O Enviado Pessoal do SG da ONU para o Sahara Ocidental, Staffan De Mistura |
Artigo de Ahmed Omar | El Confidencial Saharaui - 18-10-2024
Madrid (ECS).- O recente relatório apresentado pelo enviado pessoal do Secretário-Geral das Nações Unidas, Staffan de Mistura, ao Conselho de Segurança da ONU, propondo a divisão do Sahara Ocidental, fez soar o alarme em toda a região. Esta proposta representa um desenvolvimento profundamente preocupante que poderá desestabilizar não só o território do Sahara Ocidental, mas também toda a região do Norte de África.
Historicamente, o estatuto do Sahara Ocidental como território não autónomo que aguarda descolonização tem sido afirmado por uma multiplicidade de organismos internacionais, incluindo as Nações Unidas e a União Africana. A base jurídica que sustenta o direito do povo saharaui à autodeterminação é inabalável e foi reforçada por recentes decisões do Tribunal de Justiça Europeu que rejeitam categoricamente as reivindicações de Marrocos sobre o território.
No entanto, em desafio direto a estes precedentes legais, a proposta de partição de De Mistura procura legitimar uma ocupação ilegal e contraria o próprio mandato da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO). Ao promover a divisão, De Mistura alinha-se com um perigoso precedente criado em 1976, quando Marrocos e a Mauritânia tentaram dividir o Sahara Ocidental após a invasão inicial do território por Marrocos. Esta tentativa de partilha não é apenas um insulto ao direito internacional, mas também corre o risco de consolidar ainda mais o status quo, dando a Marrocos maior influência e marginalizando as legítimas aspirações do povo saharaui.
A partição, como solução, deve ser reconhecida pelo que de facto é: uma negação do direito do povo saharaui à autodeterminação e à independência. O conflito do Sahara Ocidental não tem a ver apenas com disputas territoriais; tem a ver com a descolonização de um povo que lutou durante décadas para recuperar a sua terra e a sua soberania. Este plano de partilha mina os princípios fundamentais do direito internacional e as numerosas resoluções da ONU que apelaram à realização de um referendo para determinar o futuro do território.
Além disso, a divisão ameaça exacerbar as tensões numa região já de si frágil. O controlo militarizado de Marrocos sobre o Sahara Ocidental conduziu a graves violações dos direitos humanos, à repressão de protestos pacíficos e à exploração dos recursos naturais da região. A divisão do território conduziria a um aumento da violência e da militarização, que poderia afetar os Estados vizinhos e desestabilizar toda a região do Magrebe.
“A partição tem uma história problemática como mecanismo de resolução de problemas de colonização e ocupação, conduzindo frequentemente ao agravamento dos conflitos e à instabilidade a longo prazo.
Eis alguns dos principais exemplos de casos em que a partilha não conseguiu encontrar soluções justas e duradouras:
1) Partição da Índia e do Paquistão (1947)
A divisão da Índia britânica em Índia e Paquistão é um dos casos mais infames de uma solução de partilha falhada. A decisão de dividir o território segundo linhas religiosas conduziu a uma das maiores migrações em massa da história, com milhões de hindus, muçulmanos e sikhs a fugirem das suas casas em busca de segurança no recém-formado Paquistão ou na Índia. A partilha provocou uma violência comunal generalizada, que resultou na morte de um a dois milhões de pessoas. Além disso, o legado da divisão continuou a alimentar as tensões entre a Índia e o Paquistão, em especial no que respeita à região de Caxemira, conduzindo a várias guerras, à militarização contínua e à hostilidade entre as duas nações com armas nucleares. Longe de resolver o conflito, a divisão deixou uma ferida profunda no subcontinente que permanece aberta até hoje.
2. Palestina e Israel (1947)
O plano da ONU para a partilha da Palestina em 1947, na sequência da retirada colonial britânica, visava a criação de Estados judeus e árabes separados. No entanto, esta decisão preparou o terreno para décadas de conflitos violentos entre israelitas e palestinianos. A guerra israelo-árabe inicial de 1948 deslocou centenas de milhares de palestinianos, criando uma crise de refugiados que persiste até aos dias de hoje. As guerras subsequentes e a ocupação dos territórios palestinianos por Israel agravaram a situação. A solução de dois Estados, que constituía a essência do plano de partilha, nunca foi plenamente concretizada e, atualmente, o conflito na Palestina prossegue com um genocídio contínuo, em que os palestinianos enfrentam uma limpeza étnica, e a paz e a estabilidade parecem inatingíveis.
3. Chipre (1974)
Em 1974, na sequência de um golpe de Estado apoiado pelos gregos e da subsequente intervenção militar turca, Chipre ficou efetivamente dividido entre o Sul, controlado pelos gregos, e o Norte, controlado pelos turcos. Apesar dos numerosos esforços diplomáticos para reunificar a ilha, esta continua dividida até hoje. A divisão criou um conflito congelado, com a República Turca do Norte de Chipre a ser reconhecida apenas pela Turquia, enquanto o resto do mundo reconhece a República de Chipre. Esta divisão não resolvida continua a afetar a política interna de Chipre e as suas relações internacionais, nomeadamente no âmbito da União Europeia, de que apenas a parte sul é membro.
4. Vietname (1954)
Após a Primeira Guerra da Indochina, os Acordos de Genebra de 1954 dividiram o Vietname no paralelo 17, ficando o Norte sob controlo comunista e o Sul sob um governo apoiado pelo Ocidente. Esta divisão tinha um carácter temporário e a reunificação deveria ser decidida através de eleições nacionais. No entanto, as eleições nunca se realizaram e a divisão acabou por conduzir à Guerra do Vietname. O conflito custou milhões de vidas, devastou o país e resultou na reunificação do Vietname sob controlo comunista em 1975. A divisão do Vietname é amplamente considerada um fracasso, uma vez que se limitou a adiar o conflito em vez de o resolver.
Lições para o Sahara Ocidental
Estes exemplos históricos revelam que a divisão é frequentemente uma solução a curto prazo que não resolve os problemas subjacentes à colonização, à ocupação e à autodeterminação. A divisão conduziu a uma violência duradoura, a deslocações maciças e a gerações de conflitos não resolvidos. O caso do Sahara Ocidental partilha muitas semelhanças com estas partições falhadas, particularmente na forma como tenta contornar as aspirações legítimas de um povo colonizado em favor da conveniência. Em vez de resolver o problema, a partição será o fator que alimentará o risco de inflamar as tensões, aprofundar a divisão e perpetuar o sofrimento do povo saharaui.
A divisão do Sahara Ocidental, tal como sugerida pelo enviado pessoal do SG da ONU, Staffan de Mistura, seguiria uma trajetória semelhante. Daria coragem à potência ocupante, Marrocos, para consolidar o seu controlo sobre a região, conduzindo a mais deslocações de saharauis e à militarização do conflito. Em vez de paz, a divisão traria mais conflitos, como se tem visto em tantas outras regiões onde esta tática foi tentada e falhou.
Uma solução sustentável para o Sahara Ocidental só pode surgir do respeito pelo direito internacional e pelo direito à autodeterminação, e não da ressurreição da estratégia falhada da partilha. O povo saharauí, tal como o da Índia, da Palestina, de Chipre e do Vietname, merece a oportunidade de determinar o seu próprio futuro, livre de ocupação, divisão e imposição externa.
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