Mustafa Uld Abd Edayem é um
escritor e intelectual saharaui que vive nas zonas ocupadas do Sahara
Ocidental. Ex-preso político, defensor dos direitos humanos e ativista
cultural, é membro do comité executivo
da UPES (Unión de Periodistas y Escritores Saharauis). Esteve preso três anos e
foi posto em liberdade em outubro de 2011, após uma longa campanha
internacional pela sua libertação.
Poemario por un Sahara Libre: Que
nos podes dizer de ti, como escritor e ex-preso político saharaui, perseguido
pelo regime de ocupação marroquino?
Mustafa Abd Edayem: Chamo-me
Mustafa Abd Edayem, nasci em 1962. Sou licenciado em literatura, frequentei a
Facultade de Filosofia, e sou licenciado pelo Instituto Superior de
Professores, profissão que exerci um longo período antes de ser sequestrado e
encarcerado em Marrocos. Não posso definir-me como escritor, ainda que me
fascine trabalhar o texto e escrever relatos curtos. Escrevo artigos de
diferentes temáticas. Neste momento, estou a preparar um trabalho, que sairá em
breve como a minha primeira novela. Em princípio terá o título deمغارات بلاقراب
‘Madrigueras que no impresionan’. É um livro de memórias em que relato
momentos da infância, juventude e da minha experiencia nos cárceres do
ocupante. Também neste livro coloco muitas interrogações políticas e de
pensamento.
PSL: No último congresso da UPES
foste eleito como o único membro das Zonas Ocupadas.
MAE: É verdade. No último congresso
da UPES elegeram-me como membro do comité executivo de Escritores e Jornalistas
Saharauis, o único eleito dos territórios ocupados. E, por outro lado, sou
coordenador do Fórum de Iniciativas Culturais e de Informação Saharaui nas
Zonas Ocupadas; e também Secretário-Geral do Comité de Defesa dos Direitos
Humanos na região de Zaak [nota: sul de Marrocos].
PSL: Quando foste pela primeira vez
perseguido e preso pelo regime marroquino?
MAE: Fui detido e encarcerado pelo
regime marroquino a 27 de agosto de 2008, três anos depois do início da nossa
Intifada pacífica em que participei no sul de Marrocos, em Zaak, onde reside um
grande número de população saharaui ali fixada desde a época colonial
[espanhola]. Estive três anos na prisão até 27 de outubro de 2011. Aos meus
compatriotas digo sempre que o regime marroquino me destinou um turismo
carcerário. E porquê? Porque me fizeram passar pelas mais horríveis prisões
dentro de Marrocos, como as tristemente célebres prisões de Guleimim, Ein
Zegan, Eit Melul, Tiznit e a de Salé, em Rabat. Toda essa perseguição e anos de
prisão deveram-se aos meus princípios e às minhas convicções sobre a legalidade
do nosso processo de libertação nacional, tipificado pela ONU como um processo
de descolonização não resolvido.
PSL: Qual a atual situação da
resistência pacífica saharaui e a Intifada nas Zonas Ocupadas do Sahara
Ocidental?
MAE: A situação atual nas Zonas
Ocupadas do território pode-se qualificar de forma geral como uma “situação
infra-humana e insustentável”. Apesar das vozes solidárias de todo o mundo que
nos apoiam, sentimo-nos defraudados com a oposição da comunidade internacional
à criação de um mecanismo internacional que vele pelas violações dos direitos
humanos no território, e a ampliação da missão da MINURSO no território
saharaui. Essa postura incita Marrocos a cometer mais violações de direitos
humanos. Marrocos continua a matar fora da lei, desde o caso de Hamdi Lmbarki,
Abdelaziz Jaya, Lhusein Lektif, Said Dambar e Nayem Elgarhi que foram
assassinados a tiro. O regime marroquino continua a violar mulheres e homens
com métodos selvagens usando barras metálicas, garrafas de vidro; a
administração de ocupação continua a espancar e a arrastar as mulheres
saharauis, despojando-as das suas roupas, não respeitando a moral e o
património cultural das nossas mulheres na nossa sociedade. A ocupação
marroquina continua a prender, a espancar e torturar os jovens e menores idade.
Marrocos e os seus militares e polícias continuam a prender os nossos anciãos,
como é o caso de Embarek Daudi. Marrocos continua a deter e humilhar famílias
inteiras como o fazia nos anos setenta, como é o caso do ancião Embarek Daudi e
dos seus quatro filhos. Marrocos continua a reprimir com brutalidade as
manifestações pacíficas sem ter piedade dos velhos nem das crianças nem das
mulheres. E o mais perigoso de tudo isto é que Marrocos exerceu esta política
de violência ante a presença do Enviado Pessoal do SG da ONU, o Sr. Christopher
Ross, e com a presença no território do Relator dos Direitos Humanos da ONU,
Juan Méndez. E também na presença das Associações Europeias de Direitos Humanos
que visitam o território.
Com isto o regime marroquino chegou
a uma escala de violações e desafio à comunidade internacional sem precedentes.
Esta política levou a que, atualmente, nas Zonas Ocupadas do território, impere
o medo entre a população; o regime pratica com muita agressividade e
bestialidade a sua ocupação. A população vive a ocupação sob o medo e a
discricionariedade. Sofrem-no todos os cidadãos saharauis, quer aqueles que são
militantes da causa ou defensores dos direitos humanos, como pessoas que não
estão filiadas em nenhuma organização de ativismo político ou de direitos
humanos. O medo está nas ruas e nas casas das nossas cidades. Pelo simples
facto de se ser saharaui está-se exposto e essas agressões e violações
cometidos diariamente pelo regime militar que administra as três grandes
cidades Saharauis ocupadas.
O rosto destas violações está em
todas as partes, e dou um exemplo: fora do ativismo político, mesmo contra
manifestações pacíficas contra as quais o regime intervém com o seu brutal aparelho
opressor, espanca, tortura, prende impunemente e impõe julgamentos
sumaríssimos, como sucedeu no caso de Gdeim Izik . Recordo que quando estava na
prisão, padecia de várias patologias e um dia estava muito mal e pedi
medicação. Vários verdugos vendaram-me os olhos, arrastaram-me para uma parte
da prisão e disseram-me: “Abre a boca para tomar a
medicação”. Abri a boca, e senti que urinavam para dentro da minha boca. Um
deles disse: “Isto é muito bom para a diabetes”. Bateram-me até cair, e
dirigindo a outros presos disseram: “Este saharaui é dos que insultam o rei”.
Imaginam como é este regime com tal brutalidade e inumanidade… São brutos,
inumanos e têm as rédeas soltas e fazem-no a poucos quilómetros do mundo
ocidental, sem que haja denuncia, condenação ou castigo para os torturadores.
Persistem pois animados a cometer estas flagrantes violações contra a população
saharaui.
O regime tenta impor uma doutrina
de aculturação à população e dou-lhes dois exemplos, para que se entenda essa
macabra política do ocupante. Nas três cidades ocupadas do Sahara Ocidental o
regime não se preocupou em construir nem uma só universidade. E os estudantes
saharauis vêm-se obrigados a partir do território para estudar em Marrocos e
desenraizar-se da sua cultura, para irem para Agadir, Marraquexe, Rabat ou
qualquer outra cidade marroquina. O jovem saharaui vê-se confrontado com outras
dificuldades, quando por exemplo lhe exigem que apresente certidões disto e
daquilo quando esses estudantes são oriundo do Sahara Ocidental e a
administração de ocupação nunca se preocupou com o registo dos nascimentos
saharauis.
Há Intencionadamente uma política
para dificultar o registo desses estudantes nas universidades marroquinas. Isso
leva a que muitos estudantes desistam de prosseguir os seus estudos; e como um
segundo fator obstrutivo, Marrocos não tem escolaridade obrigatória e como as
crianças saharauis pela peculiaridade da sua sociedade e cultura nascem no
campo e não são registada como ocorre com os nascidos na cidade, geralmente só
conseguem ter certidão de nascimento muito mais tarde. São fatores de que o
sistema beneficia e usa-os para dificultar o acesso à educação. Estas
dificuldades integram-se na política de aculturação do povo saharaui.
PSL: Até onde conseguiu o regime
levar esta política de desfiguração da cultura e da identidade saharaui?
MAE: Estamos proibidos de fazer a
celebração ritual do batismo pelo qual escolhemos o nome do recém-nascido. O
regime proíbe- nos de escolher nomes como Mohamed Abdelaziz; Aminetu, Luali
[nota: fundador da Frente POLISARIO] ... Para já não falar do perigo que
significa utilizar nomes bem arreigados na nossa cultura, como é o caso de
Nguia ou Um Lejut. São perseguidos e proibidos nesta política de destruição dos
nossos traços de identidade e cultura que nos distinguem deles. Outro desses
exemplos, o regime tenta eliminar a jaima (tenda) saharaui, o lar tradicional
símbolo da nossa identidade cultural. Agora, é estritamente proibido a jaima no
território ocupado. As realizações das nossas celebrações de casamento estão
proibidas. Com isto quero dizer que não apenas se proíbe o direito a
manifestarmo-nos ou a empunhar bandeiras saharauis ou a gritar fora Marrocos
ocupante ou a prender e torturar defensores dos direitos humanos, mas que vão muito
mais além com a sua política de destruição de todas as características
culturais da nossa identidade nacional.
Mas face a esta brutal política de
intento de silenciar a nossa voz e diluir a nossa cultura e identidade, a nossa
população prossegue a sua luta de resistência contra esta guerra anticultural e
anti-identidade. Estamos enfrentando-a com todos os métodos e meios
necessários.
PSL: Ante este intento marroquino
de destruir a identidade saharaui, que outros aspetos da cultura e identidade
estão ameaçados?
MAE: Marrocos não só coloca na mira
da sua política de destruição a identidade saharaui e os seus aspetos
identitários, como foi mais além destruindo outros fatores externos, como é a
proibição e eliminação do legado linguístico espanhol que nos deixou a potência
colonizadora e nos diferencia de Marrocos. O ocupante está consciente da
quantidade de falantes desta língua, e que isso beneficia os saharauis. E por
isso erradicou a língua espanhola e impôs a língua francesa para apagar
qualquer traço histórico que nos vincule como ex-colónia espanhola e nos
aproxime dos hispano-falantes no mundo.
Marrocos usa vários métodos e
estratégias para levar a cabo esta política, por exemplo o uso direto do seu
aparato repressivo contra a população, que se manifesta na perseguição, no
encarceramento, a tortura, as violações, etc.
Outro método consiste na
aculturação dos saharauis, impedindo-lhes o acesso ao ensino seja secundário ou
universitário; também arremete com esta política contra a raiz cultural
saharaui, como a proibição de levantar jaimas (tendas tradicionais) ou o uso da
roupa tradicional nas instituições da administração. O regime utiliza o ensino
primário também para inculcar a sua política entre as crianças com falsos
cenários folclóricos.
PSL: Como enfrentam os saharauis
esta deriva dirigida à não identidade cultural que Marrocos exerce sobre eles?
MAE: O povo saharaui exerce, tal
como os outros povos que sofreram a ocupação e o domínio colonial, todas as
maneiras de resistência pacífica contra estas políticas. Dou um exemplo:
aproveitam os festejos das bodas e convertem-nos em eventos para defender e
propagar nas reuniões do ritual do chá e nas longas conversas sobre a ligação
aos valores da sociedade nómade que registam muitos aspetos da nossa cultura.
Tudo serve para nos manifestarmos, usar os trajes tradicionais, montar as
jaimas e exercer todos estes traços de nossa cultura, destacar a identidade
cultural e transmitir a mensagem política e cultural ao povo.
Gostaria de fazer um parêntesis e
referir-me aos acontecimentos do Acampamento da Dignidade Saharaui de Gdeim
Izik em 2010. Toda a gente fala de Gdeim Izik como um acontecimento político,
eu afirmo também que, além disso, foi a primeira vez na historia que se fez um
êxodo maciço de natureza reivindicativa. É normal que a gente fuja de um lugar
onde reina a morte, a fome, os terremotos, as inundações ou as guerras, em
busca de um lugar seguro e onde se possa viver. Os saharauis abandonaram uma
cidade, El Aaiun, onde relativamente estão criadas as condições de vida mas
preferiram abandoná-la e acampar na planície de Gdeim Izik, lugar carente das
mínimas condições de existência. Porque empreenderam uma tal gesta? Os
saharauis quiseram dizer ao ocupante e ao mundo: “esta é uma das faces da nossa
identidade, esta é a nossa cultura” e por isso esse acontecimento reveste-se
inclusive de um significado claramente ainda mais cultural que político. Com
Gdeim Izik os saharauis disseram: “rejeitamos todos os métodos do domínio
colonial que nos impõem, rejeitamos todos os tipos de marroquinização,
quaisquer que eles sejam, com que o ocupante procura nos submeter”.
PSL: Em que situação se encontram
os escritores e os jornalistas saharauis nas Zonas Ocupadas?
MAE: O escritor e o jornalista
saharaui nas zonas ocupadas, trabalha sob a rigidez do domínio de ocupação, ou
seja, a partir da marginalização e da subjugação. Todo o escritor ou jornalista
é controlado e perseguido pelas suas opiniões e escritos contra a ocupação. O
trabalho de consciencialização e sensibilização da população que levam a cabo
fazem-no a partir da clandestinidade. Nenhum jornalista pode manifestar o seu
trabalho, seja oralmente ou por escrito, porque será perseguido e encarcerado;
também o escritor não se pode manifestar porque corre o mesmo risco. Toda a
informação sobre a situação das violações de direitos humanos que comete o
regime e que estes informadores fazem chegar ao mundo exterior, fazem-no com
grande risco. Informam a partir do esconderijo de domicílios e filmam os abusos
do regime escondidos nas açoteias das casas e com meios muito escassos. Em
relação ao escritor, vocês sabem que ser escritor não é uma profissão; e é por
isso que só em nossas casas podemos escrever livremente e manifestar o nosso
pensamento, mas o perigo espreita-nos lá fora. No meu caso, para dar-vos um
exemplo real, escrevi nas prisões marroquinas nos meus anos de cativeiro, e
podem imaginar as maneiras e forma de escrever nessas duras condições. Recordo
que nesses tempos, nas prisões marroquinas, quando alguém a partir do exterior
conseguia introduzir um lápis ou uma esferográfica era acusado de meter no
presídio uma arma de fogo. O ocupante luta contra todas estas manifestações que
se fazem através da criação do escritor ou do artista em geral. E porquê?
Porque quando escreves estás dizendo ao ocupante, ao verdugo, ao político que
estás vivo e que lhe estás a impor a tua liberdade, a tua opinião e a tua
existência, não obstante o fazeres na pequena e escura cela em que te
encerraram.
PSL: O que gostarias de dizer aos escritores
e jornalistas espanhóis?
MAE: Ante o inferno que vivemos na
nossa própria terra e o desvirtuamento que querem fazer da nossa cultura e
história, eu digo a todos os intelectuais, escritores e jornalistas que venham
conhecer a nossa silenciosa e dolorosa realidade e a nossa resistência
pacífica. Venham observar in situ as injustiças diárias que sofremos e que
tenham a coragem de assistir como impunemente os militares marroquinos, os
agentes secretos e os gendarmes do regime reprimem o nosso protesto pacífico e
vejam como batem cruelmente sem piedade com as suas matracas os velhos, as
mulheres grávidas, as criança e a juventude.
Peço-lhes que não fiquem
indiferentes ao crime que, do outro lado, Marrocos comete contra a nossa
população indefesa, que exige apenas o direito de decidir o seu destino, como
contempla a carta da Organização das Nações Unidas. Que visitem os campos de
refugiados e que venham aos territórios ocupados visitar-nos e que denunciem o
que estamos sofrendo.
*Entrevista e tradução para o
espanhol: Poemario por un Sahara Libre
Cartagena, 28 de maio de 2014
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