quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Filhos da nuvens




Um artigo de Nuno Ramos de Almeida publicado no jornal “i” no passado dia 14 de janeiro. Um jornalista que já, em duas ocasiões, teve oportunidade de visitar e conhecer os campos de refugiados saharauis e viver de perto as suas carências, frustrações e esperanças.


Depois da manifestação privada dos governantes longe dos povos, e rodeada de guarda- -costas, devíamos perceber que o fundamentalismo é mais que um bando de loucos.

Não parece que estranho que os povos do livro, Torah, Bíblia e Corão, tenham vivido em zonas de deserto. Quando olhamos as estrelas no meio das dunas tudo parece mágico. As constelações têm densidade. A história do universo parece evoluir de uma forma abrupta e real aos nossos olhos.

Fui duas vezes ao Sara ocidental, em reportagem às zonas controladas pelos guerrilheiros da Polisário. Estive com um povo que foi expulso de suas casas, dizimado e torturado, a que não restou mais que fugir sob perseguição e bombardeamentos pelos infernais caminhos do deserto. Vivem há 40 anos em acampamentos de refugiados, numa das zonas mais inóspitas do planeta, à espera de justiça por parte da chamada comunidade internacional. São mais de 100 mil aqui presos e encafuados, numa vida a que retiraram toda a esperança.

São pedras a perder de vista. Lápides irregulares espalhadas sobre a areia ao longo de centenas de metros. O cemitério domina o campo de refugiados de Smara. As tendas e as casas cor de terra estão lá em baixo, ocupam o horizonte, confundem-se com o deserto. Cada pedra assinala alguém que morreu. A maioria dos habitantes fugiram aos bombardeamentos marroquinos em 1976, mas muitos já nasceram, viveram e terminaram aqui para todo o sempre. São a prova de que o conflito do Sara ocidental dura há tempo de mais.

O sarauí que nos acompanha, Deimi, aproveita para se prostrar junto ao lugar onde repousa um familiar. A morte é dura em todo o lado, mas aqui parece mais desesperada.

"Os velhos quando sentem que vão morrer pedem-nos para ser enterrados nos territórios libertados. Ninguém quer morrer aqui", diz-nos Sidahmed Ahmedbaceid (Sidi), o guia.



Nestes 40 anos, os povos livres do deserto mudaram muito nestes campos de refugiados. Bebo chá com o fotógrafo Mohamed Mouloud, que combateu e fotografou ao lado do primeiro líder da Polisário, El-Ouali Mustapha Sayed, que morreu em combate depois de ter atacado a capital da Mauritânia, um dos países, juntamente com o reino de Marrocos, que ocuparam ilegalmente o Sara Ocidental. Mostra-me as fotos do ano de 76, guerrilheiros e guerrilheiras irmanados. Elas de camisa aberta, deixando vislumbrar o corpo, e cabelo ao vento - muito diferentes de grande parte das mulheres tapadas que vejo nos campos de refugiados. Ele explica-me que entre os povos berberes do deserto o papel das mulheres sempre foi mais interventivo que nos árabes. Nos anos 70, os guerrilheiros sarauís eram nacionalistas e revolucionários. As mulheres eram iguais aos homens em tudo: na vida, no combate, na morte.

Nas ruas improvisadas de Smara ouve-se o apelo à oração. A religião está muito mais presente que a última vez que lá tinha estado, há dez anos. Nessa altura dizia-se que no fim desse ano, devido ao acordo com Marrocos e a comunidade internacional e os sarauís, eles iam regressar às suas cidades junto ao mar. E ia haver um referendo. A vitória da independência nas urnas em Timor Leste trocou as voltas. Marrocos deu o dito por não dito e nunca mais aceitou o referendo sobre a autodeterminação do povo sarauí.

Os homens e mulheres que vivem em pleno deserto, em campos de refugiados, sentem-se presos e ignorados por todos. Estão aqui pelo crime de quererem ser livres. Vivem à conta das esmolas da comunidade internacional. A Arábia Saudita semeou aqui madrassas com a sua interpretação fundamentalista do Corão.


Enquanto esperam o nada, numa vida que os poderes terrenos não resolvem, homens e mulheres parecem voltar-se para os deuses. O fundamentalismo, como de costume, é semeado pelas bombas, pelo desespero e pelo ódio. Aqui ainda não fez a sua colheita, como aquela que saiu dos campos bombardeados do Iraque, da Palestina e da Líbia, mas as sementes de uma tremenda injustiça estão lá.

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