por Sofia Lorena
Isabel Lourenço não conseguiu estar no tribunal de
El Aaiún, onde os jornalistas Mahmoud El Haisan, da televisão RASD, e Bouchalga
Lekrim iam começar a ser julgados na terça-feira, mas as notícias dos
maus-tratos a que foi sujeita e da sua expulsão para Casablanca poderão ter
contribuído para a decisão de Marrocos libertar os dois sarauís, que aguardam
agora em liberdade condicional o recomeço do processo, marcado para 24 de
Março.
A activista portuguesa, membro da organização
Adala, sedeada no Reino Unido, viajou para o Sara Ocidental com uma acreditação
de observadora internacional da Fundação Sara Ocidental, de Espanha. Não é o
primeiro julgamento de sarauís onde está como observadora (processos “sem
garantias para os acusados, onde não são apresentadas provas, só confissões
conseguidas sob tortura”) nem era a sua primeira viagem ao Sara Ocidental.
Desta vez, não passou do aeroporto, onde chegou depois de fazer escala em
Casablanca.
“Aterrei na segunda-feira às 17h40. Como
habitualmente, fizeram-me ficar para o fim do controlo de passaportes”, conta
ao PÚBLICO, já regressada a Portugal. “Quando cheguei, tiraram-me o bilhete de
regresso e disseram-me que era persona non grata. Começaram a chegar mais
polícias, fardados e à paisana, membros dos serviços secretos. Peguei no
telemóvel para ligar à embaixada e eles, agressivos, disseram que não podia
ligar para ninguém. Depois, deitaram-me o computador para o chão.”
“Quando me baixei para apanhar o portátil, duas
mulheres polícias agarram-me e empurram-me, e levaram-me à força para o avião”,
diz. A activista ainda perguntou o que deveria fazer à chegada à Casablanca,
uma vez que não tinha bilhete nem hotel marcado. “Não te preocupes, vais ter o
mesmo tratamento que tiveste aqui”, responderam-lhes.
As notícias correram depressa – sem que a polícia
marroquina se tivesse apercebido, Isabel Lourenço tinha um telefone ligado e a
amiga Helena Brandão, em Lisboa, a ouvir o que se passava. Já dentro do avião,
conseguiu falar com a embaixada portuguesa em Rabat que lhe disse que entraria
em contacto com as autoridades marroquinas. Em Casablanca, deu todas as
entrevistas que pôde.
Na terça-feira de manhã, apoiantes e familiares dos
jornalistas rodeavam o tribunal de El Aaiún (principal cidade e capital do
território ocupado por Marrocos) quando o juiz anunciou que a sessão seria
adiada. “Muitas pessoas foram agredidas, há uma prima e uma tia do Mahmoud que
ficaram feridas”, diz Isabel Lourenço, que já falou com os jornalistas, presos
desde o início de Julho de 2014 por reportagens sobre a repressão de que são
alvo os sarauís.
Agora, a activista está sobretudo preocupada com os
problemas de saúde de Bouchalga Lekrim, um dos libertados, “que estava muito
fraco na prisão, uma das vezes que se apresentou em tribunal nem conseguiu
dizer o nome”. E lembra ainda a situação de Lalla al-Mosawi, que estava grávida
de cinco meses quando foi espancada e torturada, tendo abortado, antes de ser
abandonada no deserto pela polícia, há pouco mais de uma semana. “Era preciso
tirá-la dos territórios, ali não há assistência medida para sarauís, o hospital
da cidade é conhecido como ‘o talho’.”
O facto de a portuguesa ter integrado a missão da
Adala que a 12 e 13 de Fevereiro se deslocou a Genebra para entregar à ONU
relatórios sobre a situação dos presos políticos e das crianças no Sara ocupado
pode ajudar a explicar a recepção que teve à chegada a El Aaiún.
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A imprensa portuguesa, desta vez, deu atenção ao que se passa no Sahara Ocidental sob ocupação... |
Ensino para o ódio
A ONG reuniu provas e testemunhos da situação que
enfrentam os cerca de 50 presos políticos (o número “flutua muito, eles estão
sempre a mudá-los de prisão), detidos “em condições sub-humanas e sem acesso a
cuidados de saúde”, assim como de 316 casos de crianças entre os quatro e os 17
anos “vítimas de tortura”. “O que Marrocos tenta fazer é ensinar para o ódio, é
normal que crianças torturadas aos quatro anos cresçam a odiar os marroquinos.
Os miúdos sarauís são muito pacientes, mas não têm nada a perder. Não têm
emprego, não tem liberdade, a ajuda humanitária chega cada vez menos…”
Na última viagem, em Novembro, Isabel Lourenço
enfrentou “interrogatórios de horas, ameaças, o passaporte confiscado,
perseguições de polícias, um acosso constante”. Estava na cidade para tentar
visitar presos políticos, depois de inúmeros pedidos às autoridades
marroquinas, que, como sempre, ficaram sem resposta.
Marrocos, que ocupou esta antiga colónia espanhola
em 1975, impede regularmente a entrada de observadores internacionais,
jornalistas, activistas e eurodeputados, sem quaisquer consequências. Desde o
fim da guerra entre a Frente Polisário (que em 1976 proclamou a República Árabe
Sarauí Democrática, reconhecida por 80 países) e Rabat, em 1991, há uma missão
da ONU, a Minurso, cujo objectivo é organizar um referendo sobre a
autodeterminação, que Marrocos recusa.
Com todas as provas que organizações como a sua
recolhem e disponibilizam, Isabel Lourenço não entende a inacção das
instituições internacionais, nomeadamente da União Europeia que em 2010 deu a
Marrocos o Estatuto Avançado, o tipo de parceria mais próximo que um país pode
ter antes da adesão. O que a portuguesa de 48 anos sabe é que vai voltar a
tentar ir a El Aaiún. Depois de libertado, na terça-feira, “o Mahmoud agradeceu
aos jornalistas terem escrito sobre o caso e disse que ele e os seus colegas
são a janela dos territórios, podem filmar e denunciar o que se passa, mas é
preciso alguém abrir as portadas, ou nada disso sai do Sara Ocidental”.