segunda-feira, 14 de outubro de 2024

SAHARA OCIDENTAL E A ESPERANÇA DA LIBERDADE

 



Artigo publicado na revista «O Referencial» - da Associação 25 de Abril - n.º 154 julho-setembro 2024

 

A 27 de fevereiro de 1976, a Frente POLISARIO proclamou a República Árabe Saharaui Democrática (RASD), tendo sido, nos anos seguintes, reconhecida por 84 países e admitida como membro de pleno direito na então Organização de Unidade Africana (OUA) em 1982. Mas, o território permanece ocupado ilegalmente por Marrocos, desde outubro de 1975.

 

MARTINS GUERREIRO*

 

TERMINAMOS O ANO DE 2023 com duas guerras que enchem os noticiários, mas sabemos que não são as únicas. E durando algumas há décadas, sem solução à vista, candidatas à catástrofe, consideramos que é o momento de abordarmos uma que, além da vizinhança, tem para os portugueses afinidades históricas e culturais.

É o caso do Sahara Ocidental – hoje a última colónia de África - ocupado ilegalmente por Marrocos desde outubro de 1975. Estava Portugal em pleno processo de descolonização quando, nas vésperas da morte do ditador Franco, se desencadeia a grande velocidade a passagem de poder na colónia espanhola. Os factos falam por si:

 

– a 15/10/1975, a Missão da ONU ao Sahara Ocidental (8 maio-14 junho 1975) publica o seu relatório, no qual afirma que a Frente POLISARIO parecia ser a força política dominante e que tinha testemunhado manifestações em seu apoio em todo o território;

– a 16/10/1975, o Tribunal Internacional de Justiça publica o seu Parecer consultivo, pedido em 13/12/1974 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, não reconhecendo quaisquer vínculos de soberania entre Marrocos ou a Mauritânia e os povos do Sahara Ocidental;

– no mesmo dia, passadas poucas horas, o rei Hassan II anuncia a preparação da ocupação do Sahara Ocidental;

– a 31/10/1975, Marrocos inicia a invasão militar do Sahara Ocidental;

– a 6/11/1975 começa a chamada “Marcha Verde”, que coloca durante alguns dias milhares de civis marroquinos a ocupar o território saharaui, enquadrados pelas forças militares;

– a 14/11/1975 a Espanha assina com Marrocos e a Mauritânia os Acordos Tripartidos de Madrid, repartindo o território saharaui pelos dois vizinhos, a troco de vantagens económicas a médio prazo, salvaguardadas em documentos secretos;

– na mesma altura inicia-se a fuga dos civis saharauis à invasão marroquino-mauritana e a criação dos campos de refugiados saharauis na região de Tindouf (Argélia), que permanecem até agora;

– 20/11/1975 – morre Francisco Franco;

– 26/02/1976 – a Espanha retira as suas últimas tropas do Sahara Ocidental;

– 27/02/1976 – a Frente POLISARIO proclama a República Árabe Saharaui Democrática (RASD) reconhecida, nos anos seguintes, por

84 países e admitida como membro de pleno direito na então Organização de Unidade Africana (OUA) em 1982.


SEMELHANÇAS COM TIMOR

À semelhança da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973 ou de Timor-Leste, em 28 de novembro de 1975, face à situação colonial existente, o movimento de libertação saharaui viu-se compelido a proclamar a independência. A semelhança com o caso de Timor é evidente: perante o vazio legal provocado pela saída (total ou parcial) da potência colonial e a ocupação do território por forças de outro (s) país(es), impunha-se a proclamação da nova República.

De então para cá, seguiram-se três fases distintas no conflito que opõe o Reino de Marrocos e a Frente POLISARIO, reconhecida pela ONU e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia como a legítima representante do povo do Sahara Ocidental (a Mauritânia, derrotada militarmente em 1978, assinou no ano seguinte um acordo de paz com o movimento saharaui e reconheceu a RASD em 1984).

Até 1991 travou-se uma guerra que acabou por criar tais problemas a Marrocos – militares, económicos e políticos – que o Reino, apesar da construção de um muro com 2.700km para tentar suster as forças saharauis, se viu pressionado para aceitar um cessar-fogo, mediado pela ONU e pela OUA.

O cessar-fogo, assinado por ambas as partes em 6 de Setembro de 1991, foi acompanhado por um acordo, apoiado por unanimidade pelo Conselho de Segurança, relativo à realização, no ano seguinte, de um referendo de autodeterminação para que o povo saharaui se pronunciasse livremente sobre o seu futuro. Neste contexto, foi criada a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), que se mantém até agora no terreno.

O dia do referendo ainda não chegou, porque uma vez terminado, em 2000, o longo processo de elaboração dos cadernos eleitorais, sempre perturbado por interferências de Marrocos, o regime de Rabat, perante a possibilidade real e evidente de perda do escrutínio, protelou sucessivamente a realização da votação. Voltando com a palavra atrás, forçou a ONU a tentar trilhar um novo caminho negocial, para o qual foi nomeando sucessivos Representantes Pessoais do Secretário-geral, encarregados de dinamizar as negociações.


IMPOTÊNCIA INTERNACIONAL

Christopher Ross, embaixador norte-americano jubilado, Representante Pessoal do Secretário-geral da ONU (2009-2017), testemunhou numa mensagem enviada à “I Jornada Europeia de Amizade com o Povo Saharaui” (Florença, Itália, 2/7/2022): “Entre 2007 e 2019, o meu antecessor, o meu sucessor e eu patrocinámos 15 sessões entre estas duas partes, com a Argélia e a Mauritânia presentes como Estados vizinhos. Infelizmente, nunca houve nada a que se pudesse chamar negociações, e a comunidade internacional tem todo o direito de saber porquê. A Polisario apresentou-se em cada sessão disposta a discutir as duas propostas, mas Marrocos apresentou uma condição prévia importante: discutiria apenas a sua própria proposta. Escusado será dizer que a Polisario se recusou a aceitar o que considerava ser um diktat, e as negociações ficaram condenadas desde o início.”

Praticamente três décadas, quatro Representantes Pessoais do Secretário-geral e cinco Secretários-gerais da ONU depois do acordo de cessar-fogo e do compromisso de realização do referendo, sem quaisquer resultados, a guerra voltou ao Sahara Ocidental em 13 de novembro de 2020. A reação militar marroquina perante uma manifestação pacífica saharaui que, em território considerado desmilitarizado pelos acordos de 1991, exigia o fim da exploração ilegal dos recursos naturais do seu país, quebrou o cessar-fogo e ditou o recomeço das hostilidades, que Marrocos continua a não reconhecer oficialmente.


«AO CELEBRAR OS 50 ANOS DO 25 DE ABRIL, NÃO DEVEMOS IGNORAR A LUTA E O SOFRIMENTO DESTES POVOS AOS QUAIS NOS LIGAM FORTES LAÇOS HISTÓRICOS E CULTURAIS»


António Guterres levou dois anos (2019-2021) para conseguir nomear um novo Representante Pessoal para o Sahara Ocidental, o diplomata italo-sueco Steffan de Mistura que, por sua vez, levou dois anos até conseguir, finalmente, em setembro de 2023, visitar o território que justifica o seu posto.

De acordo com estatísticas recentes, desde 2014 pelo menos 295 pessoas foram expulsas sumariamente do Sahara Ocidental ocupado, ou impedidas de nele entrar, pelas autoridades marroquinas. Não incluindo os casos de representantes das Nações Unidas, como De Mistura, e missões do Conselho de Direitos Humanos, que há oito anos consecutivos solicitam visitas, sem conseguir obter autorização de Rabat, como refere o último relatório do Secretário-geral ao Conselho de Segurança (outubro de 2023).

Esta política de afronta à comunidade internacional não é um acaso, como também não o é a recusa de incluir no mandato da MINURSO uma valência de monitorização dos Direitos Humanos (é a única força de paz das Nações Unidas que não tem esta competência). A prática de humilhação, intimidação, violência, desaparecimentos forçados, prisões ilegais, tortura, julgamentos sem provas ou com provas forjadas de saharauis, mas também de jornalistas, intelectuais e ativistas marroquinos, é sistemática. É isso que Marrocos, que este ano preside ao Conselho de Direitos Humanos (!), não quer deixar ver.


ESPERANÇA EM 2024

O ano de 2024 vai ser importante para o povo saharaui. Espera-se a publicação da sentença final de um litígio que a Frente POLISARIO iniciou há dez anos, relativo à legalidade dos acordos comerciais sobre agricultura e pesca celebrados entre a União Europeia e o reino de Marrocos, que incluem o território não-autónomo do Sahara Ocidental como se estivesse sob soberania marroquina, e que deu origem a três veredictos (2016, 2018, 2021), dos quais as autoridades europeias sempre recorreram [NOTA: A sentença do TJUE, tornada pública a 04 de outubro, foi totalmente favorável à causa saharaui. Ver artigo AQUI].

Em resumo, a justiça europeia até agora reconheceu que o Sahara Ocidental é um território “distinto e separado” de Marrocos, e que este não tem qualquer jurisdição sobre ele nem, obviamente, sobre os seus recursos. Em 2018 o Tribunal especificou que estes recursos estão ligados ao território, às águas e ao espaço aéreo saharaui. Em 2021 o Tribunal explicitou que a utilização dos recursos do Sahara Ocidental carece do consentimento do povo saharaui e que

este é representado pela Frente POLISARIO, à qual reconheceu personalidade jurídica.

Mudanças na condução da guerra pela Frente POLISARIO, que no último trimestre de 2023 começou a atingir alvos militares na cidade ocupada de Smara, e a perspetiva de um possível alastramento que desestabilize ainda mais a região, num contexto de profundas mudanças no Médio Oriente, e a nível global, preocupam alguns aliados de Marrocos.

O sub-secretário de Estado Adjunto norte-americano para o Médio Oriente e o Norte de África, Joshua Harris, exprimiu-se assim numa entrevista dada na embaixada dos EUA em Argel (9/12/2023): “Em particular, os Estados Unidos estão muito concentrados no êxito do processo da ONU no Sahara Ocidental. Consideramos que é muito urgente permitir ao Enviado Pessoal De Mistura progredir o mais depressa possível. A escalada no terreno e a intensificação do conflito militar são demasiado alarmantes e afastar-nos-ão ainda mais de uma solução política da qual precisamos desesperadamente.”


MARROCOS EM CRISE

Estas declarações não são alheias às perturbações que se verificam no próprio Reino: um regime cada vez mais percebido, interna e externamente, como uma ditadura, centrado na figura do Rei, que deixa mãos livres às polícias e ao aparelho de segurança; um povo mergulhado numa crise económica e social, sem perspetivas de vida, que anseia maioritariamente por emigrar; uma política externa focada, como declarado pelo soberano no seu discurso de 20 de agosto de 2022, na manutenção do domínio sobre o Sahara Ocidental. Política esta que deu origem aos mais variados “desvarios”: corrupção de eleitos em vários países e em Bruxelas, onde decorre um processo judicial que expôs uma prática de anos no seio do Parlamento Europeu, com sérias consequências para a integridade das tomadas de posição do hemiciclo; espionagem das comunicações e da vida de milhares de pessoas através da utilização do sistema israelita “Pegasus”, que violou a intimidade de supostos opositores nacionais, assim como de jornalistas e personalidades de diversos países (casos confirmados pela Amnistia Internacional), e que, diversas fontes nunca desmentidas, apontaram como tendo incluído o Presidente francês e o presidente do Governo espanhol, e muitos dos respetivos ministros; chantagem sistemática relacionada com situações de emigração, de droga e de terrorismo.

Marrocos é um barril de pólvora em formação, que o isolamento regional (relações diplomáticas com a Argélia cortadas desde 2020, ligações difíceis com a Mauritânia) e a oficialização das relações diplomáticas com Israel, a troco do reconhecimento da sua soberania sobre o Sahara Ocidental por Trump, contra a vontade popular, desde sempre solidária com o povo palestiniano, torna mais perigoso no atual contexto.

Ao celebrar os 50 anos do 25 de Abril, não devemos ignorar a luta e o sofrimento destes povos aos quais nos ligam fortes laços históricos e culturais. Recordemos uma nossa palavra de ordem: “Um povo não pode ser livre quando oprime outros povos e a Constituição da Republica Portuguesa afirma: ”Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão “ ( Artigo 7.º - n.º 3 ). Por outro lado, um povo livre como o povo português de Abril é solidário com os povos oprimidos, por isso é nosso dever encontrarmos formas de nos opormos a tanta injustiça como a que enfrenta o povo saharaui, que há cinco décadas combate o colonialismo – primeiro, espanhol, depois marroquino – pelo que não podemos ser cúmplices, na UE ou isoladamente, com os agentes diretos da opressão.

Em Portugal, apoiamos exemplarmente o povo de Timor-Leste na sua luta pela autodeterminação e independência, vibramos com o seu sucesso para o qual contribuímos. Em coerência, cabe-nos participar numa solidariedade vibrante com o povo saharaui, pelo seu direito a viver numa pátria livre.

 

* Capitão de Abril, sócio da A25A

Nota: Este texto foi elaborado com a colaboração de Luísa Teotónio Pereira

 


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