Um artigo de Nuno Ramos de
Almeida publicado no jornal “i” no
passado dia 14 de janeiro. Um jornalista que já, em duas ocasiões, teve
oportunidade de visitar e conhecer os campos de refugiados saharauis e viver de
perto as suas carências, frustrações e esperanças.
Depois da
manifestação privada dos governantes longe dos povos, e rodeada de guarda-
-costas, devíamos perceber que o fundamentalismo é mais que um bando de loucos.
Não parece
que estranho que os povos do livro, Torah, Bíblia e Corão, tenham vivido em
zonas de deserto. Quando olhamos as estrelas no meio das dunas tudo parece
mágico. As constelações têm densidade. A história do universo parece evoluir de
uma forma abrupta e real aos nossos olhos.
Fui duas
vezes ao Sara ocidental, em reportagem às zonas controladas pelos guerrilheiros
da Polisário. Estive com um povo que foi expulso de suas casas, dizimado e
torturado, a que não restou mais que fugir sob perseguição e bombardeamentos
pelos infernais caminhos do deserto. Vivem há 40 anos em acampamentos de
refugiados, numa das zonas mais inóspitas do planeta, à espera de justiça por
parte da chamada comunidade internacional. São mais de 100 mil aqui presos e
encafuados, numa vida a que retiraram toda a esperança.
São pedras a
perder de vista. Lápides irregulares espalhadas sobre a areia ao longo de
centenas de metros. O cemitério domina o campo de refugiados de Smara. As
tendas e as casas cor de terra estão lá em baixo, ocupam o horizonte,
confundem-se com o deserto. Cada pedra assinala alguém que morreu. A maioria
dos habitantes fugiram aos bombardeamentos marroquinos em 1976, mas muitos já
nasceram, viveram e terminaram aqui para todo o sempre. São a prova de que o
conflito do Sara ocidental dura há tempo de mais.
O sarauí que
nos acompanha, Deimi, aproveita para se prostrar junto ao lugar onde repousa um
familiar. A morte é dura em todo o lado, mas aqui parece mais desesperada.
"Os
velhos quando sentem que vão morrer pedem-nos para ser enterrados nos
territórios libertados. Ninguém quer morrer aqui", diz-nos Sidahmed
Ahmedbaceid (Sidi), o guia.
Nestes 40
anos, os povos livres do deserto mudaram muito nestes campos de refugiados.
Bebo chá com o fotógrafo Mohamed Mouloud, que combateu e fotografou ao lado do
primeiro líder da Polisário, El-Ouali Mustapha Sayed, que morreu em combate
depois de ter atacado a capital da Mauritânia, um dos países, juntamente com o
reino de Marrocos, que ocuparam ilegalmente o Sara Ocidental. Mostra-me as
fotos do ano de 76, guerrilheiros e guerrilheiras irmanados. Elas de camisa
aberta, deixando vislumbrar o corpo, e cabelo ao vento - muito diferentes de
grande parte das mulheres tapadas que vejo nos campos de refugiados. Ele
explica-me que entre os povos berberes do deserto o papel das mulheres sempre
foi mais interventivo que nos árabes. Nos anos 70, os guerrilheiros sarauís
eram nacionalistas e revolucionários. As mulheres eram iguais aos homens em
tudo: na vida, no combate, na morte.
Nas ruas
improvisadas de Smara ouve-se o apelo à oração. A religião está muito mais
presente que a última vez que lá tinha estado, há dez anos. Nessa altura
dizia-se que no fim desse ano, devido ao acordo com Marrocos e a comunidade
internacional e os sarauís, eles iam regressar às suas cidades junto ao mar. E
ia haver um referendo. A vitória da independência nas urnas em Timor Leste
trocou as voltas. Marrocos deu o dito por não dito e nunca mais aceitou o
referendo sobre a autodeterminação do povo sarauí.
Os homens e
mulheres que vivem em pleno deserto, em campos de refugiados, sentem-se presos
e ignorados por todos. Estão aqui pelo crime de quererem ser livres. Vivem à
conta das esmolas da comunidade internacional. A Arábia Saudita semeou aqui
madrassas com a sua interpretação fundamentalista do Corão.
Enquanto
esperam o nada, numa vida que os poderes terrenos não resolvem, homens e
mulheres parecem voltar-se para os deuses. O fundamentalismo, como de costume,
é semeado pelas bombas, pelo desespero e pelo ódio. Aqui ainda não fez a sua
colheita, como aquela que saiu dos campos bombardeados do Iraque, da Palestina
e da Líbia, mas as sementes de uma tremenda injustiça estão lá.
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