domingo, 29 de junho de 2025

Número de importadores de fosfato do Sahara Ocidental atinge mínimo histórico, revela o relatório do WSRW

O navio graneleiro Young Glory (IMO 9690133) foi observado no porto de El Aaiún, no
Sahara Ocidental ocupado, em setembro de 2024, a carregar cerca de 60 mil toneladas
de fosfato. O destino da carga foi Paradip, na Índia.


Pelo 12.º ano consecutivo, a organização Western Sahara Resource Watch (WSRW) publica o seu relatório anual detalhado sobre o comércio internacional de fosfatos provenientes do Sahara Ocidental ocupado.

Em 2024, o número de empresas envolvidas na importação de fosfato extraído do Sahara Ocidental caiu para apenas quatro — o número mais baixo registado desde o início do acompanhamento por parte da WSRW, em 2012. No ano anterior, cinco empresas haviam participado nesse comércio; em 2012, eram 15.

O relatório agora divulgado enumera todas as remessas de fosfato exportadas ilegalmente a partir do território ocupado durante o ano civil de 2024. Foram identificados 26 navios que transportaram, no total, cerca de 1,45 milhões de toneladas de rocha fosfática — uma ligeira diminuição face aos 1,6 milhões de toneladas exportadas em 2023.

A exploração do fosfato é uma das principais fontes de rendimento do governo marroquino no Sahara Ocidental, território cuja ocupação viola o direito internacional. O povo saharaui tem contestado sistematicamente este comércio, tanto em fóruns internacionais como junto das próprias empresas envolvidas.


[Descarregue o relatório completo AQUI]


Desde 2021, Marrocos tem investido fortemente nas infraestruturas do porto de El Aaiún e nas instalações de Bou Craa, preparando-se para iniciar, possivelmente já em 2025, a exportação de fosfatos em formas mais transformadas e de maior valor acrescentado.

Embora o valor exato das exportações seja difícil de calcular, o WSRW estima que o comércio de fosfato gerado em 2024 possa ter atingido os 319 milhões de dólares.

As exportações em grande escala para o México — retomadas em 2021, apesar de promessas anteriores de cessação por parte da empresa importadora — e para a Índia representam hoje cerca de 91% de todo o comércio de fosfato oriundo do Sahara Ocidental. Do total de navios registados em 2024, 23 tinham como destino esses dois países.

A Paradeep Phosphates Ltd, uma das principais compradoras indianas, está cotada na bolsa desde 2022. Na Nova Zelândia, as importações caíram para níveis historicamente baixos. No Japão, o WSRW identificou como provável compradora uma subsidiária da cotada Taiheiyo Cement Corporation, embora a empresa não tenha respondido aos pedidos de esclarecimento.

O WSRW apela às empresas ainda envolvidas neste comércio para que suspendam imediatamente todas as compras e transportes de fosfato oriundo do Sahara Ocidental, até que seja encontrada uma solução justa e duradoura para o conflito. Aos investidores, a organização pede um compromisso com os direitos humanos ou, em alternativa, a retirada dos seus investimentos.

Dakhla: Protestos exigem fim da ocupação e libertação de presos políticos saharauis

Protesto saiu à rua na cidade ocupada de Dakhla, no sul do Sahara Ocidental.


Dakhla, 29 de junho de 2025 (SPS) — A cidade ocupada de Dakhla, no sul do Sahara Ocidental, foi palco de intensas manifestações populares exigindo o fim da ocupação marroquina e a libertação imediata dos presos políticos saharauis detidos em diversas prisões do Reino de Marrocos.

As mobilizações, organizadas por militantes saharauis que se identificam como os “heróis do levantamento independentista”, reuniram dezenas de manifestantes que marcharam pelas ruas da cidade empunhando bandeiras da República Árabe Saharaui Democrática (RASD) e entoando palavras de ordem de apoio à Frente Polisario, movimento que lidera a luta pela autodeterminação do povo saharaui.

“Pátria ou martírio”, “Liberdade para os nossos prisioneiros” e “Fim à ocupação” foram algumas das palavras de ordem ouvidas nas ruas, num cenário carregado de tensão.

Os manifestantes também apelaram à comunidade internacional para que intervenha face ao agravamento das violações de direitos humanos cometidas nos territórios sob ocupação, exigindo o respeito pelas resoluções das Nações Unidas sobre o direito à autodeterminação.

A resposta das autoridades marroquinas foi imediata: as forças de segurança intervieram com uso de força para dispersar a concentração, recorrendo, segundo testemunhas, a detenções arbitrárias e violência física contra os manifestantes. A repressão gerou relatos de agressões, perseguições e intimidação, especialmente contra jovens ativistas.

Apesar da repressão, as manifestações desta sexta-feira reforçam a persistência da resistência saharaui nas zonas ocupadas e denunciam, mais uma vez, a situação dos presos civis saharauis, muitos dos quais condenados em julgamentos sem garantias de defesa, segundo várias organizações internacionais de direitos humanos.

Estudantes saharauis em Agadir (Marrocos) denunciam repressão e ataque à liberdade de expressão


Agadir, 27 de junho de 2025 — A União dos Estudantes de Saguia el-Hamra e Rio de Ouro condenou publicamente o que classificou como um ato de repressão contra estudantes saharauis na Universidade Ibn Zohr, em Agadir, após estes terem participado numa ação simbólica em homenagem à luta do povo saharaui.

Segundo comunicado divulgado pela organização, a reitoria da Faculdade de Ciências Jurídicas, Económicas e Sociais convocou vários estudantes saharauis a prestar esclarecimentos sobre a sua participação na atividade “Gdeim Izik o acampamento da Dignidade” ( protesto de grande escala realizado em outubro de 2010 no Sahara Ocidental, considerado por muitos analistas e organizações internacionais como um marco precursor da Primavera Árabe), realizada em 19 de junho. A União denuncia que as convocatórias foram acompanhadas de ameaças de sanções disciplinares, incluindo possíveis expulsões.

A associação estudantil considera esta medida uma violação grave da liberdade de expressão e da autonomia universitária, acusando a universidade de agir como “instrumento de exclusão” ao invés de um espaço de “conhecimento e abertura”.

“Estas ações fazem parte de uma política sistemática para silenciar a voz livre dos saharauis e reprimir a expressão da sua identidade nacional”, refere o comunicado.

A organização responsabiliza a direção da faculdade e a administração da universidade pelas consequências do que classifica como uma “provocação deliberada”, alertando para possíveis impactos na estabilidade académica.

A União apela ainda:

  • À comunidade académica nacional e internacional para que acompanhe e denuncie as violações dos direitos dos estudantes;

 

  • À administração universitária para que retire as convocatórias e cesse medidas arbitrárias;

 

  • E a todas as organizações estudantis e de direitos humanos para que se solidarizem com a causa saharaui.

 

“Os estudantes saharauis não estão sós. As vozes livres devem levantar-se contra todas as formas de repressão, em defesa da universidade como espaço de aprendizagem e não de submissão”, conclui o comunicado.

John Bolton: «Não vi sinais de marxismo, jihadismo ou iranianos no Sahara Ocidental



28 de junho de 2025 – O ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA e membro do Partido Republicano, John Bolton, conhecido pela sua postura firme em política externa, reafirmou o seu apoio ao direito de autodeterminação do povo saharaui e criticou duramente a atuação de Marrocos no conflito do Sahara Ocidental.

 

Em entrevista concedida ao periódico Otralectura (em Inglês), Bolton afirmou:

 

“Nunca vi sinais de marxistas, jihadistas, iranianos ou quaisquer ligações terroristas nos campos saharauís de Tindouf. Isso é propaganda marroquina. Já lá estive várias vezes — se houvesse algo suspeito, sabê-lo-íamos.”

Segundo o diplomata, Marrocos teme o resultado de um referendo livre e justo, e por isso impede a sua realização, apesar dos compromissos assumidos nas resoluções da ONU e no Plano Baker, impulsionado nos anos 90 com apoio norte-americano.

Bolton lamentou que o referendo acordado com base no recenseamento espanhol de 1975 nunca tenha sido implementado. “Não era uma operação complexa. Havia cerca de 80 mil pessoas elegíveis. Mas Marrocos recusou cooperar”, afirmou.

O antigo responsável acusa Rabat de manipular a demografia do território ao enviar cidadãos marroquinos para o Sahara Ocidental com o objetivo de influenciar o desfecho de um possível referendo, e de agir com “impunidade” no que toca à exploração de recursos naturais, como os fosfatos de Fos Bucraa, “sem legitimidade legal”.

Sobre o reconhecimento da soberania marroquina por parte de Donald Trump, Bolton foi claro:

“Foi uma troca errada nos Acordos de Abraão. Não muda nada. As resoluções da ONU continuam válidas: deve haver um referendo.”

Por fim, reconheceu que o conflito permanece pouco compreendido nos EUA:

“Alguns congressistas ainda são induzidos a acreditar que a Polisario tem ligações ao Irão, mas não há provas. A questão é simples: o povo saharaui deve poder decidir o seu próprio destino.”

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Energias renováveis no Sahara Ocidental criticadas como ferramenta de ocupação, alerta relatório saharaui



O Observatório Saharaui dos Recursos Naturais e da Proteção do Ambiente (SONREP) denunciou, num novo relatório divulgado ontem, 24 de junho, o uso estratégico de projetos de energias renováveis no Sahara Ocidental como instrumento de consolidação da ocupação marroquina e de pilhagem de recursos naturais.

Apresentado numa conferência virtual internacional que reuniu especialistas em direito, ambiente e representantes da sociedade civil global, o relatório intitulado "Sustentabilidade para quem? Energia renovável e justiça ambiental sob ocupação", acusa Marrocos de desenvolver, sem o consentimento do povo saharaui, projetos como parques eólicos, centrais solares e instalações para produção de hidrogénio verde — em clara violação do direito internacional.

Segundo o documento, estas iniciativas geram elevados lucros para o Estado marroquino, excluindo os saharauis dos benefícios económicos e agravando as alterações demográficas no território, através da priorização de colonos marroquinos nas oportunidades de emprego — em contravenção com a Quarta Convenção de Genebra.

O relatório critica ainda o envolvimento de empresas e governos estrangeiros, sobretudo europeus, que através de acordos com Rabat contribuem para a exploração ilegal dos recursos saharauis, enfraquecendo os esforços para uma solução pacífica do conflito.

A produção de hidrogénio verde, que exige grandes volumes de água, foi também apontada como ameaça à segurança hídrica e à sustentabilidade ambiental numa região com escassez crónica desse recurso.

A SONREP, no seu relatório, apela à suspensão imediata de todas as atividades energéticas no território sem o consentimento livre, prévio e informado do povo saharaui, insistindo que qualquer transição energética justa deve respeitar o direito à autodeterminação e à soberania permanente sobre os seus recursos.

A divulgação do relatório coincidiu com o relançamento formal da SONREP enquanto entidade especializada na monitorização de violações ambientais e na defesa da justiça ambiental sob ocupação.

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Presidente de Moçambique renova apoio à luta do povo saharaui

Cerimónias do 50ª aniversário da proclamação da Independência de Moçambique


Maputo (Moçambique), 25 de junho de 2025 (SPS) - O Presidente de Moçambique, Daniel Chapo, renovou o “apoio absoluto do seu país à luta do povo saharaui pela independência nacional”.

No seu discurso por ocasião das celebrações do Cinquentenário da Independência de Moçambique, o Presidente Chapo afirmou que, “tal como ontem apoiámos a luta pela liberdade e pela independência no Zimbabwe, na Namíbia e na África do Sul, hoje apoiamos também a luta do povo do Sahara Ocidental pela sua independência nacional”.

Nestas celebrações do dia da independência de Moçambique, que contam com a presença de milhares de moçambicanos e dezenas de delegações, entre presidentes, ministros e personalidades políticas de todo o mundo, a República saharaui é representada pelo Presidente da República, Brahim Ghali, que recebeu um convite pessoal do seu homólogo moçambicano para se juntar a ele nas celebrações deste importante acontecimento. 

sábado, 21 de junho de 2025

Ativistas saharauis agredidos em El Aaiún durante comemoração do 55º aniversário da Intifada de Zemla


Vários ativistas saharauis foram violentamente agredidos na passada quinta-feira, em El Aaiún, por forças de segurança marroquinas, quando participavam numa reunião evocativa do 55.º aniversário da Intifada de Zemla. A informação foi avançada na sexta-feira pela Agência de Informação Saharaui (SPS).

Segundo uma fonte saharaui ligada aos direitos humanos, citada pela agência, os participantes pretendiam homenagear o legado da histórica revolta de 17 de junho de 1970, apesar da habitual proibição imposta pelas autoridades marroquinas a concentrações pacíficas de cidadãos saharauis.

Durante o encontro, foi sublinhado que a Intifada de Zemla representa um marco fundamental na luta do povo saharaui pela autodeterminação e continua a ser símbolo da resistência à ocupação. A data mantém-se, segundo os participantes, como fonte de inspiração para a sua causa pela liberdade e independência.

A mesma fonte relatou que as forças marroquinas — tanto uniformizadas como à paisana — dispersaram a reunião com violência, tendo agredido vários participantes. Entre os feridos estão Mohamed Daddach, presidente do Comité Saharaui para o Direito à Autodeterminação, Mustapha Dah, membro da organização ISACOM (Organização Saharaui contra a Ocupação Marroquina), e Brahim Farik, ativista dos direitos humanos.

A Intifada de Zemla, ocorrida a 17 de junho de 1970 no bairro homónimo de El Aaiún, foi uma manifestação pacífica contra a ocupação colonial espanhola, exigindo os direitos legítimos do povo saharaui, nomeadamente o direito à autodeterminação, tal como reconhecido na Resolução 1514 da ONU, adotada em 1960.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Novo relatório: exportação maciça de areia do Sahara Ocidental para as Canárias

Toneladas de areias saharauis nas praias das Canárias


Cerca de um milhão de toneladas de areia foram exportadas do Sahara Ocidental ocupado para as Canárias durante os últimos cinco anos, revela um novo relatório do Western Sahara Resource Watch (WSRW - Observatório dos Recursos do Sahara Ocidental).


12 de junho de 2025 - Os turistas que visitam as praias das Ilhas Canárias continuam a desconhecer a história preocupante que está por detrás da areia com que são feitos os seus hotéis e praias.

As praias e os projectos de infraestruturas nas Ilhas Canárias, levados a cabo pelos municípios e empresas locais, contribuem para sustentar a ocupação ilegal da última colónia africana por Marrocos.

Num novo relatório publicado este mês, o Western Sahara Resource Watch (WSRW) apresenta uma visão detalhada das exportações de areia do Sahara Ocidental ocupado para os países vizinhos, sendo as Ilhas Canárias o principal destino.

Descarregue o relatório Stolen Beaches aqui.



A escala do comércio de areia do Sahara Ocidental ocupado é significativa: entre 2020 e 2024, o WSRW documentou a exportação de aproximadamente 914.000 toneladas de areia do território, transportadas a bordo de 239 remessas separadas, com a maioria destinada às Ilhas Canárias. As mais recentes praias artificiais de grande escala foram construídas entre 2016 e 2019, recebendo apenas pequenas adições de areia registadas em 2022. O resto, quase a totalidade do comércio para as Ilhas Canárias, está relacionado com o sector da construção.

Alguns carregamentos foram enviados para Cabo Verde. Este relatório documenta a forma como um edifício governamental na cidade da Praia é construído com areia proveniente do território ocupado.

O relatório é o resultado de uma extensa pesquisa nas Canárias e, em algumas ocasiões, do acompanhamento de camiões desde os portos onde a areia foi recebida até ao destino final, tanto nas Canárias como em Cabo Verde.

Em alguns casos, as empresas envolvidas no comércio receberam subsídios regionais da UE.

O povo saharaui tem manifestado constantemente a sua oposição a este comércio. O WSRW insta todas as empresas envolvidas neste comércio a cessarem imediatamente todas as compras e carregamentos de areia do Sahara Ocidental até que seja alcançada uma resolução justa para o conflito.

sábado, 14 de junho de 2025

ONU/Sahara Ocidental: a Argélia desmente as tentativas marroquinas de falsificar os factos

O representante permanente adjunto da Argélia junto das Nações Unidas,
Toufik Laïd Koudri

El Watan (12/06/202) - Se Marrocos reivindica a “soberania” sobre os territórios ocupados do Sahara Ocidental, porque é que negociou e assinou um acordo de partilha com a Mauritânia em 1975, antes da Mauritânia se ter retirado do acordo e de Marrocos ter anexado a parte restante?", pergunta Toufik Laïd Koudri, diplomata argelino.

O representante permanente adjunto da Argélia junto das Nações Unidas, Toufik Laïd Koudri, qualificou a intervenção da delegação marroquina perante o Comité especial de descolonização da ONU (C-24) sobre a questão saharaui como “uma tentativa de falsificar e reescrever a história e de impor a política do facto consumado”.

“Não me vou alongar muito sobre a intervenção da delegação marroquina, pois o seu conteúdo inspira-se essencialmente numa obra de ficção intitulada “Como tornar-se um bom colonizador em menos de cinquenta anos e, quanto ao resto, numa imaginação alimentada pela leitura de fontes que nem sequer teriam lugar na secção de palavras cruzadas”, afirmou Koudri na terça-feira, no exercício do seu direito de resposta perante a Comissão Especial sobre a Descolonização.

“A intervenção da delegação marroquina confirma, mais uma vez, o que sempre dissemos: não passa de tentativas vãs de falsificar e reescrever a história, e de uma vontade de impor a política do facto consumado através de uma diplomacia transacional”, prosseguiu.

"Sem ter de enumerar as bases jurídicas que sustentam a obrigação de resolver a questão saharaui como uma questão de descolonização, basta colocar algumas questões, nomeadamente: “Se Marrocos reivindica a ‘soberania’ sobre os territórios ocupados do Sahara Ocidental, porque é que negociou e assinou um acordo de partilha com a Mauritânia em 1975, antes que a Mauritânia se retirasse do acordo e Marrocos anexasse a parte restante?”, acrescentou. E perguntou aos participantes: "Se a presença de Marrocos no Sahara Ocidental é ‘legítima’, porque é que tenta obter um reconhecimento unilateral que é tão inútil quanto ilegal?” - questionou

O diplomata argelino concluiu sublinhando que a pretensa “Marcha Verde”, que Marrocos afirma ter permitido “recuperar” os territórios do Sahara Ocidental, é na realidade uma ‘invasão’ pura e simples, porque, afirmou, “ao longo da história, nunca houve qualquer laço de soberania entre este território e Marrocos”.

1975, Sahara Ocidental: Crónicas de um ano de brasa (1 / 3) - O primeiro de três artigos publicados no EM CAUSA


A Missão do Comité de Descolonização da ONU

(maio e junho de 1975) 


1975, Sahara Ocidental: Crónicas de um ano de brasa (1 / 3)

 


Este é o primeiro de uma série de três artigos dedicados à última colónia de África: o Sahara Ocidental. Há precisamente 50 anos, esta antiga colónia de Espanha pensou que a independência estava ao seu alcance, graças ao apoio das resoluções descolonizadoras da ONU e à indiferença da potência colonizadora. O que Luísa Teotónio Pereira nos conta são as vicissitudes deste território, ocupado por Marrocos, que continua hoje a exigir o seu direito à autodeterminação.

Em Causa - Luísa Teotónio Pereira - 9 Junho 2025

 

Quantas coisas aconteceram neste mundo em 1975!

Com impacto global, entre outras, podemos lembrar: a queda de Saigão, a derrota dos EUA e o fim da guerra do Vietname; a democratização em Portugal e na Grécia, no seguimento da queda, em 1974, dos respetivos regimes ditatoriais; a descolonização do império português em África; o fim da ditadura espanhola, a restauração da monarquia e o começo do processo de transição; o início da guerra civil no Líbano e do regime de Pol Pot no Camboja. No final do ano ocorreram as invasões e ocupações militares do Sahara Ocidental e de Timor-Leste. Tudo no quadro de uma crise sistémica agudizada pelo “choque petrolífero” de 1973 e em plena Guerra Fria.

 

É interessante tentar compreender o que se passou com o Sahara Ocidental, que é hoje a última colónia de África. O tema não é apenas histórico, é actual: continua por encontrar uma solução para o processo de descolonização que foi brutalmente interrompido há 50 anos, com consequências que mantêm o povo saharaui em sofrimento e em luta pelo seu direito à autodeterminação e independência.

 

Sahara Ocidental: a última colónia de África!

Em três artigos sucessivos, a publicar entre Junho e Novembro deste ano de 2025, vamos tentar dar a conhecer o que sucedeu, não esquecendo que, ao mesmo tempo, se vivia em Portugal o PREC e se celebravam as independências de Moçambique (25 de junho), Cabo Verde (5 de julho), S. Tomé e Príncipe (12 julho) e Angola (11 novembro). A independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente em 24 de setembro de 1973, tinha já sido reconhecida em setembro de 1974. Em Timor, longe das mentes e dos corações de uma metrópole em convulsão, geravam-se as condições para uma ocupação estrangeira que durou 24 anos.

 

Da esperança à guerra e a luta pela soberania

 

Em 1975 o Sahara Ocidental era a 53ª Província de Espanha. A Frente POLISARIO[1], movimento de libertação saharaui, tinha sido formada em maio de 1973, no seguimento de uma anterior formação praticamente aniquilada em 1970 pela repressão do regime franquista. O objetivo era a luta contra o colonialismo espanhol.

 

Tal como as colónias portuguesas e outras, o Sahara Espanhol fazia parte, desde 1963, da lista da ONU de territórios não-autónomos, pendentes de descolonização, ao abrigo do artigo 73.° da Carta das Nações Unidas e no seguimento da aprovação pela Assembleia Geral, em 14 de dezembro de 1960, da Resolução 1514 – a “Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais”.

 


Mapa da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO)

Ano após ano, sucederam-se as resoluções aprovadas pela Assembleia Geral da ONU (AGNU) sobre o direito à autodeterminação do Sahara Espanhol. Em setembro de 1973, Madrid anunciou a sua disponibilidade para realizar um referendo e iniciou o processo de recenseamento da população saharaui do território, que foi concluído no ano seguinte. Em agosto de 1974 Espanha assegurou à ONU que o referendo teria lugar no primeiro semestre de 1975. Mas esse exercício de autodeterminação nunca aconteceu e continua hoje na agenda internacional.

 

Há 50 anos, em menos de 12 meses, o povo saharaui experimentou momentos de esperança, baseada numa forte afirmação pública da sua nacionalidade durante a visita da Missão da ONU (12-19 maio) e no veredicto do Tribunal Internacional de Justiça, para logo a seguir ser confrontado com a invasão dos exércitos marroquino e mauritano, apoiados pela França (31 outubro), e com a capitulação da Espanha, ao assinar os Acordos de Madrid (14 novembro), que o sujeitou ao massacre e o compeliu ao exílio no deserto argelino, na região de Tindouf.

 

Esta é a crónica breve desse ano de brasa, que ditou a continuidade da luta anticolonial e a organização de uma ampla resistência e que levou a Frente POLISARIO a proclamar a República Árabe Saharaui Democrática (RASD), em 27 de fevereiro de 1976.

 

O objectivo da Missão do Comité de Descolonização

 

Em dezembro de 1974 a AGNU solicitou oficialmente ao Comité de Descolonização que enviasse uma missão ao território e ao Tribunal Internacional de Justiça que elaborasse um parecer sobre a questão saharaui. As respectivas conclusões foram conhecidas a 15 e 16 de outubro de 1975. A iniciativa partiu de Marrocos e da Mauritânia e a explicação encontra-se nestes dois parágrafos da resolução 3292 (XXIX) aprovada pela Assembleia Geral em 13 de dezembro de 1974:

 

Tribunal Internacional de Justica reune sobre o Sahara Ocidental 
14 de Julho 1975

– [A Assembleia Geral] “Tomando nota das declarações feitas na Quarta Comissão pelos representantes de Marrocos e da Mauritânia e em que os dois países reconheceram que ambos estavam interessados no futuro do Território”

 

– [A Assembleia Geral] Pede encarecidamente à Potência Administrante [Espanha] que adie o referendo que tinha previsto realizar no Sahara Ocidental até que a Assembleia Geral decida a política que deverá seguir para acelerar o processo de descolonização do Território em conformidade com a resolução 1514 (XV), nas melhores condições possíveis, à luz da opinião consultiva que emita o Tribunal Internacional de Justiça”.

 

Há evidências de que Marrocos estava convencido de que os argumentos que, conjuntamente com a Mauritânia, submeteria à apreciação do Tribunal Internacional de Justiça seriam validados e possibilitariam uma anexação rápida do território saharaui, invocando inclusivamente o direito à autodeterminação. No entanto, não tendo a certeza de como reagiria a Espanha, então fortemente apegada à sua 53ª Província, e sabendo da oposição dos saharauis, que desde sempre tinham combatido o colonialismo, Marrocos iniciou desde logo a preparação da sua ação militar.

 

Na verdade, esta opção destinou-se a adiar a concretização do referendo e a ganhar tempo para uma outra manobra de maior alcance – que surtiria efeito.

 

Organização da visita

 

A Missão do que ficaria conhecido como “Comité dos 24” foi pedida pela Assembleia Geral com o objetivo de “manter a situação no Território sob observação” (13 dezembro 1974, Resolução 3292 (XXIX), §5). Três dias depois, a mesma Assembleia solicitou ao Comité que continuasse “a procurar os meios adequados para a aplicação imediata e integral das Resoluções 1514 (XV) e 2621 (XXV) em todos os territórios que ainda não tenham alcançado a independência e, em particular, a formular propostas específicas para a eliminação das manifestações remanescentes do colonialismo” (Resolução 3328 (XXIX), §11).

 

O Comité decidiu que a Missão seria composta por representantes de Cuba (Marta Jiménez Martínez), Irão (Manouchehr Pishva) e Costa do Marfim (Simeón Ake), assumindo este último a presidência.

 

El Aaiun, caital do Sahara Ocidental- 01 de Maio 1975

Dias antes da visita da missão da ONU -Foto UN


A visita teve lugar entre 8 de maio e 14 de junho de 1975, tendo a Missão passado duas vezes por Madrid (8-12 e 20-22 de maio) e depois pelos três países vizinhos: Marrocos (22-28 de maio), Argélia (28 de maio-1 de junho) e Mauritânia (4-9 de junho). Entre as estadas na Argélia e na Mauritânia a Missão passou por Paris em trabalho e, no final, regressou a Nova Iorque via Lisboa, onde esteve dois dias – a menos de duas semanas da proclamação da independência de Moçambique (25 de junho).

 

Nos oito dias em que esteve no território saharaui (12-19 maio) visitou todas as cidades e povoações principais: El Aiún (capital), Daora, Bu Craa (minas de fosfatos), Tifariti, Guelta Zemur, Mahbes, Smara, Villa Cisneros (hoje Dakhla), Auserd, Tichla, Argub, La Güera. Reuniu-se com as autoridades espanholas e com inúmeros grupos e comunidades locais: notáveis saharauis, delegações de movimentos políticos, estudantes, trabalhadores, mulheres.

 

A posição das partes

 

Lendo as “Observações e conclusões” elaboradas pela Missão, verifica-se que os países vizinhos do território saharaui exprimiram claramente as suas pretensões:

 

“O Governo marroquino reafirmou a sua reivindicação territorial do Sahara Ocidental e insistiu na integração do Território em Marrocos.” (ponto 14)

 

“O Governo mauritano, por seu lado, reafirmou a sua reivindicação territorial do Sahara Espanhol e insistiu na integração do território na Mauritânia.” (ponto 15)

 

13 de Maio 1975 - visita da missão da ONU ao territórios - Foto UN

“O Governo argelino declarou que não tinha qualquer reivindicação territorial sobre o Sahara Espanhol.” (ponto 16)

 

Nas mesmas “Observações e conclusões” a Missão resumiu assim o posicionamento da potência administrante: “No que diz respeito ao referendo, o Governo espanhol considerou que o povo do Sahara Espanhol tinha manifestado inequivocamente à Missão o seu desejo de independência. (…) No entanto, tendo em conta a situação existente no Território e na região, o Governo espanhol manifestou a sua vontade de se retirar do Território o mais rapidamente possível, sem deixar um vazio.” (ponto 12).

 

No Relatório da Missão, esta reconhece que “a posição do Governo espanhol relativamente ao momento da sua retirada mudou entre a primeira e a segunda visita da Missão a Madrid.” (§267)

 

A afirmação da nação saharaui

 

O que aconteceu durante a visita da ONU ao território que tenha justificado a alteração das percepções de Madrid?

 

Novamente, dois parágrafos das “Observações e conclusões” da Missão dão-nos uma chave para a compreensão do que se passou:

 

“No interior do território, a Missão constatou que a população, ou pelo menos a quase totalidade das pessoas com as quais a Missão se encontrou, era categoricamente a favor da independência e contra as reivindicações territoriais de Marrocos e da Mauritânia.” (ponto 18)

 

18 de Maio 1975 - visita da missão da ONU - Foto UN

“A Frente POLISARIO, embora considerada um movimento clandestino até à chegada da Missão, parecia ser a força política dominante no Território. A Missão assistiu a manifestações maciças de apoio ao movimento em todo o Território.” (ponto 21)

 

Esta explosão visível de apoio à independência e à Frente POLISARIO foi uma verdadeira surpresa para todos os atores envolvidos, com exceção dos próprios saharauis, que a tinham cuidadosamente preparado.

 

Em agosto de 1974, meses antes de se sonhar com a realização da visita das Nações Unidas, o II Congresso da Frente POLISARIO, que decorreu sob o significativo lema “A luta de libertação, quem a garante são as massas”, adotou um programa de ação nacional, convocando toda a nação a unir-se ao movimento e aprovou o hino e a bandeira nacionais. Nos meses seguintes, a sensibilização, educação política, angariação de fundos, trabalho de propaganda e militância transformaram-se em capacidade de organização clandestina, baseada em células compartimentadas e autónomas. A rádio da Frente POLISARIO, que começou a emitir a partir da Líbia e depois da Argélia, assim como a poesia, veículo de comunicação das aspirações populares, facilitaram a adesão de jovens, mulheres, trabalhadores e até militares saharauis que faziam parte do exército espanhol. Desencadearam-se greves, protestos e ações coletivas que acabaram por confluir na receção à Missão da ONU.

 

Isaías Barreñada e Mohamed Salem Abdi Mohamed, numa publicação de 2022 intitulada “Y las banderas tomaron las calles. Las manifestaciones independentistas de mayo de 1975 en las ciudades del Sahara Occidental español”, explicam como nessa altura “A bandeira da POLISARIO (…), se tornou um protagonista simbólico das manifestações independentistas. Dezenas ou centenas de bandeiras eram brandidas em cada ação. Segundo os testemunhos, as bandeiras eram essencialmente feitas à mão pelas células clandestinas e distribuídas entre os participantes, que as levavam debaixo da roupa, até que recebiam instruções para as mostrar.”

 

As manifestações e outras ações, como as pichagens que apareceram em vários locais, em particular na capital, El Aiun, exigindo a independência, recusando a integração em qualquer dos países vizinhos, e opondo-se à continuação da administração espanhola, tiveram um enorme impacto em Espanha. A surpresa foi praticamente total, a população saharaui era considerada inferior, sem educação e sem vontade própria e não se fazia ideia da organização que se tinha desenvolvido sob o regime vigilante e repressivo que imperava.

 

Consequências da Missão

 

Três factores relacionados com a visita da Missão da ONU parecem ter sido decisivos para a ideia expressa por Madrid de apressar a transferência de poder: a magnitude da exibição da vontade saharaui de independência; o ruir da estratégia de criação de um movimento alternativo à Frente POLISARIO, o PUNS (Partido da União Nacional Saharaui), que quase não se mostrou e cujo secretário-geral, Khalihenna Ould Errachid, fugiu para Marrocos ainda antes do termo da visita; e um sentimento de ingratidão pelo facto de os saharauis não reconhecerem tudo quanto o poder na metrópole tinha feito por eles.

 

Na altura, no entanto, os dados pareciam não estar todos lançados. A 23 de maio o governo espanhol escreveu ao secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, reafirmando a sua vontade de acelerar a saída do Sahara, transferindo “a soberania do território da forma que melhor convenha aos seus habitantes” (sabendo que estes eram claramente favoráveis à independência), mas ao mesmo tempo satisfazendo “qualquer legítima aspiração de países interessados naquela zona”. Segundo os autores acima citados, haveria opiniões diferentes em Madrid e alguma indecisão. No fim do ano letivo, em junho, as famílias espanholas abandonaram o território. Ficaram os militares.

 

Os últimos parágrafos das “Observações e conclusões” da Missão apontam para o futuro, que transparece como urgente:

 

“Os membros da Missão, (…) consideram que a Assembleia Geral deve tomar medidas para permitir que esses grupos populacionais decidam o seu próprio futuro em total liberdade e numa atmosfera de paz e segurança, em conformidade com as disposições da Resolução 1514 (XV) e das resoluções pertinentes da Assembleia Geral sobre a questão.” (ponto 43)

 

“Os procedimentos para uma consulta deste tipo, que deverá realizar-se sob os auspícios das Nações Unidas e nas condições acima indicadas, poderão ser definidos por uma nova missão de visita designada pelo secretário-geral das Nações Unidas, em estreita colaboração com a Potência administrante e as outras partes envolvidas e interessadas.” (ponto 44).

 

Esta segunda Missão nunca se realizou – os acontecimentos precipitaram-se nos meses seguintes, conforme veremos nas próximas crónicas. Em 10 anos (entre 2014 e 2024) foram sumariamente expulsas do Sahara Ocidental pelas autoridades marroquinas, sem explicação, 300 pessoas, provenientes de 21 países de quatro continentes. Entre janeiro e meados de março de 2025, contabilizam-se já 21 recusas de entrada ou deportações, incluindo três parlamentares europeus. Sete organizações não-governamentais internacionais de seis países diferentes estão impedidas de pisar o solo saharaui. O Conselho de Direitos Humanos da ONU tem visto o seu pedido insistente de visita ao território consecutivamente recusado nos últimos nove anos. Em circunstâncias semelhantes se encontra a Cruz Vermelha Internacional.

 

Por isso é agora que uma nova missão é necessária. Quando o regime de ocupação continua a impedir o acesso livre ao território não-autónomo do Sahara Ocidental e, simultaneamente, promove os negócios e o turismo nesse mesmo território, como forma de normalizar uma anexação que deseja definitiva.

 

[1] POLISARIO não é um nome, mas um acrónimo de Frente Popular para a Libertação de Saguia el-Hamra e Río de Oro, as duas regiões que formam o Sahara Ocidental.

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Luísa Teotónio Pereira

Co-fundadora e membro da Direção do CIDAC – Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (1974-2017). Coordenadora da Comissão para os Direitos do Povo Maubere (1983-2002). Membro da Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (desde 2012).

Sara Ocidental: movimento pela autodeterminação enfrenta “pressão”, mas mudanças de postura “não alteram em nada” o estatuto do território





Antiga colónia espanhola defende o direito à autodeterminação, cujo referendo tarda em chegar. Com a passagem do tempo, há países a mudarem a sua posição de política externa e a optarem por apoiar um plano sugerido por Marrocos.

 

Salomé Fernandes - Expresso 12-06-2025

 

Depois de Donald Trump ter expressado no seu primeiro mandato na Casa Branca apoio ao plano de Marrocos sobre o destino do Sara Ocidental, e de Espanha ter seguido o mesmo caminho em 2022 e França em 2024, em menos de duas semanas surgiram relatos de que o plano submetido por Rabat às Nações Unidas há quase duas décadas reuniu o apoio de três novos países: Reino Unido, Gana e Quénia.

O Sara Ocidental é uma antiga colónia espanhola anexada por Marrocos em 1975, uma ocupação ilegal à luz do direito internacional. A reivindicação da soberania marroquina sobre este território não é reconhecida pelas Nações Unidas, que considera o Sara Ocidental um “território não autónomo”. É disputado por Marrocos e a Frente Polisário, movimento apoiado pela Argélia, que representa o povo sarauí na sua luta de quase meio século pela autodeterminação e autonomia territorial. Há décadas que a promessa das Nações Unidas de patrocinar um referendo de autodeterminação do território está por concretizar, apesar de ter constituído uma missão (a MINURSO) com esse objetivo em 1991.

Marrocos propõe um plano de autonomia para o Sara Ocidental em que o território ficaria sob a sua soberania, sujeito a partilhar o lucro da exploração dos seus recursos naturais e atribuindo a Rabat a jurisdição exclusiva de questões de segurança nacional, integridade territorial, relações externas, bem como prerrogativas constitucionais e religiosas do rei.

Riccardo Fabiani, diretor interino do Programa sobre o Médio Oriente e Norte de África do International Crisis Group, considera que a simultaneidade dos anúncios “é casual”, mas demonstrativa do lóbi exercido por Rabat. “Marrocos continua a operar incansavelmente nos bastidores para pressionar os seus parceiros a mudar a linguagem sobre o plano de autonomia para o Sara Ocidental”, escreveu em resposta ao Expresso, acrescentando que “há um aumento do número de países na Europa e em África que considera a sua relação com Marrocos demasiado importante para a pôr em risco, por não alterarem a sua linguagem sobre o Sara Ocidental, e que Marrocos está a capitalizar esta situação o mais que pode”.

No início do mês, o Reino Unido deixou por escrito que considera a proposta de autonomia de Marrocos “como a base mais credível, viável e pragmática para uma resolução duradoura da disputa”. Numa declaração conjunta com Marrocos, descreve que o momento para uma resolução “tarda demasiado” e que “se houver boa vontade de todos os lados, pode encontrar-se uma solução muito em breve”. No entanto, destacou o “papel central do processo liderado pela ONU” na procura de uma “solução política mutuamente aceitável”.

Esta mudança de postura já foi referida em debates políticos. A questão do Sara Ocidental esteve no centro de uma discussão do Comité de Descolonizaçãodas Nações Unidas, na qual Antigua e Barbuda defenderam que o apoio ao plano de um outro membro do Conselho de Segurança da ONU reforçava a legitimidade da proposta. Segundo a ONU, a representante de Marrocos alegou na reunião que o plano proposto reúne o apoio de 118 países e que o enquadramento do tema em termos de descolonização não reflete a realidade histórica ou evolução da questão. No entanto, também houve países, como o Zimbabwe ou a Namíbia, a expressarem solidariedade com a população do Sara Ocidental. Do lado da Frente Polisário, o representante Sidi Mohamed Omar, descreveu a proposta marroquina como “uma manobra através da qual o Estado ocupante tenta ‘legitimar’ a ocupação ilegal” daquele território.

Segundo a Reuters, o Quénia anunciou no final de maio que apoia o plano proposto por Marrocos, onde abriu uma embaixada, e o Gana adotou a mesma posição a 5 de junho. Nenhum dos dois países emitiu comunicado a partir dos seus Ministérios dos Negócios Estrangeiros a dar conta da mudança política externa, que foi antes anunciada pelo Governo marroquino. O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Marrocos destacou que o Quénia “considera o plano de autonomia como a única abordagem sustentável à resolução da questão do Sahara” e que o Gana o vê como “a única base realista e sustentável para uma solução mutuamente aceitável”.

A par deste passo diplomático foram anunciadas medidas de cooperação entre Marrocos e os dois países africanos. Com o Gana, ficou a promessa de cooperação na defesa, desenvolvimento de um acordo de isenção de vistos e cooperação ao nível da segurança alimentar. Com o Quénia, há planos para Marrocos acelerar a exportação de nutrientes para o solo e aumentar a importação de produtos quenianos - bem como para recomeçar os voos diretos entre Nairobi, Rabat e Casablanca para impulsionar o turismo.

Omar Mih, representante da Frente Polisário em Portugal, destaca que as posições recentemente assumidas pelo Reino Unido e outros governos “não alteram em nada o estatuto internacional” do Sara Ocidental, enquadrado pela ONU como uma questão de descolonização.

“Apesar do estatuto internacional muito claro do Sara Ocidental como questão de descolonização, as posições de certos governos continuam a encorajar Marrocos a manter a ocupação ilegal de partes do território sarauí e a impedir o povo sarauí de exercer o seu direito inalienável à autodeterminação e à independência. Estas posições complicam ainda mais os esforços da ONU para encontrar uma solução pacífica e justa para o conflito e podem causar mais tensões que não contribuirão de forma alguma para a paz e a estabilidade dentro e fora da nossa região”, comentou em resposta ao Expresso. Mih atribui a estes governos a responsabilidade pelo atual bloqueio do processo de paz e espera que “retifiquem a sua postura e contribuam, de forma construtiva, para a procura em curso de uma solução justa e duradoura, baseada no pleno respeito pelo direito internacional”.

O Expresso tentou entrar em contacto com os Ministérios dos Negócios Estrangeiros do Quénia, do Gana e de Marrocos, mas até à publicação deste artigo não obteve resposta.

Fabiani aponta para uma dificuldade crescente da posição diplomática e internacional da Frente Polisário. “A pressão sobre o movimento para que faça algo diferente da sua posição tradicional (o referendo pela autodeterminação) está a crescer e pode tornar-se insustentável a dada altura. A Frente Polisário terá de se adaptar a estas novas circunstâncias em algum momento, seja apresentando uma nova iniciativa diplomática, aceitando retomar as conversações com Marrocos ou intensificando o conflito com aquele país”, analisa.

 

Cinco anos marcados por tensões

Em 2020 a Frente Polisário acusou Marrocos de violar o cessar-fogo que vigorava desde 1991 e decretou o fim da trégua. Omar Mih defende que o movimento fez várias concessões e iniciativas para impulsionar o processo de paz e que o povo sarauí é, desde 1975, “vítima de contínuos atos de agressão por parte do regime marroquino”.

“Após quase três décadas de espera e paciência, foi Marrocos que violou, com total impunidade, o acordo de cessar-fogo e ocupou mais territórios sarauís a 13 de novembro de 2020, obrigando o povo sarauí a retomar a sua luta armada em legítima defesa. Isto demonstra claramente que Marrocos continua sem vontade política alguma para avançar no sentido de uma solução definitiva em conformidade com o direito internacional”, observou, acrescentando que “o que Marrocos não conseguiu alcançar pela força durante quase cinco décadas, não conseguirá através de uma declaração ou posição deste ou daquele governo, pois o Sara Ocidental e o seu povo não são ‘moeda de troca’”.

Um relatório das Nações Unidas divulgado em outubro descreve que a situação no Sara Ocidental continua a ser marcada por tensões e hostilidades de baixa intensidade entre Marrocos e a Frente Polisário. Apesar do secretário-geral reconhecer que a MINURSO não detetou sinais de escalada imediata das hostilidades, alertava para essa possibilidade tendo em conta os disparos e ataques aéreos em proximidade ao muro construído por Marrocos, a rodear parte do Sara, conhecido por ‘berm’.

Também Fabiani alerta para a ameaça de escalada e potenciais repercussões no Magrebe e Sahel. “Até ao momento, este conflito está contido e é de baixa-intensidade, mas pode não ser assim para sempre. O isolamento da Frente Polisário e a postura pró-Marrocos da administração Trump pode levar a Polisário a intensificar os ataques contra Marrocos, com o risco de que a situação se descontrole. É um risco baixo, um cisne negro, mas não pode ser subestimado”, defende.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

“Vigiaram-nos e roubaram-nos os telemóveis”: o exército da polícia marroquina que persegue os activistas pró-saharauis em solo espanhol



Francisco Carrión @fcarrionmolina - El Independiente

Era uma travessia simbólica e pacífica. Uma marcha pela liberdade que começou em Ivry-sur-Seine, nos arredores de Paris, e terminou em Algeciras, após dois meses de mobilização, workshops, cartas aos presos e reuniões com associações locais. Mas no último troço, quando Claude Mangin, mulher do preso saharaui Naama Asfari, tentou chegar a Tânger para o ver na prisão, a marcha deparou-se com um muro: a vigilância marroquina, implantada em pleno território espanhol.

“Assim que chegámos ao porto de Tarifa, a vigilância começou”, recorda um dos participantes em conversa com El Independiente. Agentes marroquinos em trajes civis fotografaram e filmaram os membros do grupo na cafetaria do porto. No momento do embarque, pelo menos quatro indivíduos filmaram os activistas, especialmente Mangin. Controlo sistemático, com gestos coordenados, numa zona sob soberania espanhola. “Diziam-nos onde podíamos estar e onde não podíamos estar”, conta outra testemunha.

“Estavam a filmar-nos um a um”, explicam. "No barco, estavam sempre a filmar-nos. Percebia-se que não eram passageiros normais. Alguns deles tinham-se sentado numa fila só para nos colocar ao alcance da câmara. Mangin recorda-se mesmo de ter visto um dos alegados passageiros a receber discretamente instruções de outro homem com um crachá ao pescoço: "Era uma operação coordenada.

 

Uma operação em águas espanholas

Ao embarcarem no ferry para Tânger, a situação agravou-se. Vários "pseudo-passageiros" continuam a filmar o grupo a partir do interior. A delegação identificou pelo menos vinte pessoas com comportamentos típicos de uma vigilância secreta. Alguns deles foram posteriormente reconhecidos como agentes marroquinos pelos polícias fardados que se encontravam no barco.

O ferry, de bandeira espanhola, tem a bordo um posto da polícia marroquina para as formalidades de imigração. Mas o que é insólito é a proliferação de polícias marroquinos à paisana, que actuaram sem se identificarem e sem qualquer tipo de controlo por parte das autoridades espanholas.

 

Claude Mangin, empunha um cartaz com a cara do seu marido, que
cumpre uma pena de prisão de 30 anos em cárceres marroquinos

Fomos encurralados, sem polícia espanhola, num barco espanhol

A bordo, a pressão transformou-se em intimidação direta. Uma ativista foi agredida enquanto filmava no ferry: um indivíduo arrancou-lhe violentamente o telemóvel, causando-lhe dores na mão. Quando tentou recuperá-lo, o homem foi agressivo. Só depois de se ter dirigido a um polícia marroquino identificado, e em troca de apagar o vídeo gravado e esvaziar o contentor de imagens, é que o telemóvel lhe foi devolvido. A pressão era tal que não havia espaço para exercer os direitos básicos. "Estávamos presos, sem polícia espanhola, num barco espanhol", lamenta a vítima.

Este não foi um incidente isolado. Mangin afirma que vários membros do grupo sofreram intimidações semelhantes. "Fomos silenciados à força. É uma forma de repressão que tem por objetivo silenciar aqueles que denunciam a ocupação do Sahara Ocidental". A ativista francêsa sublinha que o objetivo de Marrocos é semear o medo: “Se atacam os europeus com esta impunidade, imaginem como tratam os saharauis”.

 

Detenção sem motivo e regresso forçado

Mangin, que já tinha sofrido cinco expulsões anteriores de Marrocos, nem sequer foi autorizada a desembarcar. Nem os seus acompanhantes: personalidades eleitas, jornalistas e activistas de França e Espanha. Ninguém recebeu uma justificação por escrito, como exigido por lei. Os sinais telefónicos foram bloqueados durante uma parte da viagem. A delegação foi detida e reenviada para Tarifa sem qualquer explicação.

A frieza com que foi efectuado o regresso dos catorze activistas, sem qualquer notificação, levanta sérias questões jurídicas entre os que sofreram o incidente. "Como pode um Estado agir com tanta impunidade num meio de transporte sob a jurisdição de outro? A resposta parece estar nos acordos de migração entre Espanha e Marrocos, que são opacos e sem controlo parlamentar. "Na nossa reunião no Congresso dos Deputados, denunciámos a ausência da polícia espanhola. Fomos deixados à sua mercê, tanto na ida como no regresso", lamentam.

“No ferry havia uma caterva de polícias marroquinos à paisana - que no início se faziam passar por passageiros com as suas malas e tudo - que agiam como se estivessem na sua aldeia, intimidando os passageiros, inscrevendo-os um a um, mesmo em solo espanhol, na cafetaria do porto e quando subiam ao passadiço, dizendo-lhes onde podiam filmar e onde não podiam e onde podiam estar e onde não podiam estar, recebendo ordens dos seus superiores, que estavam identificados”, denunciou a ativista pró-saharaui Cristina Martinez. "E onde estava a polícia espanhola para os defender? Não estavam. Tudo isto num navio da Balearia, que no seu sítio Web tem os seus navios registados como navios espanhóis ou da UE. E em águas espanholas", acrescenta.

 

Represálias políticas e silêncio institucional

A Marcha da Liberdade tinha por objetivo sensibilizar para a situação dos presos saharauis, muitos dos quais foram condenados na sequência de confissões feitas sob tortura, como reconhece o Comité contra a Tortura da ONU. Marrocos, no entanto, tem ignorado sistematicamente estas resoluções. [Claude] Mangin, cuja última visita ao marido [Enaama Asfari, um dos presos condenado a 30 anos de prisão na sequência do acampamento da dignidade de Gdeim Izik em 2010] se seguiu a uma greve de fome em 2018, tornou-se um símbolo desta luta.

Desde 2016, Marrocos impede-a de entrar no país. Segundo a ONU, trata-se de uma retaliação pelas queixas que ela e o marido apresentaram a organismos internacionais. “As autoridades marroquinas agem como se o direito internacional não existisse para elas”, diz Mangin.

A presença de agentes marroquinos a atuar em território e meios de transporte espanhóis abre um debate incómodo sobre a soberania. Até à data, o Governo espanhol ainda não tomou uma posição. Sumar e outros partidos de esquerda pediram explicações ao Parlamento. “Onde estava a polícia espanhola?”, perguntam os activistas. “Como é possível que um grupo de europeus seja intimidado por agentes estrangeiros em solo espanhol e em águas espanholas sem que ninguém intervenha?”, perguntam.

O que começou por ser uma iniciativa isolada transformou-se numa rede de solidariedade. Durante dois meses, a Marcha percorreu onze cidades, organizou workshops, recolheu cartas dirigidas aos presos saharauis e estabeleceu alianças com associações locais. “As respostas, quando chegam, tocam o coração daqueles que escreveram essas cartas da Europa”, diz Claude. "Estabelecemos contacto com associações espanholas de amizade com o povo sarauí. Agora somos amigos. São eles que nos agradecem por termos feito esta marcha. Reactivámos uma dinâmica. Estão todos desesperados porque não avançam, porque o governo espanhol bloqueia tudo e porque, no fim de contas, são obrigados a dedicar-se à ajuda humanitária, quando sabem muito bem que a ajuda humanitária não é solução e que não vão continuar a fazê-lo durante mais 50 anos. Mas este modus vivendi também parece ser imposto pelo governo espanhol, porque acabam por dizer: damos-vos dinheiro para apoiar as cidades geminadas e não chateiem".

A rede também cresceu em solo francês, onde a proximidade de Marrocos contribuiu para silenciar a causa. Mesmo as autarquias que até agora não tinham uma posição política começaram a interessar-se pelo conflito. “Fomos bem recebidos em Bordéus, Montpellier e noutras cidades francesas, apesar das pressões da diplomacia marroquina”, diz Mangin. E acrescenta que Marrocos promove geminações com cidades francesas para reforçar a sua versão do Sahara: "Mas isso gera reacções. Muitos presidentes de câmara recusam-se a colaborar com esta estratégia".

 

As queixas estão a decorrer

A organização começou a apresentar queixas formais. Há vídeos, fotografias, testemunhos. Mangin partilhou com os deputados espanhóis um relatório que documenta as violações de direitos no barco. Está também prevista a apresentação de um relatório ao Comité contra a Tortura da ONU. "Vamos prosseguir com as queixas contra Marrocos e ao Comité contra a Tortura, bem como com as queixas às autoridades espanholas sobre o tratamento que recebemos num navio espanhol em território espanhol e as violações dos direitos humanos de que fomos vítimas. Vamos também denunciar os franco-marroquinos que nos atacaram em várias cidades de França. Não deixaremos passar nada, somos muitos e já começámos a enviar cartas de protesto e pedidos de explicação. Pedimos a toda a nossa rede e a todas as pessoas com quem nos cruzámos que fizessem o mesmo. Marrocos terá de continuar a ouvir-nos", adverte.

Uma queixa apresentada à polícia de Madrid descreve em pormenor os acontecimentos. Descreve as agressões sofridas, as fotografias tiradas aos activistas à chegada ao porto, as intimidações no interior do ferry e as irregularidades cometidas pelos agentes marroquinos. O documento inclui fotografias, nomes de testemunhas e a identificação do agressor. "Em outubro de 2020, fui assaltado no porto de Tânger Med. A polícia marroquina levou-me duas unidades externas e um computador no porto de Tânger Med, e os meus pedidos de relatório de apreensão ou de apresentação de queixa por roubo foram recusados pelas autoridades marroquinas, que procederam à minha expulsão. Desta vez, a violência foi física", explica o queixoso, que pede o anonimato.

 

O silêncio oficial e o futuro

O Governo espanhol mantém-se em silêncio. O ministro dos Negócios Estrangeiros, o socialista José Manuel Albares, não fez qualquer declaração sobre o incidente. As perguntas dos deputados de Sumar, Podemos e IU ainda não obtiveram resposta. Os meios diplomáticos remetem para os acordos bilaterais com Marrocos, que em caso algum autorizam abusos a bordo de navios com pavilhão espanhol.

A delegação planeia outras acções. "Vamos apresentar queixas às autoridades judiciais espanholas e francesas, bem como às organizações internacionais", afirma Mangin. A mensagem que será transmitida se não reagirmos é devastadora. "Teremos de saber qual a responsabilidade de Espanha em tudo isto. Por mais acordos que existam entre os dois países sobre cooperação em matéria de imigração, não há justificação para o que aconteceu. A Espanha tem de se explicar", acrescenta Martínez.

A Marcha pela Liberdade não atingiu o seu objetivo final: permitir que Claude se reunisse com o seu marido. Mas alcançou outro objetivo: quebrar o silêncio. Colocou a situação dos prisioneiros saharauis de novo na ribalta internacional e pôs em causa a impunidade de Marrocos. “A luta pelo Sahara Ocidental ainda não terminou”, adverte Claude Mangin, “cada obstáculo que nos impõem torna-se uma nova razão para continuar”.