A contrapartida que Rabat privilegia no acordo alcançado com Bruxelas é o reconhecimento pelos 27 da sua soberania sobre um território que anexou há quase meio
século. Não é a primeira vez que a UE se mostra “vulnerável” a exigências de países terceiros por ser incapaz de lidar com as migrações, lembram especialistas.
O representante da Frente Polisário em Portugal equipara o Sara Ocidental a Timor-Leste e apela a esforços diplomáticos para a realização de um referendo de autodeterminação.
“Somos os timorenses do Magrebe”, afirma ao Expresso.
Hélder Gomes - Jornalista | EXPRESSO
Após sete anos de negociações, Marrocos e a União Europeia (UE) chegaram a acordo, em dezembro, para um pacto das migrações.
O diretor executivo da Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex), Hans Leijtens, deslocou-se a Rabat com um objetivo na agenda: reforçar o diálogo e
a cooperação com as autoridades marroquinas de gestão fronteiriça. “Marrocos destaca-se como parceiro crucial em África”, afirmou.
Mas o estatuto crescente de Marrocos como ‘guardião’ das fronteiras da UE não agrada a Rabat apenas pelas contrapartidas financeiras. Há outro preço
com forte carga simbólica: o Governo marroquino pretende que os 27 Estados-membros aceitem a sua reivindicação sobre o Sara Ocidental.
“A equação é que a UE apoie a reivindicação territorial de Marrocos e que Marrocos apoie a política de refugiados da Europa”, disse Sonja
Hegasy, vice-diretora do centro de investigação alemão Leibniz-Zentrum Moderner Orient, à Deutsche Welle.
O Sara Ocidental é uma antiga colónia espanhola anexada por Marrocos em 1975. A reivindicação marroquina sobre este território não é reconhecida
pelas Nações Unidas e a ocupação é, para todos os efeitos, ilegal à luz do direito internacional. A Frente Polisário, movimento apoiado pela Argélia, representa o povo
sarauí na sua luta de quase meio século pela autodeterminação e autonomia do Sara Ocidental, tendo proclamado a República Árabe Sarauí Democrática.
Jacob Öberg, professor de Direito da UE na Universidade da Dinamarca do Sul, diz que os 27 não deveriam ter chegado a acordo com Marrocos nestes termos, porque tal significou uma
cedência à “chantagem” de Rabat. No entanto, acrescenta ao Expresso, “a UE não está, de forma alguma, legalmente obrigada a aceitar a reivindicação” marroquina
sobre o Sara Ocidental. Nem deve fazê-lo, defende o académico.
“GOVERNOS DA UE VULNERÁVEIS, COLETIVA E INDIVIDUALMENTE, À ‘MILITARIZAÇÃO’ DAS MIGRAÇÕES”
Os números mostram, contudo, uma relação de forte dependência. Segundo comunicado recente das Forças Armadas Reais Marroquinas, cerca de 87 mil migrantes
foram detidos no ano passado, um aumento acentuado em comparação com os cerca de 56 mil detidos entre janeiro e agosto de 2022. Marrocos tem servido de zona-tampão que impede, através de medidas
repressivas, a entrada de migrantes no espaço europeu.
Referindo-se ao acordo entre Marrocos e a UE, Susi Dennison, diretora sénior do grupo de reflexão European Council on Foreign Relations (ECFR) para a transformação
e estratégia, prefere o termo weaponisation – ou seja, ‘militarização’ do assunto. “Os governos da UE continuam a ser,
coletiva e individualmente, vulneráveis à ‘militarização’ das migrações, devido à incapacidade coletiva de resistir ao enquadramento populista da migração
como ameaça e à consequente preocupação dos governos europeus em gerir o número de chegadas que, na realidade, são bastante fáceis de absorver”, diz ao Expresso.
Este modo de agir não é novo e a investigadora do ECFR dá três exemplos recentes, incluindo um que envolveu Marrocos há quase três anos. “À
medida que governos de países terceiros veem os países da UE ceder, uma e outra vez, à ameaça da weaponisation, a Europa torna-se progressivamente mais vulnerável”, sentencia Dennison.
Em 2021, a Turquia ameaçou enviar refugiados para a Europa se a UE não satisfizesse as suas exigências nas negociações sobre um pacote de apoio a refugiados
sírios, lembra. Outro exemplo foi a decisão da Bielorrússia, no mesmo ano, de encorajar migrantes do Médio Oriente a entrarem na Polónia – “e a recusa de Varsóvia em cooperar
com a Comissão Europeia na gestão do assunto”.
ESTADOS-MEMBROS ENCARARAM MIGRAÇÕES “APENAS SOB O PRISMA DOS INTERESSES NACIONAIS”
A Turquia e a Bielorrússia agiram deste modo por acreditarem que “a UE cederia à sua coerção”. “O mesmo fez Marrocos quando usou migrantes africanos
para pressionar Espanha no verão de 2021. E tinha razão: na esperança de responder às preocupações da opinião pública sobre a migração, o Governo espanhol
decidiu, em março de 2022, pôr fim à sua rejeição de longa data da reivindicação de Marrocos sobre o Sara Ocidental”, refere. Esta decisão de Madrid “enfureceu”
a Argélia, “país que poderia tornar-se um fornecedor de energia cada vez mais importante para a Europa”.
As dificuldades em chegar a acordo sobre o pacto das migrações revelam que “muitos Estados-membros não só não dispõem dos sistemas necessários
para trabalharem em conjunto no sentido de reforçar a soberania em matéria de migração como não têm a vontade coletiva de o fazer”. Mais: “Ao continuarem a encarar a questão
apenas sob o prisma dos interesses nacionais”, os 27 “têm reduzido a capacidade das instituições da UE para enfrentar os desafios nesta área”.
O ‘umbiguismo’ que vai enformando a política migratória no conjunto da UE acaba por ter consequências domésticas. França é exemplo disso,
adianta Douglas Yates, professor da American Graduate School (AGS) em Paris. “A relação do Presidente Emmanuel Macron com Marrocos tem sofrido com esta política”, avalia. Uma política
que “deve ser entendida antes como esforço para reconquistar [o partido de direita] Os Republicanos e talvez afastar os eleitores do Reagrupamento Nacional [antiga Frente Nacional, de Marine Le Pen, extrema-direita]”.
Para o docente da AGS, “os marroquinos continuam a ser uma das maiores comunidades de imigrantes a viver em França e, por boas razões, continuarão a sê-lo, apesar desta política”.
A “CHANTAGEM” DE MARROCOS E O VOLTE-FACE DE ESPANHA (E NÃO SÓ)
Omar Mih, representante da Frente Polisário em Portugal desde maio de 2022, é perentório. “Ninguém pode dar a Marrocos a legitimidade de uma soberania sobre
um território que há mais de 50 anos está inscrito na agenda das Nações Unidas como território não autónomo e a descolonizar”, diz, numa conversa com o Expresso
em Lisboa. O desejo de Marrocos de conseguir essa legitimidade através de acordos sobre a imigração é, por isso, “uma perda de tempo”, mas é o modus operandi de um país “especialista em chantagem e numa política de corrupção”.
A companhia aérea nacional Royal Air Maroc transporta imigrantes para Rabat, Casablanca e outras cidades, e depois Marrocos usa-os para chantagear, acusa Mih, que elege a transportadora
como “primeiro ator da imigração ilegal [irregular]”. “Chamamos-lhe Aero Patera”, diz, sendo que patera é, em espanhol, um barco improvisado e, neste contexto, uma alusão
às embarcações sem condições de segurança em que muitos migrantes viajam, acabando frequentemente por ser detidos ou morrer.
Em troca da cooperação fronteiriça com Marrocos, Espanha apoiou em 2022 um plano de autonomia limitada para o Sara Ocidental. Não foi o único país
a protagonizar um volteface. Dois anos antes, os Estados Unidos, ainda sob a administração de Donald Trump, já haviam reconhecido a soberania de Marrocos sobre o território como contrapartida pela
normalização das relações diplomáticas de Rabat com Israel. Os países do Golfo também apoiaram a reivindicação marroquina sobre uma região rica em fosfatos
com investimentos em infraestruturas e energia.
“Espanha tem responsabilidade histórica, jurídica, moral e política com o povo do Sara Ocidental. Para as Nações Unidas, até hoje, Espanha é
a potência administradora do território”, insiste o representante da Frente Polisário. Segundo Mih, “o que aconteceu em 2022 foi surpreendente, porque não foi uma decisão tomada
no Conselho de Ministros e não foi discutida nas Cortes [Parlamento] nem com as forças políticas”. E os espanhóis souberam que o seu país passaria a considerar “a proposta de
autonomia como a mais realista” através de uma carta publicada pelo Palácio Real de Marrocos, lamenta.
“SOMOS OS TIMORENSES DO MAGREBE”
Mih tem-se esforçado por equiparar a situação do Sara Ocidental com a de Timor-Leste. Foram ambos “invadidos por países vizinhos” – Marrocos no
primeiro caso, Indonésia no segundo – no mesmo ano. E para ambos as Nações Unidas defenderam um referendo de autodeterminação. A diferença é que a consulta popular foi
realizada na antiga colónia portuguesa, e Timor-Leste tornou-se, em 2002, o primeiro novo Estado soberano do século XXI.
“Somos os timorenses do Magrebe”, declara o representante da Polisário, para quem haverá “muito a ganhar” com um referendo no Sara Ocidental: “estabilidade
da região, travão à imigração, intercâmbios comerciais”. Desde que chegou a Lisboa, Mih tem reiterado que “Portugal pode convencer os vizinhos, pode convencer e ajudar Espanha
a fazer o que fez em Timor-Leste, ensiná-la como foi feito”. Mesmo no âmbito da UE, “Portugal pode ser um dos protagonistas” na pressão diplomática para que se realize um referendo.
Os povos do Magrebe estão “um pouco fartos” de que a UE olhe para a região e só veja Marrocos. “Há outros povos que estão a lutar para se
desenvolverem e contra o terrorismo e a imigração ilegal [irregular], e têm de ser escutados”, frisa, apelando, de caminho, a uma mudança da posição europeia para que a UE deixe
de ser “um ator dentro do problema” e passe a ser “um ator que é parte da solução para resolver o problema”.
“E, DEPOIS, O QUE PEDIRÁ MARROCOS?”
Mih deixa um alerta aos 27: “E, depois, o que pedirá Marrocos? Ceuta e Melilha? Que entreguem os refugiados políticos marroquinos? Que bombardeiem e liquidem os sarauís?
O que se seguirá? Haverá sempre migrantes. E a Europa terá de pagar todos os anos, ou talvez em ciclos mais curtos, algo importante pelos seus recursos, valores e dignidade. E continuará a chantagem,
porque quando se aceita uma vez, tem de se aceitar sempre. Hoje, o preço são os direitos dos sarauís. Amanhã será a dignidade dos europeus. E depois, quem sabe, outras coisas que agora nem
conseguimos imaginar”.
Por sua vez, Susi Dennison deixa uma nota de otimismo e manifesta um desejo. A nota de otimismo da responsável do ECFR: “Os Estados Membros fizeram progressos em matéria
de migração desde que a Rússia iniciou a sua invasão em larga escala da Ucrânia, em particular através da decisão coletiva de ativar a diretiva de proteção temporária”.
E o desejo: “Espera-se que o pacto das migrações demonstre maior sensibilização para a necessidade de refletir, a nível europeu, sobre a melhor forma
de garantir que o medo político não continue a orientar a tomada de decisões europeias em matéria de migração e, consequentemente, a limitar o poder geopolítico dos europeus
neste domínio”.