responsabilidade pelo que lhe pudesse acontecer à sua pessoa e bens e a recomendação de evacuação do Ministério espanhol era dramatizada com uma  frase escandalosa: "‘Se te sequestram, não pagamos o resgate”, o que constitui uma confissão evidente de que o Governo tem, até agora, pago nos outros sequestros.

No dia 30 de julho, no entanto, dizia algo diferente:

Estava sendo planeado um sequestro de cooperantes espanhóis nos acampamentos de Tindouf. Verificou-se até à exaustão que essa operação era iminente.

III. AS DIFERENÇAS ENTRE AS DECLARAÇÕES DE 28 E DE 30 DE JULHO
Entre as primeiras e as segundas declarações de Margallo existem diferenças substanciais:
1- No dia 28 havia " fundados indícios " e "possíveis atuações"...
Mas no dia 30 disse que o suposto risco estava "confirmado até à exaustão".
2- No dia 28 falava de um suposto "grave incremento da insegurança"...
Mas no dia 30 dizia que, na realidade, a suposta ameaça era "iminente".
3- No dia 28 fala de supostas ameaças "contra objetivos estrangeiros"...
Mas no dia 30 afirma que era contra "cooperantes espanhóis".

Um "fundado indício " é o mesmo que algo "confirmado"? Um "aumento da insegurança" é o mesmo que um acontecimento "iminente"? é o mesmo falar de objetivos "estrangeiros" ou só de "espanhóis"?
Demasiadas e demasiado importantes diferenças nas suas declarações...
A falta de coerência entre as declarações exige que analisemos a questão. Em minha opinião, podem colocar-se duas hipóteses:

1- Margallo mente;
2- Margallo não mente, mas é um irresponsável.

IV. HIPÓTESE "A": MARGALLO MENTE
A primeira hipótese é a de considerar que Margallo mente pelas seguintes razões:
1- Nos acampamentos de Tindouf vivem muitas pessoas, de origem saharaui, que têm a nacionalidade espanhola. Se essas pessoas, que não são "cooperantes", mas que ali se encontram por razões familiares, por exemplo, também são "espanhóis":
Por que não existe risco de "sequestro" desses espanhóis?
Acaso o governo espanhol só paga os resgates se são sequestrados espanhóis de origem caucasiana e não os que são de origem moura?
2-Uma diferença, tão substancial, entre as declarações de Margallo de 28 e as de 30 de julho é indício de que Margallo não diz a verdade.
Em apoio desta tese está o facto de que, para além da inconsistência entre as duas declarações, o cooperante espanhol Oropesa Pepe manteve-se nos acampamentos de Tindouf .... e até hoje, 31 de julho, oh, surpresa! Nada lhe aconteceu.
Então: não dizia que o "sequestro" estava "confirmado" e era "iminente"?
Portanto, a questão chave para responder Margallo é:
Por que não sequestraram Oropesa Pepe?


V. HIPÓTESE "B": MARGALLO É UM IRRESPONSÁVEL
Admitamos, hipoteticamente, que Margallo não mentiu.
Admitamos, hipoteticamente, que alguém lhe deu essa informação e ele não é cúmplice ativo da mesma.
Admitamos, hipoteticamente, que ele não estava consciente de que com esta "informação" causava um grave dano à Frente Polisario.
As perguntas, então, surgem por si próprias:
- era responsável ordenar a repatriação dos cooperantes em Tindouf... e não ordenar a repatriação dos cooperantes que estão noutros países norte-africanos próximos como Mauritânia, Mali, Burkina Fasso, Chade, Senegal,....?
- era responsável alarmar a opinião pública ante um acontecimento , como se viu, não estava "confirmado" nem era "iminente" como O PROVA o facto de Pepe Oropesa até ao dia de hoje não ter sido sequestrado?
- era responsável fazer-se eco de uma "informação" que, pelos vistos, pode ter a mesma credibilidade que aquela que "assegurava" a existência de "armas de destruição maciça" no Iraque de Saddam Hussein?
- era responsável dispor de "informações" sobre factos tão graves.... e não tê-las compartilhado com a Frente Polisario e com a Argélia para utilizar essa suposta "informação" e montar uma armadilha aos supostos "terroristas" para desarticular o suposto comando?
- foi responsável  que o PSOE e o PP tenham pago somas estratosféricas aos sequestradores de espanhóis em troca da sua libertação... criando assim um aliciante para fomentar o sequestro de espanhóis... ou era precisamente isso que se pretendia: criar um clima favorável ao sequestro de espanhóis para justificar depois que existe um "grave incremento da insegurança"?

Os surpreendentes hiperelogios 
de Mohamed VII a Espanha...

VI. MOHAMED VI FELICITA ESPANHA...
Neste contexto assistimos às surpreendentemente elogiosas palavras que Mohamed VI dirigiu ao rei e ao governo espanhol.
No discurso do Trono que proferiu no dia 30 de julho de 2012, em comemoração do seu acesso ao trono marroquino a 30 de julho de 1999, Mohamed VI referiu-se a Espanha com os termos mais elogiosos que eu me recorde:

“No âmbito das relações avançadas com o conjunto dos países da União Europeia, temos que destacar as relações históricas enraizadas e horizontes largos que ligam Marrocos ao Estado vizinho de Espanha, ancorados por fortes laços pessoais que nos unem a sua Majestade o Rei Don Juan Carlos I, para além dos laços históricos existentes entre as casas reais de dois países vizinhos.
Nesta difícil conjuntura que estamos a atravessar, queremos expressar mais uma vez o nosso compromisso de facilitar as oportunidades necessárias para proporcionar novas condições económicas apropriadas  para criar riqueza compartilhada, materializando assim a solidariedade profunda e eficiente entre os nossos dois países.
Neste sentido, demos a Nossa Alta Orientação ao Governo para que implemente esta questão, com a importância e celeridade na aplicação que a mesma requere.”

Mohamed VI não se referiu à França (o que parece confirmar o que foi avançado neste blog), mas referiu-se à Espanha em termos extremadamente elogiosos.
Como não levar a pensar que o governo espanhol está satisfazendo os desejos de Mohamed VI... entre os quais os que os seus serviços secretos levam anos a esforçar-se em intoxicar a opinião pública, o de misturar a causa saharaui com o terrorismo?

VII. SE SE CONFIRMA QUE OS SEQUESTRADORES SÃO DA "AL QAIDA", O GOVERNO RAJOY, CONTINUADOR DO GOVERNO ZAPATERO, VIOLA O DIREITO INTERNACIONAL AO PAGAR RESGATES
Acabamos de assistir ao vergonhoso episódio de uma nova cedência do Governo ante um grupo de delinquentes. Um novo episódio em que, tal como sucedeu com os sequestrados na Mauritânia, o Governo (então de Zapatero, agora de Rajoy), aplica a mesma "solução": ceder ante a chantagem pagando.
O problema, que em Espanha se finge desconhecer, é que, se se confirma que os sequestradores são, como dizem, da "Al Qaida", pagar resgates é ILEGAL. A resolução 1904, do Conselho de Segurança, de 17 de dezembro de 2009, no seu parágrafo 5 proíbe taxativamente o pagamento de "resgates" a grupos terroristas ligados à "Al Qaida".
O que coloca Espanha perante uma grave questão. Dado que o Governo pagou resgates pelos sequestros de espanhóis na Mauritânia e em Tindouf... das duas uma:
- ou é legal pagar resgates porque os sequestradores, ao contrário do que diz a propaganda oficial, NÃO SÃO DA "AL QAIDA".....
- ou é verdade que são da "Al Qaida", e os governos de Rodríguez Zapatero e de Mariano  Rajoy estão a VIOLAR O DIREITO INTERNACIONAL.

Creio que, antes de alarmar a opinião pública com advertências de riscos que não se sabe se são "possíveis" ou estão "confirmados", o governo deve dizer, pura e simplesmente se viola ou não viola o Direito Internacional sobre o terrorismo.

Carlos Ruiz Miguel, Catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Santiago de Compostela, desde 2001.

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