domingo, 8 de junho de 2014

Entrevista ao intelectual e ex-preso político saharaui Mustafa Uld Abd Edayem



Mustafa Uld Abd Edayem é um escritor e intelectual saharaui que vive nas zonas ocupadas do Sahara Ocidental. Ex-preso político, defensor dos direitos humanos e ativista cultural, é  membro do comité executivo da UPES (Unión de Periodistas y Escritores Saharauis). Esteve preso três anos e foi posto em liberdade em outubro de 2011, após uma longa campanha internacional pela sua libertação.

Poemario por un Sahara Libre: Que nos podes dizer de ti, como escritor e ex-preso político saharaui, perseguido pelo regime de ocupação marroquino?

Mustafa Abd Edayem: Chamo-me Mustafa Abd Edayem, nasci em 1962. Sou licenciado em literatura, frequentei a Facultade de Filosofia, e sou licenciado pelo Instituto Superior de Professores, profissão que exerci um longo período antes de ser sequestrado e encarcerado em Marrocos. Não posso definir-me como escritor, ainda que me fascine trabalhar o texto e escrever relatos curtos. Escrevo artigos de diferentes temáticas. Neste momento, estou a preparar um trabalho, que sairá em breve como a minha primeira novela. Em princípio terá o título deمغارات بلاقراب  ‘Madrigueras que no impresionan’. É um livro de memórias em que relato momentos da infância, juventude e da minha experiencia nos cárceres do ocupante. Também neste livro coloco muitas interrogações políticas e de pensamento.

PSL: No último congresso da UPES foste eleito como o único membro das Zonas Ocupadas.

MAE: É verdade. No último congresso da UPES elegeram-me como membro do comité executivo de Escritores e Jornalistas Saharauis, o único eleito dos territórios ocupados. E, por outro lado, sou coordenador do Fórum de Iniciativas Culturais e de Informação Saharaui nas Zonas Ocupadas; e também Secretário-Geral do Comité de Defesa dos Direitos Humanos na região de Zaak [nota: sul de Marrocos].

PSL: Quando foste pela primeira vez perseguido e preso pelo regime marroquino?

MAE: Fui detido e encarcerado pelo regime marroquino a 27 de agosto de 2008, três anos depois do início da nossa Intifada pacífica em que participei no sul de Marrocos, em Zaak, onde reside um grande número de população saharaui ali fixada desde a época colonial [espanhola]. Estive três anos na prisão até 27 de outubro de 2011. Aos meus compatriotas digo sempre que o regime marroquino me destinou um turismo carcerário. E porquê? Porque me fizeram passar pelas mais horríveis prisões dentro de Marrocos, como as tristemente célebres prisões de Guleimim, Ein Zegan, Eit Melul, Tiznit e a de Salé, em Rabat. Toda essa perseguição e anos de prisão deveram-se aos meus princípios e às minhas convicções sobre a legalidade do nosso processo de libertação nacional, tipificado pela ONU como um processo de descolonização não resolvido.

PSL: Qual a atual situação da resistência pacífica saharaui e a Intifada nas Zonas Ocupadas do Sahara Ocidental?

MAE: A situação atual nas Zonas Ocupadas do território pode-se qualificar de forma geral como uma “situação infra-humana e insustentável”. Apesar das vozes solidárias de todo o mundo que nos apoiam, sentimo-nos defraudados com a oposição da comunidade internacional à criação de um mecanismo internacional que vele pelas violações dos direitos humanos no território, e a ampliação da missão da MINURSO no território saharaui. Essa postura incita Marrocos a cometer mais violações de direitos humanos. Marrocos continua a matar fora da lei, desde o caso de Hamdi Lmbarki, Abdelaziz Jaya, Lhusein Lektif, Said Dambar e Nayem Elgarhi que foram assassinados a tiro. O regime marroquino continua a violar mulheres e homens com métodos selvagens usando barras metálicas, garrafas de vidro; a administração de ocupação continua a espancar e a arrastar as mulheres saharauis, despojando-as das suas roupas, não respeitando a moral e o património cultural das nossas mulheres na nossa sociedade. A ocupação marroquina continua a prender, a espancar e torturar os jovens e menores idade. Marrocos e os seus militares e polícias continuam a prender os nossos anciãos, como é o caso de Embarek Daudi. Marrocos continua a deter e humilhar famílias inteiras como o fazia nos anos setenta, como é o caso do ancião Embarek Daudi e dos seus quatro filhos. Marrocos continua a reprimir com brutalidade as manifestações pacíficas sem ter piedade dos velhos nem das crianças nem das mulheres. E o mais perigoso de tudo isto é que Marrocos exerceu esta política de violência ante a presença do Enviado Pessoal do SG da ONU, o Sr. Christopher Ross, e com a presença no território do Relator dos Direitos Humanos da ONU, Juan Méndez. E também na presença das Associações Europeias de Direitos Humanos que visitam o território.
Com isto o regime marroquino chegou a uma escala de violações e desafio à comunidade internacional sem precedentes. Esta política levou a que, atualmente, nas Zonas Ocupadas do território, impere o medo entre a população; o regime pratica com muita agressividade e bestialidade a sua ocupação. A população vive a ocupação sob o medo e a discricionariedade. Sofrem-no todos os cidadãos saharauis, quer aqueles que são militantes da causa ou defensores dos direitos humanos, como pessoas que não estão filiadas em nenhuma organização de ativismo político ou de direitos humanos. O medo está nas ruas e nas casas das nossas cidades. Pelo simples facto de se ser saharaui está-se exposto e essas agressões e violações cometidos diariamente pelo regime militar que administra as três grandes cidades Saharauis ocupadas.
O rosto destas violações está em todas as partes, e dou um exemplo: fora do ativismo político, mesmo contra manifestações pacíficas contra as quais o regime intervém com o seu brutal aparelho opressor, espanca, tortura, prende impunemente e impõe julgamentos sumaríssimos, como sucedeu no caso de Gdeim Izik . Recordo que quando estava na prisão, padecia de várias patologias e um dia estava muito mal e pedi medicação. Vários verdugos vendaram-me os olhos, arrastaram-me para uma parte da prisão e disseram-me: Abre a boca para tomar a medicação”. Abri a boca, e senti que urinavam para dentro da minha boca. Um deles disse: “Isto é muito bom para a diabetes”. Bateram-me até cair, e dirigindo a outros presos disseram: “Este saharaui é dos que insultam o rei”. Imaginam como é este regime com tal brutalidade e inumanidade… São brutos, inumanos e têm as rédeas soltas e fazem-no a poucos quilómetros do mundo ocidental, sem que haja denuncia, condenação ou castigo para os torturadores. Persistem pois animados a cometer estas flagrantes violações contra a população saharaui.
O regime tenta impor uma doutrina de aculturação à população e dou-lhes dois exemplos, para que se entenda essa macabra política do ocupante. Nas três cidades ocupadas do Sahara Ocidental o regime não se preocupou em construir nem uma só universidade. E os estudantes saharauis vêm-se obrigados a partir do território para estudar em Marrocos e desenraizar-se da sua cultura, para irem para Agadir, Marraquexe, Rabat ou qualquer outra cidade marroquina. O jovem saharaui vê-se confrontado com outras dificuldades, quando por exemplo lhe exigem que apresente certidões disto e daquilo quando esses estudantes são oriundo do Sahara Ocidental e a administração de ocupação nunca se preocupou com o registo dos nascimentos saharauis.
Há Intencionadamente uma política para dificultar o registo desses estudantes nas universidades marroquinas. Isso leva a que muitos estudantes desistam de prosseguir os seus estudos; e como um segundo fator obstrutivo, Marrocos não tem escolaridade obrigatória e como as crianças saharauis pela peculiaridade da sua sociedade e cultura nascem no campo e não são registada como ocorre com os nascidos na cidade, geralmente só conseguem ter certidão de nascimento muito mais tarde. São fatores de que o sistema beneficia e usa-os para dificultar o acesso à educação. Estas dificuldades integram-se na política de aculturação do povo saharaui.



PSL: Até onde conseguiu o regime levar esta política de desfiguração da cultura e da identidade saharaui?

MAE: Estamos proibidos de fazer a celebração ritual do batismo pelo qual escolhemos o nome do recém-nascido. O regime proíbe- nos de escolher nomes como Mohamed Abdelaziz; Aminetu, Luali [nota: fundador da Frente POLISARIO] ... Para já não falar do perigo que significa utilizar nomes bem arreigados na nossa cultura, como é o caso de Nguia ou Um Lejut. São perseguidos e proibidos nesta política de destruição dos nossos traços de identidade e cultura que nos distinguem deles. Outro desses exemplos, o regime tenta eliminar a jaima (tenda) saharaui, o lar tradicional símbolo da nossa identidade cultural. Agora, é estritamente proibido a jaima no território ocupado. As realizações das nossas celebrações de casamento estão proibidas. Com isto quero dizer que não apenas se proíbe o direito a manifestarmo-nos ou a empunhar bandeiras saharauis ou a gritar fora Marrocos ocupante ou a prender e torturar defensores dos direitos humanos, mas que vão muito mais além com a sua política de destruição de todas as características culturais da nossa identidade nacional.
Mas face a esta brutal política de intento de silenciar a nossa voz e diluir a nossa cultura e identidade, a nossa população prossegue a sua luta de resistência contra esta guerra anticultural e anti-identidade. Estamos enfrentando-a com todos os métodos e meios necessários.

PSL: Ante este intento marroquino de destruir a identidade saharaui, que outros aspetos da cultura e identidade estão ameaçados?

MAE: Marrocos não só coloca na mira da sua política de destruição a identidade saharaui e os seus aspetos identitários, como foi mais além destruindo outros fatores externos, como é a proibição e eliminação do legado linguístico espanhol que nos deixou a potência colonizadora e nos diferencia de Marrocos. O ocupante está consciente da quantidade de falantes desta língua, e que isso beneficia os saharauis. E por isso erradicou a língua espanhola e impôs a língua francesa para apagar qualquer traço histórico que nos vincule como ex-colónia espanhola e nos aproxime dos hispano-falantes no mundo.
Marrocos usa vários métodos e estratégias para levar a cabo esta política, por exemplo o uso direto do seu aparato repressivo contra a população, que se manifesta na perseguição, no encarceramento, a tortura, as violações, etc.
Outro método consiste na aculturação dos saharauis, impedindo-lhes o acesso ao ensino seja secundário ou universitário; também arremete com esta política contra a raiz cultural saharaui, como a proibição de levantar jaimas (tendas tradicionais) ou o uso da roupa tradicional nas instituições da administração. O regime utiliza o ensino primário também para inculcar a sua política entre as crianças com falsos cenários folclóricos.

PSL: Como enfrentam os saharauis esta deriva dirigida à não identidade cultural que Marrocos exerce sobre eles?

MAE: O povo saharaui exerce, tal como os outros povos que sofreram a ocupação e o domínio colonial, todas as maneiras de resistência pacífica contra estas políticas. Dou um exemplo: aproveitam os festejos das bodas e convertem-nos em eventos para defender e propagar nas reuniões do ritual do chá e nas longas conversas sobre a ligação aos valores da sociedade nómade que registam muitos aspetos da nossa cultura. Tudo serve para nos manifestarmos, usar os trajes tradicionais, montar as jaimas e exercer todos estes traços de nossa cultura, destacar a identidade cultural e transmitir a mensagem política e cultural ao povo.
Gostaria de fazer um parêntesis e referir-me aos acontecimentos do Acampamento da Dignidade Saharaui de Gdeim Izik em 2010. Toda a gente fala de Gdeim Izik como um acontecimento político, eu afirmo também que, além disso, foi a primeira vez na historia que se fez um êxodo maciço de natureza reivindicativa. É normal que a gente fuja de um lugar onde reina a morte, a fome, os terremotos, as inundações ou as guerras, em busca de um lugar seguro e onde se possa viver. Os saharauis abandonaram uma cidade, El Aaiun, onde relativamente estão criadas as condições de vida mas preferiram abandoná-la e acampar na planície de Gdeim Izik, lugar carente das mínimas condições de existência. Porque empreenderam uma tal gesta? Os saharauis quiseram dizer ao ocupante e ao mundo: “esta é uma das faces da nossa identidade, esta é a nossa cultura” e por isso esse acontecimento reveste-se inclusive de um significado claramente ainda mais cultural que político. Com Gdeim Izik os saharauis disseram: “rejeitamos todos os métodos do domínio colonial que nos impõem, rejeitamos todos os tipos de marroquinização, quaisquer que eles sejam, com que o ocupante procura nos submeter”.

PSL: Em que situação se encontram os escritores e os jornalistas saharauis nas Zonas Ocupadas?

MAE: O escritor e o jornalista saharaui nas zonas ocupadas, trabalha sob a rigidez do domínio de ocupação, ou seja, a partir da marginalização e da subjugação. Todo o escritor ou jornalista é controlado e perseguido pelas suas opiniões e escritos contra a ocupação. O trabalho de consciencialização e sensibilização da população que levam a cabo fazem-no a partir da clandestinidade. Nenhum jornalista pode manifestar o seu trabalho, seja oralmente ou por escrito, porque será perseguido e encarcerado; também o escritor não se pode manifestar porque corre o mesmo risco. Toda a informação sobre a situação das violações de direitos humanos que comete o regime e que estes informadores fazem chegar ao mundo exterior, fazem-no com grande risco. Informam a partir do esconderijo de domicílios e filmam os abusos do regime escondidos nas açoteias das casas e com meios muito escassos. Em relação ao escritor, vocês sabem que ser escritor não é uma profissão; e é por isso que só em nossas casas podemos escrever livremente e manifestar o nosso pensamento, mas o perigo espreita-nos lá fora. No meu caso, para dar-vos um exemplo real, escrevi nas prisões marroquinas nos meus anos de cativeiro, e podem imaginar as maneiras e forma de escrever nessas duras condições. Recordo que nesses tempos, nas prisões marroquinas, quando alguém a partir do exterior conseguia introduzir um lápis ou uma esferográfica era acusado de meter no presídio uma arma de fogo. O ocupante luta contra todas estas manifestações que se fazem através da criação do escritor ou do artista em geral. E porquê? Porque quando escreves estás dizendo ao ocupante, ao verdugo, ao político que estás vivo e que lhe estás a impor a tua liberdade, a tua opinião e a tua existência, não obstante o fazeres na pequena e escura cela em que te encerraram.

PSL: O que gostarias de dizer aos escritores e jornalistas espanhóis?

MAE: Ante o inferno que vivemos na nossa própria terra e o desvirtuamento que querem fazer da nossa cultura e história, eu digo a todos os intelectuais, escritores e jornalistas que venham conhecer a nossa silenciosa e dolorosa realidade e a nossa resistência pacífica. Venham observar in situ as injustiças diárias que sofremos e que tenham a coragem de assistir como impunemente os militares marroquinos, os agentes secretos e os gendarmes do regime reprimem o nosso protesto pacífico e vejam como batem cruelmente sem piedade com as suas matracas os velhos, as mulheres grávidas, as criança e a juventude.
Peço-lhes que não fiquem indiferentes ao crime que, do outro lado, Marrocos comete contra a nossa população indefesa, que exige apenas o direito de decidir o seu destino, como contempla a carta da Organização das Nações Unidas. Que visitem os campos de refugiados e que venham aos territórios ocupados visitar-nos e que denunciem o que estamos sofrendo.

*Entrevista e tradução para o espanhol: Poemario por un Sahara Libre
Cartagena, 28 de maio de 2014

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