O “reconhecimento” de uma “soberania”, que o Tribunal Internacional de Justiça afirmou nunca ter existido, só significa apoiar uma política expansionista e de violação do Direito Internacional e do direito de autodeterminação reconhecido ao povo do Sara Ocidental. — artigo de Carlos Ruiz Miguel, Professor Catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela publicado no jornal “PÚBLICO”.
Carlos Ruiz Miguel
07-05-2021
7 de Maio de 2021
No seu fim agonizante enquanto presidente, Trump decidiu “reconhecer” a “soberania” de Marrocos sobre “todo” o Sara Ocidental, actualmente dividido numa zona ocupada por Marrocos, numa outra controlada pela República Saraui (uns 20% do total) e noutra pequena, mas estratégica, controlada pela Mauritânia. Esta decisão é contrária ao Direito Internacional e prejudica a paz no Norte de África. Para a processar de modo a evitar apresentações manipuladas, convém recordar a História e o Direito Internacional aplicável das Nações Unidas.
Espanha assinou em 1884 um acordo de “protectorado” com as tribos independentes do Sara Ocidental, quase 30 anos antes que Espanha e França, em 1912, submetessem a protectorado o país vizinho do Norte, Marrocos. Após a sua independência de França e Espanha, em 1956, a política externa agressiva de Marrocos, com o objectivo de construir o “Grande Marrocos”, procurou anexar o Sara Ocidental, a Mauritânia, o noroeste do Mali, o oeste da Argélia e os territórios espanhóis do Norte de África. Primeiro, Marrocos protestou em 1960 quando a Mauritânia foi aceite como membro das Nações Unidas, alegando que este país fazia parte da sua “integridade territorial” (S/4568). Uma vez frustrada esta tentativa, Marrocos dirigiu o seu expansionismo contra a Argélia, tentando tomar conta dos territórios ocidentais em 1963 (“Guerra das Areias”).
Em consequência do seu fracasso, concentrou todas as suas energias em apoderar-se do Sara Ocidental alegando, também, que fazia parte da sua “integridade territorial” e que a descolonização do território então administrado por Espanha não devia ser feita mediante um referendo de autodeterminação, mas sim “devolvendo-o” a Marrocos para o “recuperar”.
Querendo dissipar dúvidas, a Assembleia Geral da ONU solicitou ao Tribunal Internacional de Justiça um Parecer Consultivo, emitido em 16 de Outubro de 1975. O Tribunal declarou que Marrocos nunca teve soberania sobre o Sara Ocidental e que, quando muito, o sultão marroquino tinha tido ligações pessoais com algumas, mas somente algumas tribos minoritárias do norte do Território (os Tekna), enquanto as tribos sarauis maioritárias (os Erguibat) sempre foram independentes e não tiveram sequer relações pessoais com o sultão. O Tribunal concluiu que a descolonização do Sara Ocidental devia ser feita “mediante a aplicação do princípio de autodeterminação graças à expressão livre e autêntica da vontade das populações do Território” (parágrafos 102 e 162).
Para realizar o referendo, Espanha elaborou em 1974 um recenseamento da população autóctone. Contudo, a doença terminal do general Franco (então no poder), logo após a decisão proferida pelo Tribunal, foi aproveitada pelo rei de Marrocos e seus aliados internacionais (sobretudo Kissinger) que organizaram uma invasão do Sara Ocidental através da chamada “marcha verde” (que o Conselho de Segurança lamentou na sua Resolução S/RES/380 de 6 de Novembro de 1975). Em seguida, a Espanha e a Mauritânia foram pressionadas no sentido de assinarem o chamado “Acordo tripartido de Madrid” de 14 de Novembro de 1975 com a finalidade de, supostamente, “descolonizar” o Território sem um referendo de autodeterminação.
A Assembleia Geral não reconheceu a validade do acordo, exigindo o referendo de autodeterminação que se pretendia evitar (Resolução A/RES/3458, de 10 de Dezembro de 1975). Invocando o “Acordo de Madrid” ilegal, Marrocos e a Mauritânia invadiram o Sara Ocidental, opondo-se a eles a Frente Polisário. Após o abandono por parte de Espanha em 26 de Fevereiro de 1976, a Frente Polisário proclamou a República Árabe Saraui Democrática reconhecida por um grande número de Estados e membro fundador da União Africana.
A Mauritânia renunciou à anexação do Território, mas não Marrocos, continuando até 1991 a guerra contra a Frente Polisário (representante do povo saraui de acordo com a Resolução da Assembleia Geral A/RES/34/37, de 1979). As duas partes do conflito, Marrocos e a Frente Polisário, assinaram em 1988 “Propostas de Resolução” que, complementadas com o “Plano de Aplicação” do Secretário-Geral da ONU constituem o “Plano de Resolução” (S/21360), aprovado pelo Conselho de Segurança em 1990 (S/RES/658).
Ambas as partes concordaram em realizar um referendo de autodeterminação, organizado pelas Nações Unidas com a cooperação da Organização de Unidade Africana, no qual votariam aqueles que estivessem incluídos no recenseamento espanhol de 1974 (parágrafos 23 e 24 do “Plano de Resolução”) para que os sarauis escolhessem entre a integração em Marrocos e a independência (parágrafo 31 do “Plano de Resolução”). Posteriormente, o Secretário-Geral decidiu que deveriam ser adicionados ao recenseamento aqueles que fossem acreditados como sarauis mediante uma série de critérios (documento das Nações Unidas S/23299, de 1991). Depois de múltiplos entraves, a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental (MINURSO) concluiu o recenseamento em Dezembro de 1999 (S/2000/131).
O recenseamento estava feito. Por que razão não foi realizado o referendo? Simplesmente porque Marrocos, quebrando sua palavra, em 2004 (Anexo do documento da ONU S/2004/325) desonrou o seu compromisso contido no “Plano de Resolução”: um referendo de autodeterminação para escolher entre a independência e a integração em Marrocos. Em 13 de Novembro de 2020, Marrocos também violou os seus compromissos relativos ao cessar-fogo, provocando um regresso à guerra depois de quase 30 anos de tensão.
O “reconhecimento” de uma “soberania”, que o Tribunal Internacional de Justiça afirmou nunca ter existido, só significa apoiar uma política expansionista e de violação do Direito Internacional e do direito de autodeterminação reconhecido ao povo do Sara Ocidental pelo Tribunal Internacional de Justiça, pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Somente o respeito pelos direitos do outro trará a paz ao Sara Ocidental.
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