EDITORIAL - Le Monde - 21 maio 2021
Ao orquestrar um súbito afluxo de migrantes ao enclave espanhol, Rabat provocou uma grave crise com Madrid e, mais além, com Bruxelas. O episódio lançou uma luz dura sobre a verdadeira natureza do regime marroquino.
Uma nova crise migratória no flanco sul da Europa? A tensão crescente em Ceuta é alarmante. Sob o olhar passivo da polícia marroquina, quase 8.000 marroquinos, muitas vezes muito jovens, conseguiram introduzir-se dentro do enclave espanhol na costa norte do reino de cherifiano no início desta semana. Embora a pressão pareça ter-se dissipado na quinta-feira 20 de Maio após a expulsão de 5.600 destes migrantes para Marrocos, este episódio terá um efeito duradouro nas relações entre Rabat e Madrid e, para além desta, com Bruxelas.
A crise foi encenada pelas autoridades marroquinas, cuja polícia mostrou praticamente o caminho de Ceuta a uma juventude em graves dificuldades sociais. Em Madrid, onde a Ministra da Defesa acusou Marrocos de "agressão" e "chantagem", as emoções estão em alta. Marrocos tinha habituado mal os europeus, que são geralmente bastante benevolentes para com ele, comportando-se como o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ou o antigo líder líbio Muammar Gaddafi que, em momentos diferentes, não hesitaram em utilizar a arma migratória no Mediterrâneo para exercer pressão sobre a Europa.
A atitude de Rabat constitui um infeliz precedente. A origem da crise é bem conhecida: Rabat viu a hospitalização em solo espanhol de Brahim Ghali, o líder supremo da Frente Polisario, um movimento separatista que luta pela independência do Sahara Ocidental, como um gesto inaceitável de inimizade. O argumento "humanitário" apresentado por Madrid foi considerado inadmissível em Rabat, que tinha prometido que esta decisão teria "consequências": estas vieram sob a forma da onda de migração orquestrada em direcção a Ceuta.
Uma aposta arriscada
Encorajado pelo sucesso diplomático, selado a 10 de Dezembro de 2020, em torno do famoso "Trump deal", nos termos do qual Washington reconheceu "a soberania marroquina" sobre o Sahara Ocidental em troca da normalização das relações entre Marrocos e Israel, o reino cherifiano sentiu-se suficientemente confiante para desafiar a Espanha em Ceuta.
É uma aposta arriscada. A reputação internacional de Marrocos tem sido gravemente prejudicada. As cenas de adolescentes e mesmo crianças em risco de vida nas águas de Ceuta com a cumplicidade da polícia marroquina traem o cinismo de um poder pronto a sacrificar a sua juventude no altar dos seus interesses diplomáticos. Ilustram também a precariedade social em que categorias inteiras da população vegetam, um mundo longe do brilhante Marrocos que certos ‘turíferos’ (aduladores) gostam de louvar em Paris e noutros lugares.
Regressão autoritária
É tempo de nos afastarmos de uma certa ingenuidade na forma como olhamos para Marrocos. O reino tem sem dúvida bens valiosos: uma porta de entrada para a África Ocidental, o Islão esclarecido, a cooperação em matéria de segurança e (até agora) a migração. A sua diáspora na Europa é dinâmica e por vezes influente. Mas esta capital diplomática obscureceu durante demasiado tempo nas chancelarias a realidade de um poder com uma preocupante regressão autoritária, como o demonstra a prisão de jornalistas e intelectuais críticos. Um deles, Soulaiman Raissouni, está arrisca actualmente a sua vida em greve de fome.
Em nome de uma amizade que deve permanecer exigente, chegou o momento de os europeus sensibilizarem Marrocos para o facto de o seu crédito no estrangeiro ter sido danificado. E que a defesa dos seus legítimos interesses não o isenta de tratar a sua população - e os seus vizinhos - de forma decente.
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