O conflito do Sahara Ocidental entre o Reino de Marrocos e a
Frente POLISARIO, representante do povo saharaui, dura há mais de 40 anos, 16
dos quais foram de guerra ativa. No entanto, a solução para o conflito continua
difícil de alcançar, com todos os riscos que podem resultar da continuação do
conflito para a estabilidade e a segurança em toda a região do Norte de África.
Sidi M. Omar*
O atual quadro das negociações dirigidas pela ONU e a diplomacia
itinerante do enviado pessoal, Christopher Ross, não estão a dar resultados. O
cessar-fogo, que entrou em vigor em Setembro de 1991, como um primeiro passo
para a realização do referendo, tal como haviam acordado as partes, está em
grande perigo. Em suma, todo o processo político está parado, e não há perspetivas
de que vá levar a uma solução rápida e sustentável no futuro próximo.
Sessão do Tribunal Internacional de Justiça em Haia |
Contexto histórico,
jurídico e político
Há três elementos-chave que, na minha opinião, constituem um
quadro adequado para a compreensão do conflito do Sahara Ocidental nas suas
dimensões históricas, jurídicas e políticas que deve ser levado em conta ao
considerar soluções para este problema.
- A questão do Sahara Ocidental é basicamente um problema de descolonização, inscrito na agenda da ONU desde 1963, quando o território era colónia espanhola. O que isto significa é que o povo deste território não-autónomo tem um direito inalienável à autodeterminação. Por esta razão, de acordo com o princípio da inadmissibilidade da apoderação de territórios pela utilização de força (res. 2625, 1970), nem a ONU nem qualquer país do mundo reconheceram a legalidade da anexação marroquina do Sahara Ocidental.
- A origem do conflito está na invasão militar e anexação forçada por Marrocos do território do Sahara Ocidental em 1975. As causas subjacentes do conflito, no entanto, residem na ideologia expansionista do chamado "Grande Marrocos", impulsionada pelo líder do partido ultra-nacionalista Istiqlal, pouco depois de Marrocos ter obtido a sua independência em março de 1956. Esta ideologia foi usada pela monarquia marroquina como elemento central da sua política nacional e regional. No plano político, a invasão marroquina do Sahara Ocidental foi praticamente uma manobra premeditada pelo rei Hassan II com o objetivo de desviar a atenção de seu povo da crescente crise de legitimidade interna que a monarquia Alauita naquela época enfrentou. Ele procurou também construir um consenso nacional num período de instabilidade interna e neutralizar a ameaça do exército depois de duas tentativas de golpe de Estado contra o rei em julho de 1971 e agosto de 1972.
- A ocupação militar marroquina e a anexação do território obrigou o povo saharaui, sob a liderança da Frente POLISARIO, a empreender uma resistência legítima primeiro pela via armada durante 16 anos e, posteriormente, por meios pacíficos e diplomáticos para exercer o seu direito à autodeterminação e à independência. Além disso, após mais de 40 anos de luta e construção nacional, a nação saharaui já é um facto concreto e irreversível. O Estado saharaui — a RASD, proclamada a 27 de fevereiro de 1976 — foi reconhecido por mais de 80 países e é um membro e fundador da União Africana, a organização continental que reúne 54 Estados africanos, à exceção de Marrocos. A RASD exerce a sua plena soberania sobre os territórios libertados do Sahara Ocidental, onde continua a fazer grandes esforços para proporcionar as infraestruturas necessárias à população saharaui que vive nesses territórios à espera de recuperar a sua soberania sobre o conjunto do território nacional.
Os objetivos
fundamentais das duas partes em conflito
a) Marrocos
No que se refere Marrocos, o seu recurso à violência (na
forma de uma invasão militar e anexação forçada do território em 1975)
justifica-se pela necessidade de recuperar uma terra "usurpada", que
pertencia a Marrocos desde tempos imemoriais. Obviamente, as reivindicações
marroquinas sobre o Sahara Ocidental foram rotundamente refutadas pelo Tribunal
Internacional de Justiça no seu parecer consultivo de 16 de Outubro 1975, em
que afirmou que nunca tinham havido laços de soberania entre Marrocos e o Sahara
Ocidental. Em concreto, o seu principal objetivo hoje é manter a todo o custo
(e, se possível, legitimar internacionalmente) o seu controlo de facto sobre a
maior parte do Sahara Ocidental. Com o passar do tempo, o controlo efetivo do
território saharaui converteu-se num elemento essencial para a unidade nacional
e para manter a própria monarquia cuja legitimidade política e estabilidade foram
estreitamente ligadas a este problema.
Tendo em vista os recursos disponíveis no território
saharaui, um outro objectivo relacionado consiste em salvaguardar os interesses
individuais e coletivos de outros atores que têm muito em jogo no conflito. Neles
se incluem os comandantes militares de alta patente, muitos dos quais estão deslocados
no Sahara Ocidental, assim como a classe política e o setor empresarial que
fazem parte do sistema do Makhzen (ou
o poder que por trás do trono), que é uma forma típica de poder que está
presente em todos os níveis de governo em Marrocos, e cujo principal eixo é o
próprio rei. Tendo em conta as atuais realidades no terreno, a estratégia prevalecente
de Marrocos, hoje, é simplesmente a de "ganhar tempo", na esperança
de que um dia a comunidade internacional não tenha outro remédio que não seja resignar-se
ao facto consumado e acabar por aceitar e reconhecer a anexação definitiva do
Sahara Ocidental.
b) A Frente POLISARIO e o povo saharaui
Quanto ao povo saharaui, recordemos que a invasão marroquina
e anexação do Sahara Ocidental, apesar das suas razões políticas e económicas,
significou uma negação da existência de uma identidade nacional saharaui distinta
com um direito inerente à autodeterminação e independência. A prova desta
negação na arena política foi o bombardeio de civis saharauis com napalm e
fósforo branco, e a política de terra queimada levada a cabo pelas forças
marroquinas no Sahara Ocidental. Ela também se reflete nas várias formas de
violência praticada hoje contra civis nos territórios sob ocupação por
Marrocos, e a destruição deliberada do património cultural saharaui.
Foi essa tentativa de extermínio físico e cultural que levou
à resistência coletiva do povo saharaui, sob a liderança da Frente POLISARIO,
contra a agressão marroquina. Em outras palavras, a atual luta do povo saharaui
é uma luta pela sobrevivência e reconhecimento da sua existência nacional. No
entanto, seria um erro supor que o nacionalismo saharaui surgiu principalmente
em oposição à ocupação marroquina, porque ele é algo que se construiu e
consolidou em resultado de um longo e complexo processo histórico e
sócio-político. Esta é a razão que explica que a redução do conflito no Sahara
Ocidental a um simples confronto entre dois nacionalismos é uma simplificação
que deixa de fora muitos elementos-chave para a compreensão do conflito em toda
a sua complexidade. Em suma, o objetivo do povo saharaui é defender a sua
independência e a sua terra contra a invasão militar do Marrocos e libertá-la da
ocupação estrangeira como pré-requisito para que o povo possa exercer o seu direito
à autodeterminação internacionalmente reconhecido.
Iniciativas para a
resolução do conflito
Após 16 anos de guerra, em finais dos anos oitenta, a ONU e
da Organização de Unidade Africana (OUA), propuseram um Plano de Resolução para
o Sahara Ocidental que foi aceite por ambas as partes no conflito, Marrocos e a
Frente POLISARIO em 1988. Este plano baseava-se na realização de um referendo
de autodeterminação em que o povo saharaui escolheria entre a independência ou
a integração em Marrocos. Para este fim, a ONU implantou a sua missão no Sahara
Ocidental (MINURSO) para monitorar o cessar-fogo, que entrou em vigor em
Setembro de 1991, e para organizar o referendo de autodeterminação. No entanto,
a implementação deste plano enfrentou logo desde o início com a intransigência
marroquina que levou o processo a um bloqueio total. Esta situação durou sete
anos até intervir James Baker, ex-secretário de Estado norte-americano, que
conseguiu realizar uma série de conversações diretas entre as duas partes que
culminaram com a assinatura dos acordos de Houston em setembro de 1997.
Graças à intervenção de Baker, em janeiro de 2000, a MINURSO
conseguiu publicar a lista provisória de eleitores com direito a voto no
referendo, cujo universo era de 86.386 pessoas. Foi exatamente neste momento que
Marrocos decidiu romper com o Plano de Resolução ao perceber muito bem que
qualquer referendo livre e democrático, já com os eleitores definidos, levaria seguramente
à independência do Sahara Ocidental. Foi a falta de reação decisiva por parte
do Conselho de Segurança para garantir a conformidade com o plano acordado que permitiu
a Marrocos que persistisse na sua posição intransigente, o que levou o processo
a um impasse.
Em Abril de 2004, Marrocos, sob o reinado de Mohamed VI,
finalmente declarou que só apoiaria uma solução política com base numa
autonomia inegociável no âmbito da "soberania marroquina". Isto é,
uma solução que legitimasse a sua ocupação e anexação do Sahara Ocidental.
Marrocos persistiu na rejeição do Plano de Resolução da ONU e da ideia de um
referendo de autodeterminação, que incluiria a opção de independência, mas o
Conselho de Segurança não fez nada para o impedir. Com o passar do tempo, o
processo político da ONU no Sahara Ocidental chegou a um impasse que Marrocos e
os seus aliados — especialmente a França —, pretenderam superar promovendo aquilo
a que chamaram de "uma solução realista." Por outras palavras, uma
solução consensual com base, por um lado, na legalidade internacional
simbolizada pelo direito à autodeterminação e, por outro lado, na realidade
política atual imposta pelo facto consumado da ocupação marroquina e anexação
da maior parte do território saharaui.
Com base nesta lógica inspirada claramente no realismo
político, e por detrás da qual se esconde o generoso apoio recebido por Marrocos
da parte da França e, até certo ponto, dos EUA sob a administração de Bush Jr.,
o Conselho de Segurança adotou a sua resolução 1754, a 30 de abril de 2007, em
que, no parágrafo (2), exortava as partes a entabular "negociações de boa-fé
sem condições prévias com vista a alcançar uma solução política justa,
duradoura e mutuamente aceitável que conduza à autodeterminação do povo do
Sahara Ocidental ".
Embora esta resolução estabelecesse a livre determinação do
povo do Sahara Ocidental como a base e a finalidade de uma solução política
mutuamente aceitável a que deveriam chegar as duas partes, também indicava
claramente uma mudança fundamental na atitude do Conselho de Segurança sobre a
questão do Sahara Ocidental. Do apoio a uma solução baseada no referendo de
autodeterminação, que havia sido acordada por ambas as partes e aprovada pelo
próprio Conselho de Segurança, o Conselho passou simplesmente chamar uma
"solução política mutuamente aceitável" através de negociações.
No quadro da resolução 1754 e das resoluções posteriores do
Conselho de Segurança, entre Junho de 2007 e Março de 2012, quatro rondas de
negociações formais e nove rondas de negociações informais tiveram lugar entre as
duas partes, sob os auspícios da ONU. No entanto, as negociações não alcançaram
nenhum progresso substancial devido ao facto de Marrocos continuar a insistir
que a sua proposta de autonomia, apresentada em 2007 era o ponto de partida e
de chegada nas negociações. Por seu lado, a Frente POLISARIO insiste em que a
autodeterminação do povo do Sara Ocidental, em conformidade com o pedido feito
pelo Conselho de Segurança, devia ser a base e a finalidade de qualquer solução
política mutuamente aceitável a que deveriam chegar as partes.
Além disso, a Frente POLISARIO considera que a soberania
sobre o Sahara Ocidental (e a consequente determinação do estatuto final do
território) reside no povo saharaui. Sendo, portanto, ao povo saharaui quem
cabe decidir sobre este assunto num processo livre e democrático, seja através
de um referendo ou qualquer outra fórmula que seja aceitável por ele e compatível
com as normas internacionais. O que ele pretende Marrocos com a sua proposta de
autonomia é predeterminar precisamente o estatuto final do território (convertendo-o
numa região autónoma) e, portanto, exercer o direito de decidir sobre esta
questão fundamental, substituindo-se ao povo do território, o que obviamente é
inaceitável para a Frente POLISARIO.
Tanto o Conselho de Segurança com o Secretário-Geral das
Nações Unidas têm vindo repetidamente exortando as partes a ir mais além das
suas posições para procurar abordagens inovadoras que possam ajudar a avançar
em direção a "uma fase mais intensiva e substantiva das negociações" que
conduzam a uma solução mutuamente aceitável. No entanto, por muito que insistam
que não pode justificar-se a manutenção do status
quo, a ONU e a comunidade internacional continuam sem se envolver de forma
construtiva na busca de uma solução justa e sustentável para o conflito, que
muitos ainda consideram como um conflito de baixa intensidade. Esta é uma razão
pela qual apenas se fala do conflito nos media e nos meios académicos, fazendo dele
um dos conflitos mais esquecidos em África.
A situação nos acampamentos
de refugiados saharauis e nas zonas ocupadas
Nos campos de refugiados saharauis perto de Tindouf, no
extremo sudoeste da Argélia, as condições de vida estão-se tornando cada vez
mais difíceis. Há também um crescente sentimento de frustração, especialmente
entre os jovens saharauis, pela falta de progressos no sentido de um processo
de autodeterminação e pela inação pela ONU ante as transgressões de Marrocos.
Nesta situação, não é de estranhar os crescentes apelos ao retomar das armas.
Nos territórios ocupados, a população saharaui continua a
ser vítima de abusos graves e sistemáticos de direitos humanos que incluem violação
da liberdade de expressão, liberdade de associação e outros direitos políticos,
sociais e económicos fundamentais. O território está sob bloqueio militar e mediático
total e as autoridades marroquinas continuam a negar o acesso ao território aos
observadores e meios de comunicação internacionais. O território foi inundado
com milhares de colonos marroquinos, que levaram a que a população indígena se
tenha convertido numa minoria no seu próprio país, para além da política de
"marroquinização", que visa destruir e substituir a cultura e o
património cultural saharauis. Marrocos persiste em exploração e aproveitar-se de
forma ilegal dos recursos naturais do território, muitas vezes em conluio com
terceiros, inclusive instituições e países da União Europeia. Devido ao clima
de repressão, nos últimos anos tem aumentado a resistência da sociedade civil saharaui
nos territórios ocupados. Este ativismo da população, culminou com o surgimento
em 2005 de um movimento popular não-violento (a Intifada saharaui) como uma
expressão da frustração pela falta de perspetivas de realização do referendo há
tanto tempo aguardado.
A situação regional continua instável, e as consequências da
"Primavera Árabe" ainda se vivem na região. A crescente presença de
elementos extremistas, terroristas e criminosos na zona do Sahel-Sahara
(envolvidos no tráfico de drogas e de armas, do crime organizado transnacional,
sequestro e a tomada de reféns, etc.) também é um grande risco à estabilidade e
à segurança na região do Magrebe.
Conclusões
A responsabilidade compartilhada para transformar o conflito
recai claramente, mais do que em ninguém, sobre as duas partes. No entanto, o
Conselho de Segurança pode desempenhar um papel fundamental, como aconteceu nos
casos da Namíbia e Timor Leste. O grande desafio é realmente como garantir que
o Conselho de Segurança se dedique a este problema de uma forma construtiva e
positiva conducente a uma solução justa e duradoura para o conflito.
Devido ao caráter centralista (ou melhor, absolutista) do
sistema político em Marrocos, o problema do Sahara Ocidental sempre foi
monopolizado como domínio exclusivo do regime monárquico e da classe política a
ele associada. Apesar da tímida abertura registada em Marrocos nos últimos
anos, a gestão e tomada de decisões sobre todos os aspetos deste dossier está
nas mãos do rei e dos seus conselheiros. O papel do governo no poder limita-se
apenas a cumprir as instruções recebidas do palácio. Portanto, a necessidade de
envolver outros atores políticos e sociais no processo de transformação do
conflito continua a ser da maior importância.
Em conclusão, penso que uma solução pacífica, justa e
duradoura para o conflito do Sahara Ocidental implica necessariamente o
exercício pelo povo saharaui do seu direito reconhecido internacionalmente à
autodeterminação, por meio de um processo livre e democrático, em conformidade
com a lei e as práticas internacionais. O princípio da autodeterminação é a
força moral e jurídica que impulsionou a realização das aspirações nacionais de
muitos povos ao redor do mundo na sua luta pela liberdade. Nas últimas três
décadas, três Estados (Namíbia, Timor Leste e Sudão do Sul) foram admitidos na
ONU como Estados livres através de um processo de autodeterminação.
Penso também que o sucesso do processo de negociação
supervisionado pela ONU dependerá da vontade política de ambas as partes, não
só para procurar uma solução mutuamente aceitável, mas também de refletir
seriamente sobre as suas relações no contexto do pós-conflito. Este processo de
pensar cooperativa e reciprocamente é essencial para alcançar não só uma
solução em que todos saiam ganhando (solução win-win), mas também para lançar
as bases para relações, com visão de futuro e mutuamente benéficas, a longo
prazo. O que é necessário, portanto, não é apenas uma solução mutuamente
aceitável, mas também uma que aborde, em primeiro lugar, as causas profundas
que deram origem ao conflito violento a fim de criar condições para uma paz
sustentável em toda a região
Fonte: Noticias del Sahara
Fonte: Noticias del Sahara
* Diplomata e investigador do Sahara Ocidental especializado
em estudos de paz e conflitos.
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