|
Mohamed Lamin Ahmed |
As potências Ocidentais
diziam que a Frente POLISARIO era comunista… Os soviéticos, e seus «compagons
de route», taxavam-os de pró-ocidentais…
Memórias, para a
história da Luta de Libertação do povo Saharaui, aqui relatadas por Mohamed
Lamin Ahmed, dirigente histórico da Frente Polisario, e durante muito tempo
primeiro-ministro do 1.º Governo da RASD.
Tenho sempre evitado, nas últimas décadas, escrever ou
comentar eventos que possam pôr em relevo a minha própria pessoa, considerando
que, isso, poderia obscurecer o processo da valente luta que o povo saharaui continua
a travar, o único habilitado a escrever sobre os seus heróicos sacrifícios.
Mas, uma vez que qualquer regra conta com uma exceção, daí a
razão que respondo a um pedido que me foi dirigido pelo Comité Suíço de Apoio
do Povo Saharaui, de revelar algumas das minhas lembranças, sabendo - como testemunha
histórica - que este mesmo Comité foi a primeira organização humanitária a
nível europeu e mundial a solidarizar-se com o povo saharaui. Talvez isso tenha
também contribuído a fazer-me desatar um pouco a língua.
No entanto, há uma realidade incontornável que deve ser
levada em consideração. Há coisas que não podem ser publicadas no momento
presente, e se a guerra de libertação se tivesse prolongado mais, importantes
memórias poderiam ter sido enterradas com os atores que as viveram ou participaram
da sua elaboração. Ao revelá-las agora, antes do tempo, esses atores poderiam perder
sua consideração de estadistas, embora a fraqueza, seja humana.
Com efeito, se o estadista revela apenas 5% dos segredos de
Estado ou do movimento de libertação a que pertence, ele poderá sucumbir à imprudência,
ou mesmo à irresponsabilidade. Embora fosse malicioso entrar em recriminações
contra aqueles cujas posições foram louváveis numa fase difícil, e que, por
razões próprias, recuaram ou reviram as suas posições. Partindo essa postura,
sinto-me obrigado a debruçar-me apenas a eventos específicos. A memória pode,
eventualmente, trair-me, e por isso peço aos meus amigos que me perdoem. Pode
ser que num futuro de melhores tempos possa desenvolver o que eu escrevi nas
minhas lembranças pessoais, sem no entanto cair no individualismo.
A decisão de proclamação da República Saharaui nos finais do
mês de janeiro de 1976, surge no seguimento de uma reunião do Comité Executivo
da Frente POLISARIO, que mandatou o seu Secretário-Geral, o Mártir El Ouali
Mustapha Sayed, juntamente com Brahim Ghali, membro do Bureau Político, a
deslocarem-se a alguns países do Sahel e, especificamente, ao Mali, através da
rota sahariana. O comunicado que proclamava esta decisão estipulava que a Organização
seria dirigida, na ausência do seu Secretário-Geral, por Mahfoud Ali Beiba.
Um comunicado que viria, depois, a inquietar os nossos
amigos líbios que pensavam que El Ouali tinha sido vítima de uma conspiração.
El Ouali e o seu companheiro tinham chegado, entretanto, a
Bamako, durante a primeira semana de fevereiro, após as dificuldades de uma
estrada muito difícil, especialmente na temporada das chuvas. Reuniram com o
ex-presidente do Mali, Moussa Traoré, mas foram obrigados, devido à falta de
recursos financeiros, a parar o seu périplo na primeira etapa e retomar o
caminho de França para depois seguirem para Líbia. As preocupações dos amigos líbios
foram então dissipadas com a chegada de El Ouali.
Durante a mesma reunião do Comité Executivo, a ideia da constituição
de um governo no exílio e das repercussões interna e externas de tal decisão foram
discutidas. A oportunidade dessa iniciativa, que procurava preencher o vazio
jurídico que, certamente, a retirada de Espanha do Sahara Ocidental provocaria,
também foi examinada.
Esses eventos ocorrem no momento em que a guerra eclode e
prossegue nas duas frentes Norte e Sul, e quando os aviões marroquinos descarregam
os seus carregamentos mortíferos de napalm e de fósforo sobre os acampamentos de
refugiados.
Os nossos dois emissários retornam da Líbia convencidos da
ideia da proclamação da República e com os seus estatutos provisórios, enquanto
a OUA discutia, a nível do Conselho
De Ministros, o reconhecimento da Frente POLISARIO como
movimento de libertação. A questão virá a ser ultrapassada pela proclamação da
República Saharaui.
|
Declaração da indepedência da RASD, 1976 |
A RASD será proclamada pelo Secretário-Geral da Frente
Polisário e sancionada por um comunicado do Conselho Nacional provisório. A
euforia era geral entre os cidadãos e os combatentes saharauis, apesar das
atrocidades da guerra e dos bombardeamentos dos acampamentos de Um Draiga e de
Tifariti. Esta proclamação foi amplamente comentada pelos media na época. Ela
irá preencher o vazio jurídico e enterrará a questão do reconhecimento Frente POLISARIO
pela OUA como o movimento de libertação.
A constituição do
primeiro governo da RASD
Reunido a 28 de fevereiro de 1976, o Comité executivo examina
a nova situação criada pela proclamação da RASD e decide, por proposta do
Secretário-Geral da Frente Polisário, proceder à constituição do primeiro governo
Saharaui no exílio, ao qual será atribuída a missão de promover o
reconhecimento da jovem república.
A data será marcada para o dia 4 de março de 1976, a nível
nacional. O comunicado de imprensa anunciando a notícia deveria ser divulgado
simultaneamente em três capitais africanas. Conakry, já que o presidente Ahmed
Sékou Touré tinha sido o primeiro Presidente africano a receber uma delegação
da Frente POLISARIO, em novembro de 1974. Tripoli, porque o líder líbio foi o
primeiro a apoiar materialmente, moralmente e militarmente a luta do povo
saharaui. E também porque foi da Líbia que El Ouali trouxe a ideia da
proclamação da RASD. E, finalmente Argel, que tinha afirmado o seu apoio
histórico ao povo saharaui que fugia do genocídio.
Conakry iria, mais tarde, optar por não receber a nossa
delegação, enquanto a Líbia e a Argélia concordaram em transmitir o nascimento
do primeiro governo Saharaui a partir das suas respetivas capitais. Desde então,
a Guiné Conakry permanecerá, até aos nossos dias, no grupo dos adversários dos
Saharauis.
|
Da esquerda para a direita, alguns historicos dirigentes saharauis: Mahfud Ali Beiba (já falecido), Gali Mustafa, Mohamed Abdelaziz, Mohamed Lamin Ahmed e Mohamed Lamin Buhali |
Gostaria de mencionar, para a história, que Madagáscar foi o
primeiro país a reconhecer a RASD. Será seguido pelo Burundi e pela Argélia,
após o que os reconhecimentos se sucederão.
A intervenção
francesa com os aviões “Jaguars"
Ninguém poderia imaginar que uma potência mundial, membro do
Conselho de Segurança, poderia intervir contra unidades de guerrilheiros. A França
baixou-se a esse nível fazendo intervir os seus aviões "Jaguars"
contra os nossos combatentes, em outubro de 1977, na região sul do Tiris
Zemmour e no norte da Mauritânia.
Esta intervenção, que irá levar a guerra a um novo
desenvolvimento, produziu um grande número de vítimas, na sua maioria
prisioneiros de guerra mauritanos. A aviação
Utilizou bombas de fósforo e outras armas incendiárias.
Os Franceses intervieram com a desculpa de que o movimento
(Frente POLISARIO) era um prolongamento do comunismo. Para a história, afirmo a
falsidade desta argumentação e que nunca recebemos apoio do bloco de Leste e
menos ainda da URSS.
Para apoiar o que eu digo, revelo-lhes o conteúdo de um
encontro que decorreu entre o chefe da delegação saharaui e a delegação
soviética, à margem da Conferência do Povos Árabe, em Trípoli, em novembro de
1977, após a visita do falecido presidente egípcio, Anwar Sadat a El Qods
(Jerusalém).
O chefe da delegação soviética criticou os saharauis por não
terem elogiado o que era designado então de bloco socialista, e o representante
saharaui disse: "agradecemos aqueles que nos apoiam, tragam-nos o vosso apoio
e esperem os nossos elogios depois."
Neste contexto, gostaria de lembrar que, ao longo da nossa
guerra de libertação contra Marrocos, a Frente POLISARIO nunca recebeu uma
única arma, ou uma simples bala da URSS, e ainda menos dos países que se
encontravam na sua órbita. Este bloco limitava-se a apoiar a resolução aprovada
anualmente pela Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o direito do povo
saharaui à autodeterminação.
Eventos diversos
Durante uma visita oficial que efetuava ao Benin, em
setembro de 1977, o presidente do Conselho de Ministros, que se aprestava a
deixar o Benin e regressar ao Sahara Ocidental, teve que mudar o seu percurso para
uma etapa imprevista. Às onze horas da noite, o Presidente do Togo em pessoa
falava-lhe ao telefone, pedindo-lhe para passar nessa mesma noite em Lomé. Uma
receção cerimonial teve lugar no aeroporto, presidida pelo ministro togolês da
Informação e o alojamento fez-se numa belíssima villa que coroava a receção.
Muito cedo pela manhã, o protocolo comunica-nos que o President
Ayadéma nos esperava para o pequeno-almoço no Palácio presidencial.
Sem delongas, Ayadéma informa-nos que o Presidente francês,
Valéry Giscard d'Estaing, havia-lhe pedido para interceder junto da Frente
POLISARIO em relação aos seis cooperantes franceses capturados no dia 1 de maio
de 1977 em Zouerate, durante uma operação
sem precedentes que teve por alvo esta cidade mineira, nó nevrálgico da
economia da Mauritânia. Seis homens, aos quais se vieram juntar posteriormente
dois ferroviários capturados na via-férrea que liga Zouerate a Nouadhibou, na
Costa Atlântica.
Tendo colocado como condição prévia a manutenção do segredo
dos nossos contatos, e qualquer referência aos meios de comunicação, fomos
surpreendidos no avião que nos trouxe de volta no mesmo dia em Argel pela
divulgação da notícia na Radio France Internationale.
O locutor anunciava que o Presidente togolês reafirmara,
após uma entrevista com um alto dirigente saharaui, que os oito franceses estavam
nas mãos dos Saharauis e estavam muito bem.
|
Mohamed Lamin Ahmed, 1981, foto Pedro Sousa Dias |
As negociações entre a França e a Frente POLISARIO são
reatadas e conduzirão à libertação dessas oito pessoas em outubro de 1977. Em
outubro de 1980, uma delegação saharaui, liderada pelo presidente do Conselho
de Ministros, participa nas festividades que assinalam a independência da
Coreia do Norte.
Tendo transitado por Moscovo, passagem obrigatória das
companhias aéreas, a delegação foi recebida pelo comité afro-asiático de
solidariedade. À margem do encontro, a delegação saharaui solicita uma reunião
com responsáveis do Partido Comunista soviético. O qual
nos envia o seu responsável pelas relações externas.
Traçamos-lhe um quadro sombrio da situação do povo saharaui e expressamos a
nossa consternação face à posição soviética. "Afirmam-se homens de
princípios, mas na verdade vós sois gente que apenas procuram o vosso interesse.
Caso contrário, como explicar o negócio do século sobre o fosfato, que vocês
assinaram com Marrocos? E que dizer da frota de arrastões soviética que pilha a
riqueza haliêutica do Sahara Ocidental" — atacou o delegado Saharaui. Interpelado
por questões tão concretas, o responsável soviético replicou: «Vocês não são comunistas,
vocês estão mais próximos do Ocidente. Além disso, as armas que usam são de
fabricação soviética."
"Naturalmente, vocês são uma potência mundial e as
vossas armas podem ser encontradas em Marrocos. Vocês já adotaram a mesma
posição para com o nosso inimigo? E não responderam às nossas perguntas",
replicámos.
O encontro terminará sem resultados. Não ma perderei em
conjeturas a enumerar as diferentes armas capturadas ao exército marroquino, ou
a esclarecer a origem da sua fabricação, no entanto, gostaria de lembrar aqui
que 56 tanques soviéticos T55 de fabricação soviética figuravam entre as armas
pesadas destruídas pelo Exército Popular de Libertação Saharaui durante a
histórica operação militar de Lebeiratt, em 1979. Em março de 1984, uma
delegação norte-americana de 20 membros, incluindo funcionários do governo e
liderada pelo Congressistas Wolpe, deveria ter-se encontrado nos Campos de
refugiados com a Frente POLISARIO. Uma tempestade de areia, que nesse dia
fustigou Tindouf, forçou a delegação a regressar a Argel. Serão recebidos pelo Ministro
da Educação na época, que estava de passagem por Argel. A reunião entre as duas
partes, que teve lugar nas instalações da Embaixada saharaui, foi marcado pela postura
norte-americana, que afirmava que "o Rei de Marrocos é um aliado Americano,
enquanto a Frente POLISARIO faz parte do movimento comunista mundial " (lembrem
as palavras do responsável soviético citado acima).
Vejam, pois, como somos vítimas dos grandes.
Em seguida, argumentámos que "os saharauis não têm nada
contra a pessoa do rei, ou contra a monarquia em Marrocos. Erguemo-nos, sim, contra
a anexação de nosso país pela força e contra o colonialismo marroquino. Eles
não querem uma coligação com quem quer que seja, porque esse tipo de
dependência não vai na direção dos seus interesses."
"A Líbia apoia-vos. Por isso, nós não estamos ao vosso
lado", objetou então um membro da delegação dos EUA. E se esta tivesse ao
lado de Marrocos? Qual seria a posição do governo dos EUA", interrogámos.
"Impossível", disse. "Em política nada é impossível",
respondeu o ministro saharaui.
A reunião terminará com a frase de um congressista: "Os
EUA não estão contra vocês, mas defendemos os nossos interesses." Aqui,
gostaria de reconhecer que os norte-americanos, apesar da defesa dos seus
interesses, têm o mérito de compreender o seu interlocutor quando diz:
"isso não é do meu interesse."
Esta reunião, que não foi divulgado na imprensa, pode ter
ajudado a criar uma auréola de esperança para a compreensão da causa saharaui
pelos norte-americanos, principalmente a nível do Congresso. Vou parar por
aqui, esperando que no futuro, se Deus me conceder longa vida, poder iluminar todos
aqueles os que estão interessados em conhecer esta
importante etapa da história da luta do povo saharaui.
Tradução do francês: AAPSO