quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Marrocos arranca a Pedro Sánchez um novo apoio à autonomia do Sahara “sob soberania marroquina”

 


O jornalista Francisco Carrión, faz-nos nas páginas do El Independiente um balanço da cimeira Espanha-Marrocos, que teve lugar hoje, no Palácio de La Moncloa, em Madrid. 


Francisco Carrión – El Independiente | @fcarrionmolina

Caso haja dúvidas. A declaração conjunta da Reunião de Alto Nível Espanha-Marrocos [realizada hoje no Palácio de La Moncloa] inclui uma reafirmação clara da viragem histórica no conflito do Sahara, que Sumar [o parceiro do PSOE no Governo] e os restantes partidos políticos espanhóis censuram.

«O presidente do Governo reiterou a posição da Espanha sobre a questão do Sahara Ocidental, expressa na Declaração Conjunta de 7 de abril de 2022. Nesse sentido, a Espanha acolhe com satisfação a adoção da resolução 2797 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 31 de outubro de 2025, apoiando «plenamente o trabalho do Secretário-Geral e do seu Enviado Pessoal para facilitar e celebrar negociações com base na proposta de autonomia de Marrocos, com vista a alcançar uma solução justa, duradoura e aceitável para todas as partes, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, e acolhe com agrado qualquer sugestão construtiva das partes em resposta à proposta de autonomia», que sublinha que «uma verdadeira autonomia sob a soberania marroquina poderia ser a solução mais viável» para uma solução mutuamente aceitável», refere a declaração.

Todo o artigo AQUI


Uma entrevista cheia de ameaças veladas: Marrocos volta a ditar condições a Espanha com total impunidade diplomática – ministro marroquino da Indústria e Comércio, Ryad Mezzour ao EL MUNDO

 

Ryad Mezzour

A entrevista do ministro marroquino da Indústria e Comércio, Ryad Mezzour, publicada por El Mundo, desencadeou forte polémica ao revelar uma posição de força de Rabat em plena Reunião de Alto Nível em Madrid. Mezzour afirmou que Marrocos tem “toda a soberania” sobre o Saara Ocidental — território ainda por descolonizar segundo a ONU — e atribuiu a Espanha um “papel central” na aprovação da última resolução do Conselho de Segurança, apresentada por Rabat como um apoio ao seu plano de autonomia.
O ministro reforçou uma lógica de condicionamento político ao declarar que “uma Espanha que se porta bem é um Marrocos que se porta bem”, frase interpretada como chantagem diplomática. Também evitou reconhecer a soberania espanhola sobre Ceuta e Melilla, insinuando comparações com Gibraltar, e voltou a reivindicar o controlo do espaço aéreo do Sahara Ocidental, gerido por Espanha através das Canárias por decisão internacional.
O texto sublinha que estas declarações reforçam a perceção de que Marrocos se sente legitimado para impor condições a Espanha, sem encontrar resposta firme do Governo espanhol. O Frente Polisario alertou ainda que ceder a gestão do espaço aéreo poderia abrir caminho a futuras pressões sobre as Canárias.
A entrevista é apresentada como um sinal de desequilíbrio na relação bilateral, marcado por pressões marroquinas e pela passividade de Madrid, num contexto em que o Sahara Ocidental continua classificado como território ocupado e cresce a inquietação política e social em Espanha.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A ocupação do Sahara Ocidental por Marrocos e os acordos com a UE: complacência ou cumplicidade da Comissão Europeia?


 

O significado da votação há dias no Parlamento Europeu sobre a etiquetagem dos produtos oriundos do Sahara Ocidental ocupado. Como votaram os deputados portugueses


O Parlamento Europeu falhou por um único voto a oportunidade de travar a proposta da Comissão Europeia que permitiria disfarçar a verdadeira origem dos produtos agrícolas provenientes do Sahara Ocidental ocupado. A objeção reuniu 360 votos — menos um do que os 361 necessários — deixando passar, por margem mínima, um regulamento amplamente considerado enganoso.

O resultado expõe uma profunda rejeição política à iniciativa de Bruxelas, já que uma maioria clara do plenário instou a Comissão a não avançar com a medida. Ainda assim, a exigência de maioria absoluta acabou por salvar um regulamento criticado por violar o direito internacional e por tentar contornar sucessivas sentenças do Tribunal de Justiça da UE, que reafirmam que não só Marrocos não tem soberania sobre o Sahara Ocidental como os dois territórios são entidades distintas.

Ao permitir a substituição da origem saharaui por designações administrativas marroquinas, a Comissão é acusada de normalizar uma ocupação ilegal e de importar para o mercado europeu os interesses estratégicos de Rabat. Durante o debate, eurodeputados de vários grupos denunciaram a proposta como um exercício de “rebranding” colonial, prejudicando consumidores, agricultores europeus e o próprio Estado de direito europeu.

Apesar da derrota formal da objeção, o regulamento enfrentará agora um escrutínio ainda mais forte no processo de codecisão. O episódio revela uma Comissão politicamente isolada e dependente de uma margem mínima para defender uma medida cuja legitimidade jurídica e ética está cada vez mais posta em causa.

Se a Comissão precisa de sobreviver por um voto, a fragilidade da sua posição é evidente — e confirma-se que, no dossiê do Sahara Ocidental, o problema já não é apenas a ocupação marroquina, mas a complacência ou mesmo cumplicidade europeia perante ela.



Como votaram os 21 deputados portugueses


Sebastião Bugalho, Paulo Cunha, Lídia Pereira e Hélder Sousa Silva (todos do Partido Popular Europeu e eleitos pelo PSD)

04 – votaram CONTRA a proposta que visava bloquear a iniciativa da Comissão Europeia que permite mascarar a verdadeira origem dos produtos agrícolas provenientes do Sahara Ocidental ocupado. Foram eles: Sebastião Bugalho, Paulo Cunha, Lídia Pereira e Hélder Sousa Silva (todos do Partido Popular Europeu e eleitos pelo PSD).

Isilda Gomes, Sérgio Gonçalves, Ana Catarina Mendes, André Rodrigues, Carla Tavares, Marta Temido (todos do Grupo Socialistas e Democratas – S&D e eleitos pelo PS), João Oliveira (do Grupo The Left eleito pelo PCP) e Ana Vasconcelos (do Grupo Renew eleita pela IL)

08 – votaram a FAVOR da proposta que visava bloquear a iniciativa da CE: Isilda Gomes, Sérgio Gonçalves, Ana Catarina Mendes, André Rodrigues, Carla Tavares, Marta Temido (todos do Grupo Socialistas e Democratas – S&D e eleitos pelo PS), João Oliveira (do Grupo The Left eleito pelo PCP) e Ana Vasconcelos (do Grupo Renew eleita pela IL).

Paulo do Nascimento Cabral, Sérgio Humberto (ambos do Partido Popular Europeu e eleitos pelo PSD) , Ana Miguel Pedro (do Grupo PPE e eleita pelo CDS nas listas da Aliança Democrática), Bruno Gonçalves (do Grupo S&D, eleito pelo PS) e António Tânger Corrêa (do Grupo PfE eleito pelo Chega)

05 – optaram pela ABSTENÇÃO. Paulo do Nascimento Cabral, Sérgio Humberto (ambos do Partido Popular Europeu e eleitos pelo PSD) , Ana Miguel Pedro (do Grupo PPE e eleita pelo CDS nas listas da Aliança Democrática), Bruno Gonçalves (do Grupo S&D, eleito pelo PS) e António Tânger Corrêa (do Grupo PfE eleito pelo Chega).


Francisco Assis (PS), Cotrim de Figueiredo (IL), Catarina Martins (BE) 
e Tiago Moreira de Sá (Chega)
04 AUSENTES - o socialista Francisco Assis, o liberal João Cotrim de Figueiredo, Catarina Martins do Bloco de Esquerda e Tiago Moreira de Sá, do Chega.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Sahara, 50 anos de vidas roubadas - La Marea, edição gratuita

 

Nuena Djil Bani mostra no seu telemóvel a fotografia que Christine Spengler lhe tirou em 1976, uma imagem que a tornou um ícone da luta do povo saharaui. Djil Bani foi capa da edição de Setembro da revista «La Marea» dedicada ao Sahara Ocidental.

A edição de Setembro da revista espanhola «La Marea», inteiramente dedicada ao Sahara Ocidental, foi coordenada pela jornalista e escritora Laura Casielles, tendo esgotado fisicamente das bancas. A publicação decidiu dar um passo mais além e oferecê-la gratuitamente em formato PDF.

Se quiser ler a edição especial da revista La Marea sobre o Sahara Ocidental pode descarregá-la aqui:👇


La Marea é uma publicação jornalística independente de Espanha, criada em 2012 por jornalistas, tendo-se tornado uma referência no jornalismo independente espanhol, frequentemente destacada por reportagens críticas, investigações próprias e defesa da ética jornalística.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Rabat tenta blindar a ocupação do Sahara Ocidental usando as Canárias como moeda de troca

 


A imprensa espanhola volta a reproduzir, quase sem filtros, o enquadramento narrativo do lobby marroquino: Marrocos «ofereceria» a Espanha uma suposta garantia de não tocar nas Canárias em troca de Madrid aceitar como um facto consumado as suas ambições sobre o Sahara Ocidental e a sua fachada atlântica. A abordagem, divulgada através do Atalayar (órgão da propaganda marroquina em língua espanhola) e amplificada acriticamente pelo El Periódico (da Catalunha), baseia-se numa premissa falsa: que a ONU teria «apoiado» o plano de autonomia marroquino. Na realidade, a Resolução 2797 (2025) não reconhece qualquer soberania de Marrocos sobre o território, mantém o quadro de descolonização pendente e preserva o direito do povo saharaui à autodeterminação. Tudo o resto é propaganda de Rabat. A partir dessa narrativa manipulada, Marrocos tenta apresentar como natural que possa delimitar espaços marítimos que afetam o Sahara Ocidental — território não autónomo e ocupado ilegalmente — e estender essa lógica até às Canárias. O discurso proposto por Rabat é claro: se Espanha aceitar que Marrocos fixe unilateralmente a mediana atlântica, controle o espaço aéreo do Sahara — atualmente gerido a partir de Gran Canaria — e consolide a sua apropriação dos recursos saharauis, então o regime alauita garantiria que «não haverá problemas com as Canárias». A mensagem implícita é inquietante: transformar a segurança do arquipélago numa moeda de troca para branquear a ocupação.

Um dos pontos mais graves é a tentativa de Marrocos de legitimar o seu controlo sobre o Monte Tropic, um monte submarino a sudoeste de El Hierro que alberga um dos maiores depósitos conhecidos de telúrio, cobalto e terras raras. Rabat tenta justificá-lo manipulando o estatuto do Sahara Ocidental, misturando a fachada atlântica marroquina com águas que correspondem ao território ocupado. Daí a proposta de uma «Zona de Desenvolvimento Conjunto» que, sob uma aparência técnica e cooperativa, procura na realidade consolidar uma repartição de benefícios sobre recursos que não pertencem nem a Marrocos nem a Espanha, mas ao povo saharaui, de acordo com as sentenças do TJUE e do direito internacional.

O artigo reproduzido também levanta a necessidade de coordenar com Marrocos a gestão do espaço aéreo sobre o Sahara Ocidental. Esta competência não é uma concessão espanhola, mas uma consequência direta do estatuto jurídico do território e da inexistência de soberania marroquina sobre ele. A transferência dessa gestão seria um ato político, não técnico, e significaria legitimar o ocupante. Marrocos sabe disso e, por isso, apresenta-o como uma «transição ordenada», procurando normalizar o que não passa de mais uma violação do direito internacional.

O texto acrescenta que as Canárias e Marrocos partilham ecossistemas e bancos de pesca, insinuando que ambas as partes deveriam aceitar uma delimitação «equitativa». Mas a equidade jurídica só pode existir quando se parte de duas soberanias reconhecidas. Aqui não é o caso: Marrocos não é soberano nem administrativo do Sahara Ocidental, e a Espanha continua a ser a potência administradora de jure. Pretender redefinir a fronteira marítima ignorando este facto só serve para reforçar a ocupação e invisibilizar o sujeito central do conflito: o povo saharaui.

A insistência marroquina em apresentar-se como «potência atlântica africana» é acompanhada por uma tentativa de arrastar a Espanha para um novo quadro, onde a prioridade seria criar um «espaço de confiança» capaz de atrair investimentos. Mas esse espaço de confiança é construído sobre uma base falsa: aceitar a apropriação dos recursos saharauis, assumir uma delimitação marítima feita à medida dos interesses de Rabat e relegar o direito internacional a um trâmite incómodo. A arquitetura jurídica que Marrocos tenta impor não só é ilegal, como introduz um elemento inaceitável: tornar a estabilidade das Canárias refém da aceitação espanhola da pilhagem no Sahara Ocidental.

Este tipo de abordagens não é novo, mas torna-se mais agressivo sempre que Rabat percebe fraqueza, ambiguidade ou complacência em Madrid. A realidade, no entanto, continua a mesma: não há delimitação marítima possível, nem Zonas de Desenvolvimento Conjunto, nem transferência de espaço aéreo, nem partilha de recursos estratégicos que possam ser construídos sem primeiro reconhecer que o Sahara Ocidental é um território pendente de descolonização e que o único detentor dos seus recursos é o seu povo, representado pela Frente Polisario. Qualquer tentativa de usar as Canárias como elemento de pressão política apenas demonstra até que ponto Marrocos precisa de legitimar uma ocupação que nem o direito internacional, nem os tribunais europeus, nem a própria ONU jamais validaram. (In No te Olvides del Sahara Occidental)

domingo, 30 de novembro de 2025

ENTREVISTA | Oubbi Buchraya, assessor especial do secretário-geral da Frente Polisario para os recursos naturais e assuntos jurídicos



“Ninguém entende a insistência do PSOE em ceder à chantagem de Marrocos, contra os interesses dos agricultores espanhóis”


El Independiente 30-11-2025 | Foi um dos arquitetos da ação judicial que, há um ano, levou o Tribunal de Justiça da União Europeia a anular os acordos pesqueiro e agrícola celebrados entre Bruxelas e Marrocos envolvendo o Sahara Ocidental, a antiga província espanhola. Oubbi Buchraya, um dos diplomatas saharauis mais reconhecidos, lidera agora a nova batalha judicial do Frente Polisario contra a Comissão Europeia e o seu esforço para continuar a negociar e pactuar acordos comerciais que incluam o território saharaui com o regime de Mohamed VI.

“A Polisario apresentará em dezembro um novo recurso contra este acordo no Tribunal Geral da UE, que é a primeira instância”, anuncia Buchraya em entrevista ao El Independiente, na qual se mostra especialmente crítico para com o PSOE, numa semana marcada pela votação no Parlamento Europeu que, por apenas um voto, não travou o polémico regulamento que permite etiquetar produtos saharauis como marroquinos, contrariando decisões da justiça europeia.

Os socialistas espanhóis foram decisivos para aprovar um regulamento celebrado pelo ministro Luis Planas, mas criticado por organizações agrícolas. À frente desse voto favorável aos interesses de Rabat esteve o ex-ministro Juan Fernando López Aguilar, já célebre pela frase com que resumiu a sua posição em 2023: “É preciso relacionarmo-nos com Marrocos com respeito mútuo; engolindo sapos, se necessário.”

Na próxima semana, Madrid acolhe a Reunião de Alto Nível entre Marrocos e Espanha.


Pergunta – Por apenas um voto o Parlamento Europeu não rejeitou o regulamento do novo etiquetado dos produtos provenientes do Sahara Ocidental negociado pela Comissão com Marrocos. Esperava um resultado assim?

Resposta – Ficámos a um só voto de derrubar esta parte do acordo, que é o etiquetado. Um ponto que toca o cerne da jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE, o de que Marrocos e o Sahara Ocidental são dois territórios distintos e separados. A partir da votação de 26 de novembro abre-se uma dinâmica mais favorável para travar o acordo sem necessidade de voltar aos tribunais. Tecnicamente perdemos por pouco, mas politicamente ganhámos: houve uma maioria ampla e transversal que quebra a lógica tradicional do apoio com que conta o povo do Sahara Ocidental — antes, sobretudo a esquerda, os verdes e parte dos socialistas. Agora o impulso veio do próprio PPE, apoiado também por parte da extrema-direita e por setores dos Social-Democratas (S&D). À partida, tinha tudo para passar, já que os grandes grupos PPE e S&D o haviam apoiado.


P. – Houve pressões de Rabat, como no escândalo “MoroccoGate”?

R.- A sombra do Morocogate estará sempre presente no Parlamento Europeu e em todas as instituições europeias, e não apenas na Europa, mas em todas as partes do mundo. Mas em novembro de 2018, quando o acordo anterior foi submetido à Comissão da Agricultura, foi aplaudido e apoiado por uma maioria absoluta desta comissão e, em janeiro de 2019, foi aprovado por uma maioria de 444 votos. Agora, a balança mudou completamente. Na mesma Comissão da Agricultura, em 20 de novembro, todos os membros rejeitaram por unanimidade a rotulagem e a Comissão não encontrou nenhum argumento para convencer os parlamentares. Em 26 de novembro, 359 votos foram a favor, o que representa a maioria. Agora, a balança pende a nosso favor. Isto reflete uma dinâmica positiva ascendente, resultado de uma tomada de consciência por parte de grande parte dos eurodeputados sobre o perigo de continuar neste limbo jurídico. Também interpretamos isto como um aumento da compreensão em relação à  argumentação da parte saharaui, dos juízes e, posteriormente, da legalidade internacional.


«As pressões políticas são exercidas a partir das capitais e têm influenciado diretamente o voto...»


As pressões políticas são exercidas a partir das capitais e influenciaram diretamente a votação. De Paris sobre o grupo LFI, mas a prova mais clara disso é que o PSOE rompeu com a disciplina de voto, porque o S&D tinha ordenado a todos os seus deputados que votassem a favor, enquanto o Partido Socialista Espanhol foi quase o único partido deste grupo político que rompeu com a disciplina. Como o irão explicar aos seus colegas europeus da mesma formação, não sei!


P.- Na sexta-feira, o ministro da Agricultura espanhol, Luis Planas, reconheceu: «Fico contente por esta objeção apresentada por uma parte do Parlamento Europeu não ter sido aprovada, porque não corresponde à realidade; foi uma campanha política»...

R – Creio que não há nada a comemorar. Comemorar que se tenha votado contra o bom senso e a opinião do grupo político e da maioria da Câmara reflete um certo grau de obsessão que vai além de uma posição sensata. Nem os eurodeputados com quem nos reunimos, nem nós próprios compreendemos o motivo desta insistência do PSOE em abdicar do que deveria ser a sua política nacional para Marrocos, cedendo permanentemente à sua chantagem no quadro europeu, que é um contexto totalmente diferente.


P – Os agricultores espanhóis também não entendem. Porque razão o Governo apoia um regulamento contra os interesses dos seus próprios produtores?

R – Essa resposta deve ser dada pelo ministro e pelos deputados que votaram contra. O novo acordo com Marrocos é uma violação flagrante, tanto no procedimento como no fundo. Os eurodeputados estão a tornar-se aliados objetivos do povo saharaui nesta batalha, mas também os agricultores e os sindicatos agrícolas em Espanha e em França, principalmente. E se realmente os agricultores espanhóis e europeus tinham muitos problemas e sofriam para poder comercializar os seus produtos no mercado europeu por incapacidade de competir com os produtos marroquinos, que têm um custo de produção menor e são comercializados sem pagar quaisquer tarifas e taxas, com o novo acordo, este problema vai quadruplicar devido à promessa da Comissão Europeia de fazer investimentos maciços no Sahara Ocidental em termos de água, irrigação e energia.

Isso daria realmente a Marrocos a possibilidade de ampliar os campos de cultivo desses produtos nas zonas ocupadas do Sahara Ocidental. E se o volume de exportação já era elevado, agora multiplica-se realmente por 10 ou por 20, o que complica muito mais as coisas. A questão aqui é como é possível que uma formação política coloque os interesses de terceiros, neste caso Marrocos, acima dos seus próprios agricultores e dos seus próprios cidadãos.


«Se o volume de exportação de Marrocos já era elevado, agora multiplica-se por 10 ou por 20, o que complica muito mais as coisas...»


P.- Acha que o efeito deste novo acordo poderá ser uma avalanche de produtos marroquinos falsificados...

R.- A longo prazo, sim. Porque se a Comissão Europeia se comprometer a ajudar Marrocos a desenvolver o sistema de água, irrigação e energia, Rabat, que enfrentava dificuldades para desenvolver a agricultura nessas zonas com escassez de água, teria mais possibilidades de produzir mais e, consequentemente, exportar mais para o mercado comunitário. A concorrência entre os agricultores europeus e marroquinos passa simplesmente de desleal a impossível.


P.- Há esperança de que o regulamento de rotulagem possa ser revogado pelo próprio Parlamento Europeu? Haverá mais votações?

R.- Esperamos que este acordo possa ser revogado sem que os juízes tenham de se pronunciar novamente. Agora inicia-se outro processo no Parlamento Europeu e na sua comissão de Comércio Internacional para solicitar um parecer consultivo ao Tribunal de Justiça da União Europeia sobre se este acordo, na sua nova forma, respeita ou não as sentenças de 4 de outubro de 2024. Estamos perante uma violação clara e flagrante das sentenças do TJUE. A outra oportunidade é quando chegarmos à segunda fase deste processo, porque agora foi assinado como aplicação provisória, mas o Parlamento tem de o ratificar. Será outra oportunidade para o derrubar. Depende do calendário, mas, a priori, a votação tem de ocorrer durante os primeiros três meses do próximo ano.


P. – O Frente Polisario vai recorrer o acordo?

R.- Independentemente do resultado no Parlamento Europeu, a Polisario apresentará um novo recurso contra este acordo em dezembro perante o Tribunal Geral da UE, que é a primeira instância. Vamos recorrer da assinatura do acordo na sua forma de aplicação provisória. E quando o acordo for concluído, mediante a ratificação e o voto dos Estados e o voto dos parlamentares, recorreremos do novo acordo na sua forma final concluída. De acordo com os procedimentos do tribunal, se o novo acordo formalmente concluído e ratificado pelo Parlamento for recorrido, o primeiro recurso caduca e o tribunal examinará apenas o novo, que se baseia no acordo final concluído.


«Ninguém consegue realmente compreender como é possível negociar um acordo de tal magnitude, de tal dimensão, com todas as implicações que tem, tanto políticas, diplomáticas, económicas e legais, em apenas cinco dias.»


P.- Com base na experiência anterior, o resultado dessas ações judiciais poderia ser uma nova anulação?

R.- Claramente. Primeiro, o acordo, independentemente de ter sido violado na forma ao negociar com Marrocos durante alguns meses sem qualquer autorização formal por parte do Conselho, a Comissão obteve a aprovação para iniciar as negociações com Marrocos a 10 de setembro e confirmou o acordo a 15 de setembro. Ninguém consegue realmente entender como é possível negociar um acordo de tal magnitude, de tal dimensão, com todas as implicações que tem, tanto políticas, diplomáticas, económicas e legais, em apenas cinco dias. Especialmente quando sabemos que o acordo anterior demorou quase nove meses a ser concluído. Isto confirma a suspeita de que a Comissão tem vindo a negociar com Marrocos, desde alguns meses antes de outubro de 2024, nas costas dos países membros. E depois, quando quiseram obter as autorizações para a assinatura do acordo, escolheram a via expressa, que é a votação por escrito dos países membros, sem qualquer possibilidade de abrir o debate sobre o acordo. Também é questionável a aplicação provisória, que exclui o Parlamento de ter qualquer palavra sobre uma negociação às costas do povo do Sahara Ocidental, que é o titular do direito à autodeterminação e que tem de dar o seu consentimento.

A Comissão baseou-se na janela excepcionalmente aberta pelo Tribunal de Justiça, que é o consentimento implícito. Para entender que houve tal consentimento, o tribunal blindou a noção de benefício ou criação de direitos com uma série de condições (concreto, substancial, verificável e proporcional à exploração dos recursos naturais). O que foi feito, em vez de interpretar esta janela no contexto da jurisprudência do tribunal, foi que as duas partes se apressaram a fazer uma interpretação abusiva que, em vez de adaptar a realidade que rodeia o acordo ao direito, optaram por adaptar o direito à realidade da ocupação. Assim, violaram o espírito da decisão do Tribunal. Violaram-no porque o Tribunal afirma que qualquer acordo assinado com Marrocos e que envolva os recursos naturais do Sahara Ocidental não pode criar qualquer obrigação para o povo do Sahara Ocidental, sendo este uma terceira parte no acordo. Se a comissão adotar a denominação administrativa que Marrocos utiliza para se referir às duas zonas ocupadas do Sahara Ocidental — «El Aaiún-Sakia El Hamra» ou «Dajla-Ued Eddahab» —, estará a adotar exatamente o léxico administrativo da ocupação marroquina.


«O que a Comissão Europeia faz é precisamente adotar o léxico administrativo da ocupação marroquina.»


Isto reflete realmente um certo reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental e viola o que foi decidido pelo Tribunal quando solicitou que os produtos ostentassem a etiqueta do Sahara Ocidental como país de origem com o código internacional reconhecido para este território, que é EH. Desde o início, cria-se uma obrigação para o povo saharaui, e o acordo cairá talvez sem necessidade de argumentar a questão dos direitos – benefícios.


P.- O novo acordo comercial negociado em segredo pela CE inclui investimentos em projetos de infraestrutura no território ocupado e um aumento da ajuda humanitária da UE aos campos de refugiados saharauis...

R. – Se entrarmos nos detalhes desses benefícios, a verdade é que o acordo beneficia apenas o país ocupante e não o povo do Sahara Ocidental. A Comissão compromete-se a fazer investimentos nos setores de dessalinização da água, irrigação e energia, entre outros. Mas estes são investimentos que ajudam Marrocos a consolidar a sua ocupação económica do território e em nenhum momento criam direitos ou benefícios concretos, substanciais, verificáveis e proporcionais para o povo do Sahara Ocidental na parte ocupada do território. O Tribunal faz uma distinção clara entre o que é o povo, titular do direito à autodeterminação, e a população que reside hoje no território do Sahara Ocidental, composta na sua maioria por colonos marroquinos. E quando tentam beneficiar a parte do povo do Sahara Ocidental refugiada, a Comissão diz que se compromete a intensificar a ajuda humanitária ao povo do Sahara Ocidental. Mas a ajuda humanitária é caridade. Não se pode fazer caridade a uma pessoa com os seus próprios bens, com os seus próprios meios, com as suas próprias propriedades. A UE contribui há muitos anos para o esforço internacional de ajuda humanitária, mas isso não tem nada a ver com o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia.


P. – A Comissão tem luz verde para negociar um novo acordo de pesca com Marrocos. O que fará a Frente Polisario?

R. – O acordo de pesca seria ainda mais flagrante do que o acordo comercial, porque o Tribunal de Justiça o anulou com efeito imediato. Em segundo lugar, no que diz respeito ao acordo de pesca, a exploração é feita diretamente pela União Europeia. É um acordo que beneficia Marrocos ao consolidar a sua ocupação económica do território, mas ainda mais perigoso é consolidar a sua política de colonização demográfica do território. Porque o acordo de pesca está dividido em três partes, a primeira das quais é o apoio setorial, que representa mais ou menos um terço do volume deste acordo, para apoiar os assentamentos das pequenas aldeias de pescadores marroquinos que estão instaladas na costa saharaui, de norte a sul. E isso realmente apoia o que é a colonização demográfica do território no Sahara Ocidental. Nós também vamos recorrer. Não creio que a Comissão tenha a possibilidade de avançar para uma aplicação provisória, porque o acordo foi anulado sem qualquer possibilidade de prorrogação de um ano em vigor, como foi feito com o acordo comercial. Tem necessariamente de passar pelo Parlamento Europeu.

Oubbi Buchraya

Não somos contra os interesses dos pescadores, sobretudo espanhóis. Estamos dispostos a oferecer e a contribuir para que os pescadores europeus continuem a pescar no Sahara Ocidental, mas em conformidade com o acórdão do Tribunal de Justiça da UE. E se a Comissão quiser sentar-se com o representante legítimo do povo do Sahara Ocidental para negociar isso, estamos mais do que dispostos a fazê-lo.


P.- Durante este último ano desde a sentença, a Comissão entrou em contacto com a Polisario em algum momento?

R.- Não. Isso deve ser perguntado à Comissão, mas entendo que houve um veto por parte de Marrocos: «Se falarem com a Polisario, nós estamos fora disso».


«Estamos a trabalhar com algumas empresas para denunciar a sua atividade no Saara Ocidental.»


P.- Que medidas irá a Polisario tomar contra as empresas europeias - incluindo espanholas - que estão a investir nos territórios ocupados? O que enfrentam as empresas europeias que estão neste momento a pensar investir no Sahara?

R.- Para nós, as empresas de direito europeu, desde a decisão do TJUE, perderam o enquadramento jurídico para continuar a fazer negócios no Sahara Ocidental ocupado. Estamos a trabalhar com algumas empresas para denunciar a sua atividade no Sahara Ocidental e temos toda a esperança de que isso possa prosperar. O comissário dos Transportes e Turismo já afirmou, relativamente à atividade da Ryanair e ao seu voo entre Madrid e Dakhla, que o acordo de aviação entre a União Europeia e Marrocos não abrange, em caso algum, o espaço aéreo do Sahara Ocidental e que qualquer companhia que opere voos a partir de uma cidade europeia para uma cidade ocupada do Sahara Ocidental estaria a violar o direito europeu e o direito internacional. E essa é realmente a interpretação correta das decisões do TJUE. Por conseguinte, privilegiamos a comunicação política com as empresas para as convencer a retirarem-se do território. Mas se não nos quiserem ouvir ou não corrigirem a sua atitude, somos obrigados a denunciar esta situação nos diferentes países europeus. Marrocos falhou em impor o facto consumado através da ocupação militar e falhou em impor o facto consumado através da colonização demográfica.

Agora está a tentar impor o facto consumado através da ocupação económica do território e envolvendo atores estrangeiros para lhe conferir legitimidade e gerar uma certa dependência do comércio europeu. Sabemos qual é o objetivo de Marrocos e temos de o impedir. Temos os instrumentos legais suficientes para o fazer.


P.- A recente resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas encorajou Marrocos. Receia que a utilizem para justificar a exploração dos recursos naturais do Sahara?

R.- Marrocos aproveita-se de tudo, até das suas próprias ilusões, para lançar este tipo de ações. Em França, fizeram-no através da Agência Económica Oficial de Desenvolvimento, apelando às empresas francesas para que se instalassem no Sahara Ocidental e fizessem negócios. É a grande aposta de Marrocos e dos seus aliados. E certamente Marrocos utilizará esta pequena preferência incluída na última resolução do Conselho de Segurança, exatamente para elaborar o seu discurso e as suas narrativas e tentar convencer os investidores internacionais. E é aí que temos a obrigação de frustrar isso através de ações concretas.


«Estima-se que os dois acordos da União Europeia com Marrocos representem cerca de 800 milhões de euros anuais em perdas para os saharauis devido à pilhagem dos seus recursos.»


P.- Qual é o valor económico estimado da pilhagem dos recursos naturais do Sahara nos últimos anos?

R.- Estima-se que os dois acordos da União Europeia com Marrocos representem cerca de 800 milhões de euros por ano. Depois, há os investimentos diretos das empresas europeias e a pilhagem por parte de outros atores fora da União Europeia. A verdade é que Marrocos não teria conseguido sustentar a sua ocupação militar do território do Sahara Ocidental se não fosse a possibilidade de a financiar através da pilhagem dos recursos naturais deste território. São valores realmente muito elevados e nós, claro, tencionamos reclamar indemnizações à União Europeia. A Comissão está instalada nesta lógica de desafio contínuo à palavra dos juízes e aos direitos do povo do Sahara Ocidental, sem qualquer limite.

Estamos dispostos a dialogar com a Comissão, já o expressámos várias vezes. Poderíamos ter evitado todos estes litígios e este limbo jurídico se a UE tivesse tido uma atitude diferente connosco. Com a Palestina, este desgaste judicial não existe porque tanto a Comissão como o Conselho discutem sempre e abertamente com a OLP e a Autoridade Palestiniana. Não é o caso connosco. É lamentável. Lamentável e triste, sabendo que a Frente Polisario fez uma aposta estratégica, desde os anos 90, na possibilidade de recuperar os nossos direitos por via legal e pacífica, sem necessidade de recorrer à luta armada. Infelizmente, a comunidade internacional no seu conjunto e, muito especialmente, a UE desapontaram-nos. E se hoje há guerra no Sahara Ocidental, é precisamente por isso.