sexta-feira, 25 de julho de 2014

Entrevista a Mohamed Abdelaziz, Presidente da República Árabe Saharaui Democrática

  


“O nosso desejo é que o conflito se resolva através das Nações Unidas e no respeito da legalidade internacional”

Como foi a sua infância no Sahara Ocidental, colonial e ocupado?

Nasci em Smara, numa zona um pouco retirada da parte urbana. A cidade onde nasci está a 170 km do outro lado do muro. A minha infância decorreu entre Hagounia e Smara. Em finais de 1956 a minha família teve que se refugiar no sul de Marrocos, ao mesmo tempo que havia uma guerra de libertação na Argélia. Nesse tempo de guerra, muitos saharauis, entre eles o meu pai, incorporaram-se nessa luta contra o colonizador. As potências colonizadoras eram França e Espanha. O espírito reinante na época era, tanto no Egipto como na Tunísia, como na Argélia, envolverem-se na luta pela expulsão do colonizador e fomentar a ideia nacionalista da autodeterminação dos povos. Esse espírito reinante levou a que, desde a minha infância, tanto nas escolas primárias como corânicas, fosse impregnado desse espírito de luta pela autodeterminação.

Depois da brutal repressão que Espanha exerceu sobre uma manifestação pacífica [em El Aaiún, capital do Sahara Ocidental] a 17 de junho de 1970, quando já era universitário e a exemplo de muitos outros, isso levou-nos a entender que não se podiam tolerar tais comportamentos contra uma população civil que queria manifestar-se publicamente, e isso levou-me a incorporar o movimento libertador. Este acontecimento levou um grupo de jovens a criar um movimento que daria origem à criação da frente POLISARIO [Popular de Libertação do Saguia El Hamra e Rio do Ouro] 3 anos mais tarde.

Esta frente encarregou-se de criar o espírito de liberdade e desencadeou, nesse tempo, a luta armada para a expulsão dos colonizadores espanhóis. Posteriormente, lutámos contra a Mauritânia, que também ocupou uma parte do território, e prosseguimos uma luta interminável contra Marrocos. Este foi o movimento que liderou a luta pela independência saharaui, movimento que, mais tarde, foi admitido como membro fundador da União Africana e que continua a liderar a luta de todos os saharauis pela libertação.



 Qual a situação atual com Marrocos em termos políticos?

Estamos numa situação de guerra, num lapsus temporal de cessar-fogo. O exército marroquino ocupa uma boa parte do território, e também o nosso exército controla uma parte importante do mesmo, que é onde agora nos encontramos realizando este congresso. Também temos população saharaui na parte do território ocupado por Marrocos. Aí, diariamente há manifestações reclamando o seu direito à autodeterminação, apesar de um bloqueio férreo e uma intensa guerra entre nós e Marrocos a nível internacional. Penso que temos conseguido importantes vitórias, conseguimos deixar claro a nível das Nações Unidas que o tema do Sahara Ocidental é um tema de descolonização pendente que deve ser resolvido com base nas resoluções das Nações Unidas sobre a autodeterminação, e que Marrocos é um ocupante. Na esfera africana conseguimos importantes avanços: o reconhecimento de países e da organização regional continental. Temos relações bilaterais com muitos países. Também travámos a batalha com Marrocos em todos os continentes, inclusive nos EUA, país com o qual Marrocos subscreveu um tratado de livre comércio. O tratado de livre comércio não foi firmado até que excluíssem o território reconhecido internacionalmente como o território do Sahara Ocidental. Houve um problema sério entre o Congresso e o Governo, mas no final tiveram que excluir o território do Sahara Ocidental do tratado de livre comércio. O tratado de livre comercio não deve incluir o território do Sahara Ocidental porque nem os EUA nem as Nações Unidas reconhecem nenhuma soberania sobre o mesmo. Antes de ontem soubemos que o Parlamento tinha revogado o acordo de pesca da União Europeia com Marrocos, revogando-o precisamente por incluir o território do Sahara Ocidental. Tudo conjuntamente com as negociações que ainda estão ocorrendo entre nós e Marrocos, que devem ser esclarecidas para alcançar apenas aquilo que é um acordo político.

Como pensa que irá ser o futuro da causa saharaui? Estamos a falar de um processo de paz com Marrocos ou estamos falando de um possível regresso à luta armada?

O nosso desejo é que o conflito se resolva via Nações Unidas e no respeito da legalidade internacional. Se isso não for possível obter, por Marrocos não respeitar a legalidade internacional, então não tenha a menor dúvida que pensaremos na guerra como uma opção legítima que tem o povo saharaui.

No entanto, esperamos e estamos convencidos de que a solução passa pelo respeito dos direitos dos saharauis a existir, como o teve o Sudão do Sul, como o teve Timor-Leste, como o teve a Namíbia, já que hoje ninguém pode rejeitar ou ignorar a existência do Estado saharaui soberano sobre o seu território.


Quais as conquistas mais importantes que teve a RASD desde a sua proclamação e os principais problemas e dificuldades que tem a nível interno?

A maior conquista do Estado Saharaui foi ter logrado a união de todo o povo saharaui - uma união entre aqueles que estão aqui, aqueles que estão nos campos de refugiados, os que estão nos territórios ocupados e os que estão na diáspora – em torno de um projeto nacional e em torno de uma bandeira que hoje todo o mundo, desde logo, está disposto a aceitar.

A segunda conquista mais importante foi ter criado um legítimo reconhecimento nos foros internacionais baseado no direito do povo saharaui à autodeterminação. Legitimou-se a existência do Estado Saharaui e a existência do projeto saharaui. Simultaneamente, conseguiu que efetivamente todo o mundo respeite esse direito e que reconheçam que Marrocos, tal como o estabeleceram as resoluções das Nações Unidas, é um ocupante ilegal.

Outro dos logros importantes é que demos claramente a entender ao próprio Marrocos, e ao exército de Marrocos, que não podem eliminar-nos pela via militar e que se acaso quiserem fazer todo o possível para nos eliminar, que se lembrem que não só não conseguiram ganhar-nos a guerra como não foram capazes de obter uma única vitória militar. Hoje temos um exército que todo mundo leva em conta dentro da região, especialmente Marrocos. Este exército é garante desde logo da soberania nacional.

A outra conquista importante é que atualmente o Estado Saharaui não só é uma realidade nacional, como uma realidade regional e mundial que alcançou inúmeros progressos. Conseguimos criar o Estado, criar um parlamento, criar instituições, ministérios e uma notória melhoria na qualidade da educação, o que levou a que os nossos índices sejam dos melhores da região. A RASD conta com reconhecimentos de uma quantidade importante de países a nível mundial e somos membros da União Africana.

As dificuldades são também enormes desde que, em 1975, a nossa população era perseguida, massacrada e obrigada a dispersar-se por todas as partes do mundo. Estas dificuldades conhecemo-las em todos os campos da vida política e pública, no entanto, ultrapassamo-las pensando na nossa justa causa e mesmo com grande sacrifício. Mas as dificuldades são visíveis em todos os campos, desde logo nos territórios ocupados, onde temos violações sistemáticas de direitos humanos, desaparecimentos e uma grande quantidade de presos políticos e presos de todo o tipo. Isso mostra-nos que a nossa população vive com medo e o Estado, como tal, tem grandes desafios pensando no futuro.

Fonte: El Libre Pensador / Por Jerónimo Delgado*


* Coordenador de Estudos Africanos na Faculdade “Finanzas, Gobierno y Relaciones Internacionales” da Colômbia. A entrevista ocorreu em Tifariti, territórios libertados do Sahara Ocidental.

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