Trump reconheceu a anexação por inteiro de um
país por outro. Se Biden deixar isso de lado, as implicações globais são
profundamente preocupantes.
Por Stephen Zunes in FPIF | 21 de Janeiro, 2022
Em suas últimas semanas no cargo, o presidente
Donald Trump surpreendeu a comunidade internacional ao reconhecer formalmente o
Sahara Ocidental como parte de Marrocos. Marrocos ocupa grande parte do seu
vizinho do sul desde 1975, quando invadiu e anexou a ex-colónia espanhola,
desafiando o Conselho de Segurança das Nações Unidas e uma decisão histórica do
Tribunal Internacional de Justiça.
A maioria dos observadores acreditava que, assim
como algumas das outras decisões impetuosas de política externa de Trump, o
presidente Joe Biden a reverteria logo após assumir o cargo. No entanto, para
grande deceção de líderes bipartidários do Congresso, funcionários de carreira
do Departamento de Estado, principais aliados dos EUA, académicos do norte da
África e a comunidade de direitos humanos, ele recusou-se a fazê-lo.
O governo Biden também não reconfirmou
explicitamente o reconhecimento de Trump. No entanto, ao contrário dos mapas
das Nações Unidas, National Geographic, Rand McNally, Google ou praticamente
qualquer outro lugar, os mapas oficiais do governo dos EUA sob a administração
Biden mostram o Sahara Ocidental como parte do Marrocos, sem delineamento entre
os dois. Funcionários da embaixada dos EUA viajam para o território ocupado e tratam-no
como parte do reino. Os relatórios do Departamento de Estado que fazem
referência ao território não o listam já como uma entidade separada.
Funcionários do governo Biden recusaram-se
repetidamente a responder a perguntas da imprensa sobre o reconhecimento dos
EUA. Em resposta a perguntas diretas dos repórteres, avançam com declarações
vagas em apoio ao “processo de paz”. Por exemplo, o secretário de Estado Antony
Blinken evitou uma série de perguntas de um repórter da BBC, dizendo que os
Estados Unidos estão focados em apoiar os esforços do enviado das Nações
Unidas, Staffan de Mistura, para trabalhar com “todas as partes envolvidas… uma
solução digna” para que “o processo possa avançar”.
O problema é que o processo não está realmente
avançando.
Para os marroquinos, o reconhecimento dos EUA
apenas solidificou a sua insistência de que a autodeterminação está fora de
questão. Se a superpotência número um do mundo insiste que o Sahara Ocidental
faz parte do Marrocos e impede as Nações Unidas de fazer cumprir suas
resoluções, por razão deveriam eles considerar em se comprometerem? Para os marroquinos, o
reconhecimento dos EUA significa que a questão foi resolvida a seu favor e eles
não têm incentivo para cumprir as suas obrigações legais internacionais.
Assim como Israel e Palestina, os Estados Unidos
insistem que as duas partes resolvam isso entre si, mesmo quando a potência
ocupante exclui categoricamente a opção de um Estado independente viável. Além
disso, ignora a grande assimetria de poder entre o ocupante e os ocupados, bem
como a responsabilidade moral e legal dos poderes ocupantes de permitir aos
povos das terras conquistadas o direito de autodeterminação.
Hipocrisia trágica dos EUA
Isso contrasta com a reação dos EUA à invasão
iraquiana do Kuwait em 1990, em que os iraquianos - como os marroquinos -
apresentaram a duvidosa afirmação histórica de que seu pequeno vizinho do sul
era historicamente parte de seu país que havia sido cortado por maquinações
coloniais e que eles estavam apenas corrigindo uma injustiça histórica. Os
Estados Unidos não insistiram que os kuwaitianos se envolvessem num
interminável “processo de paz” com os iraquianos, mas insistiram que o Iraque pusesse
fim à sua ocupação, mesmo envolvendo-se numa guerra menos de seis meses depois
para revertê-la.
O governo Biden, no entanto, ao se recusar a reverter
o reconhecimento de Trump, está assumindo a posição de que a expansão do
território pela força – apesar de tais proibições na Carta da ONU – não é
necessariamente ilegal e pode ser uma forma aceitável de política.
Como resultado, a oposição da Casa Branca à
anexação ilegal da Crimeia pela Rússia e as ameaças mais recentes contra a
integridade territorial da Ucrânia nãopode ser encarada como sincera. Se o
governo realmente acreditasse que “qualquer uso da força para mudar as
fronteiras é estritamente proibido pelo direito internacional”, teria anulado o
reconhecimento de Trump. De facto, a hipocrisia do governo Biden serve apenas
para fortalecer o líder autoritário da Rússia, Vladimir Putin, que pode
argumentar corretamente que a oposição dos EUA aos seus movimentos agressivos
em relação à Ucrânia é mais política do que baseada em princípios.
Numa escala ainda maior do que os israelitas nos
seus territórios ocupados, os marroquinos têm colonizado o Sahara Ocidental com
muitas dezenas de milhares de colonos. Tal como acontece com o seu aliado
Israel, sucessivas administrações dos EUA têm facilitado a criação de factos da
potência ocupante no terreno, arrastando o processo de negociação
indefinidamente, tornando assim uma reversão da ocupação cada vez mais difícil.
O apoio de Biden à ocupação marroquina é ainda
mais controverso do que o seu apoio à ocupação israelita. Além da oposição
aberta de líderes liberais do Congresso, como o senador Patrick Leahy (D-VT), a
deputada Betty McCollum (D-MN) e outros, o reconhecimento americano da
conquista marroquina preocupou alguns conservadores proeminentes, como o
senador. James Inhofe (R-OK) e o ex-conselheiro de Segurança Nacional John
Bolton, bem como veteranos proeminentes do Departamento de Estado.
Por um lado, a oposição de Biden a princípios
jurídicos internacionais de longa data não é nova. Ele foi um defensor
declarado da invasão do Iraque pelos EUA, defendeu sucessivos governos israelitas
de direita quando eles violaram a lei internacional e criticou as Nações
Unidas, o Tribunal Internacional e outras instituições quando levantaram
preocupações sobre violações do direito internacional pelos Estados Unidos e
seus aliados.
Ao mesmo tempo, reconhecer a tomada de um país
independente inteiro por outro (a “takeover”) é uma ação praticamente sem
precedentes de uma grande potência nos tempos modernos. Mesmo os governos de
Ronald Reagan e George W. Bush, notórios por suas violações das normas
jurídicas internacionais, se recusaram a ir tão longe quanto Trump – e agora
Biden – quando se tratava da ocupação marroquina.
Fora de sintonia com o direito internacional
O Sahara Ocidental – formalmente conhecido como
República Árabe Saharaui Democrática (RASD) – foi reconhecido em um momento ou
outro por 84 países e é um Estado membro de pleno direito da União Africana
(UA). A administração Biden está efetivamente reconhecendo a invasão, ocupação
e anexação de um estado africano reconhecido por outros, prejudicando assim as
relações dos EUA com grande parte do continente.
A UA defende há muito tempo que as fronteiras
coloniais, por mais arbitrárias que possam ser, não devem ser alteradas
unilateralmente. A RASD atualmente governa cerca de um quarto do território do
Sahara Ocidental e cerca de 40% da população, principalmente em campos de
refugiados administrados pela Polisario no sudoeste da Argélia.
O Sahara Ocidental é reconhecido pelas Nações
Unidas, pelo Tribunal Internacional, pela União Africana e por um amplo
consenso de juristas internacionais como um território não autónomo. Como um
caso de descolonização incompleta, o Sahara Ocidental deve, portanto, ser
autorizado a se envolver num ato de autodeterminação genuína. É por isso que
nenhum grande país havia reconhecido o controle de Marrocos sobre o Sahara
Ocidental até o anúncio de Trump há pouco mais de um ano.
Não haveria problema se os saharauis optassem
pela incorporação em Marrocos num referendo supervisionado internacionalmente.
No entanto, como território não autónomo, eles também devem ter a oportunidade
de escolher a independência, o que Marrocos descartou categoricamente. Os
Estados Unidos estão efetivamente concordando com a monarquia marroquina que a
população autóctone do Sahara Ocidental – conhecida como saharauí, e que abraça
uma história, dialeto e cultura distintos de seu vizinho do norte – nem deveria
ter essa hipótese.
Em vez disso, os Estados Unidos e a França apoiaram
um plano marroquino de “autonomia” para o Sahara Ocidental que é bastante
limitado em abrangência e não cumpriria o padrão internacional de autonomia.
Não permite aos saharauis a opção de independência – à qual eles têm direito
como território não autónomo reconhecido pela ONU de acordo com o direito
internacional, uma série de resoluções da ONU e uma decisão histórica do
Tribunal de Internacional de Justiça.
Um pesadelo dos direitos humanos
A Human Rights Watch, a Amnistia Internacional e
outros grupos de investigação de renome documentaram detenções generalizadas,
tortura de dissidentes e repressão violenta de protestos pacíficos por parte
das autoridades marroquinas no Sahara Ocidental.
A Freedom House, na sua pesquisa em 210 países,
classificou o Sahara Ocidental ocupado pelos marroquinos como tendo o pior
registo de direitos políticos no mundo, à exceção da Síria. Isso levanta sérias
questões sobre o quanto “autonomia” significaria na prática, bem como se a
retórica do governo Biden em apoio aos direitos humanos e à democracia é de
facto sincera.
Tradicionalmente, as mulheres saharauis têm mais
direitos do que as mulheres marroquinas, tendo direitos iguais à herança e ao
divórcio, podendo manter os seus nomes de solteira e sendo confiáveis em cargos
de liderança. Elas são particularmente visíveis na liderança do movimento de
resistência não-violenta nos territórios ocupados e foram especificamente alvo
de abuso sexual pelas forças de ocupação marroquinas.
De facto, a aparente crença do governo Biden de
que o Sahara Ocidental deveria ser governado por uma monarquia estrangeira,
autocrática e de direita, em vez de uma república relativamente progressista e
secular, diz muito sobre suas prioridades.
A Frente Polisario, o movimento nacionalista que
surgiu inicialmente na luta anticolonial contra a Espanha, engajou-se numa luta
armada contra as forças de ocupação marroquinas até concordar com um
cessar-fogo em 1991 em troca de um referendo sobre a independência. Marrocos
nunca quis que isso fosse por adiante, no entanto. Após 29 anos de promessas
não cumpridas, ocupação contínua e uma série de violações marroquinas do
cessar-fogo, a Polisario retomou a guerra no outono de 2020.
Os aliados de Marrocos no Congresso continuam
insistindo sem provas que a Polisario tem ligações com o Hezbollah, Al-Qaeda, o
Estado Islâmico e outros grupos terroristas, embora a Polisario nunca se tenha envolvido
em terrorismo e tenha uma orientação decididamente secular. Independentemente
disso, o fracasso do governo Biden em apoiar o direito do povo do Sahara
Ocidental à autodeterminação está contribuindo para a desestabilização da
região.
Maiores apostas para o século XXI
As implicações das políticas do governo Biden vão
muito além do destino de meio milhão de saharauis que vivem no exílio ou sob
regime militar repressivo. O fracasso de Biden em reverter o reconhecimento de
Trump da conquista marroquina não apenas prolongará o amargo conflito no Sahara
Ocidental, mas também contribuirá para minar a ordem internacional liberal em
vigor desde o final da Segunda Guerra Mundial.
Como resultado, as apostas não são apenas sobre o
futuro de um pequeno país, mas a questão de qual princípio prevalecerá no
século XXI: o direito de autodeterminação ou o direito de conquista?
A resposta pode determinar o destino não apenas
do Sahara Ocidental, mas de toda a ordem jurídica internacional por muitas
décadas.
Stephen Zunes
Stephen Zunes, é colaborador da FPIF e professor
de Política na Universidade de San Francisco (EUA). É co-autor com Jacob Mundy
livro recém editado “Western Sahara: War, Nationalism, and Conflict
Irresolution” (Syracuse University Press, segunda edição atualizada e aumentada,
2022)