MEMORANDUM SOBRE O REATAMENTO DA GUERRA
NO SAHARA OCIDENTAL
Elaborado pelo Centro de Estudos sobre o Sahara Ocidental da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha)
1. CRISE DE GUERGUERAT E A VIOLAÇÃO DO CESSAR-FOGO
1.1 Marrocos quebrou o cessar-fogo com a sua ação militar em Guerguerat por violar o Acordo Militar n.º 1
O Acordo Militar nº 1 entre a MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental) e as Forças Armadas Reais Marroquinas não
contempla o posto de Guerguerat como zona de passagem do muro de separação, razão pela qual a sua instalação já significava, na altura, uma alteração do status quo, como o Secretário-Geral da ONU advertiu no relatório S/2001/398.
Desde 21 de Outubro, entre este posto ilegal de "fronteira" e a fronteira mauritana, que é a zona militar exclusiva da MINURSO, civis saharauis realizavam um protesto
civil pacífico contra o tráfico ilegal de mercadorias entre o território saharaui ocupado e a fronteira mauritana.
A resolução do Conselho de Segurança de 30 de Outubro de 2020 (S/RES/2548) não condenou esta ação de protesto pacífico e legítimo destes civis.
A 13 de Novembro, enquanto o Secretário-Geral tentava chegar a um acordo, o exército marroquino invadiu a zona e expulsou violentamente os civis saharauis em violação
do cessar-fogo e do Acordo Militar n.º 1.
Face à inação das Nações Unidas contra esta agressão à sua zona exclusiva, a Frente Polisario decidiu pôr fim ao cessar-fogo
e retomar a guerra.
1.2. Marrocos com a sua ação viola o direito internacional.
O Acordo Militar nº 1 reconhece a área invadida como uma área de presença exclusiva da MINURSO, na qual qualquer ação militar é proibida.
Esta proibição não afecta os protestos civis pacíficos.
A salvaguarda do status quo nessa área é da competência exclusiva da MINURSO. Marrocos não tem
competência para assegurar o status quo na área.
Portanto, a sua ação unilateral violou a legalidade internacional, uma vez que representa uma extensão da sua zona de ocupação, violando o Acordo
Militar nº 1, ignorando as competências atribuídas à MINURSO pelo próprio Conselho de Segurança.
2. NATUREZA JURÍDICA DO TERRITÓRIO E DESENVOLVIMENTO DO CONFLITO
2.1 A questão do Sahara Ocidental à luz do direito internacional é uma questão de descolonização e não um problema de "integridade
territorial".
Desde 1961, a ONU considerou o Sahara Ocidental como um "território não autónomo" regido pelo direito à autodeterminação, em conformidade
com os artigos 73 da Carta e a Resolução 1514 da Assembleia Geral da ONU.
A partir de 1972, com a sua Resolução A/RES/2983, a Assembleia Geral reconheceu o direito à autodeterminação e à independência do povo do Sahara espanhol ou do Sahara Ocidental.
Actualmente, o Sahara Ocidental continua na lista das Nações Unidas de "Territórios Não Autonónomos" pendentes de descolonização.
Em 1974, a Espanha, como potência administrante, anunciou à ONU que realizaria o referendo de autodeterminação no primeiro semestre de 1975, em conformidade
com a Resolução 1514.
Marrocos e a Mauritânia argumentaram perante a Assembleia Geral que o referendo não poderia ser realizado porque, segundo eles, o território fazia parte da sua
"integridade territorial" no período anterior à colonização.
Para resolver esta questão, a Assembleia Geral solicitou que o referendo fosse adiado até que o TIJ (Tribunal Internacional de Justiça) se pronunciasse sobre o
assunto.
2.2 A decisão do Tribunal Internacional de Justiça não reconhece que seja um problema de integridade territorial de Marrocos, mas de descolonização.
O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), no seu acórdão de 16 de Outubro de 1975, rejeitou as reivindicações de Marrocos e da Mauritânia sobre uma alegada soberania anterior à colonização
espanhola em 1884, concluindo que a Espanha não colonizou uma terra "no man's" (terra nullius) porque pactuou a sua presença com tribos livres e independentes do território. Foi dada luz
verde à Espanha para avançar com a organização do referendo.
O Tribunal deixou muito claro:
1º - Que na altura da colonização o território (1984) não era terra nullius e que a Espanha negociou a sua colonização com chefes tribais
saharauis.
2º - A maioria das tribos saharauis eram totalmente independentes e não tinham qualquer ligação com o Sultão de Marrocos, entre estas encontra-se a
tribo maioritária (erguibat).
3º - Apenas algumas tribos saharauis do norte do território (os tekna) tiveram alguns laços legais com o Sultão de Marrocos, mas não eram laços
de soberania, uma vez que o juramento de lealdade era feito quando iam fazer comércio no sul de Marrocos, mas quando regressavam ao território eram totalmente livres e independentes, pelo que o Tribunal julgou
que estes "laços" não envolviam o exercício de uma soberania real e efetiva no território.
4º - Trata-se, portanto, de um conflito de descolonização, pelo que a aplicação da Resolução 1514 no caso do Sahara espanhol não
ameaça a integridade territorial de nenhum dos Estados requerentes.
2.3 O conceito de integridade territorial marroquina é perigoso para outros territórios ou Estados, pois não responde a reivindicações históricas
ou legais, mas a uma ambição anexionista.
Prova disso é que o representante de Marrocos (Sr. Slaoui) declarou perante o TIJ que Dakhla (antiga Villa Cisneros) nunca tinha pertencido a Marrocos. Isto significa que o "conceito
de integridade territorial" não se baseia em critérios históricos ou legais, mas é utilizado por Marrocos caprichosamente em função das situações internacionais,
constituindo uma ameaça constante aos territórios e Estados vizinhos.
2.4 Manipulação e distorção da sentença do TIJ para legitimar a invasão e forçar o governo espanhol a ceder o território
O Rei Hassan II fez uma interpretação totalmente manipulada e distorcida da sentença e organizou a chamada "marcha verde" quando em Espanha se registava
um vazio de poder com a agonia de Franco, então Chefe de Estado.
O governo espanhol, em vez de realizar o referendo de autodeterminação, cedeu às pressões de Marrocos e de algumas potências e assinou com Marrocos
e a Mauritânia o chamado "Acordo Tripartido de Madrid", contrário ao direito internacional. Este acordo não foi aprovado pela ONU e constituiu o quadro para o estabelecimento de uma administração tripartida com Marrocos e a Mauritânia.
Meses após a retirada espanhola em 26 de Fevereiro de 1976, em Abril de 1976, Marrocos e a Mauritânia dividiram o Território.
A partir do momento em que tropas marroquinas e mauritanas entraram no Território, a Frente Polisario desencadeou uma guerra de libertação contra estes países
para defender a independência do território.
2.5. A proclamação da RASD é legítima e deriva do desejo da população saharaui e das estruturas tradicionais saharauis, sendo uma consequência
do abandono do poder colonial sem concluir o processo de descolonização.
A Missão enviada pela Assembleia Geral das Nações Unidas para preparar um relatório sobre a situação no Território em 1975 (A/10023/Add.5), durante a sua visita ao Território em Maio de 1975, registou a capacidade de mobilização
da Frente Polisario e o desejo de independência da maioria da população.
Em Dezembro de 1975, na sequência do Acordo de Madrid, juridicamente nulo, foi dissolvida a Jemaa (assembleia dos notáveis saharauis) e formado o Conselho Nacional Saharaui
que, na sequência da retirada da potência administrante (Espanha) a 26 de Fevereiro de 1976, proclamou a República Árabe Saharaui Democrática.
Por conseguinte, a República Árabe Saharaui Democrática é o legítimo herdeiro das instituições saharauis existentes e das tribos independentes originais
que acordaram a colonização com as autoridades espanholas.
2.6. O reconhecimento da RASD não é contraditório com a exigência de um referendo.
É falso que a Frente Polisario defenda a "separação" de Marrocos, uma vez que o território nunca pertenceu juridicamente a este Estado. A RASD
é proclamada quando a Espanha abandona o território sem concluir a descolonização de acordo com as resoluções da ONU.
É portanto compatível reconhecer uma autoridade saharaui legitimamente constituída, e solicitar um referendo para recuperar o território ocupado e uma descolonização
completa, em conformidade com as Resoluções 1514 e 1541 da Assembleia Geral da ONU, pelas quais a população pode decidir num referendo livre e justo entre a sua independência plenamente reconhecida
pela comunidade internacional ou se integrar ou associar a outro Estado.
2.7. Marrocos é uma potência ocupante
Uma vez que o Acordo de Madrid é legalmente nulo e sem efeito, Marrocos é uma potência ocupante do território porque a sua presença não se
baseia em qualquer título legal. Este estatuto jurídico é indicado no parecer do conselheiro jurídico da ONU Hans Corell em 2002 e em várias resoluções da Assembleia Geral da ONU onde esta "lamenta a ocupação
persistente de Marrocos e a sua extensão ao território evacuado pela Mauritânia" (A/RES/34/37).
2.8. Uma guerra de libertação de 16 anos
Praticamente a partir da chamada "Marcha Verde", desenvolveu-se uma guerra entre Marrocos e a Mauritânia, por um lado, e a Frente Polisario (RASD), por outro, que terminou
no caso mauritano com o Acordo de Argel de 5 de Agosto de 1979, pelo qual a Mauritânia renuncia às suas reivindicações territoriais e reconhece a Frente Polisario como o legítimo representante do povo saharaui. Subsequentemente, em 1984, reconhece a RASD.
Após a retirada da Mauritânia, Marrocos começou a anexar o território evacuado pela Mauritânia e começou a reivindicar a totalidade do território
como parte da sua "integridade territorial", em contradição com anteriores pronunciamentos perante o TIJ e subsequente divisão e com o tratado de fronteira assinado com a Mauritânia em 1976. A guerra com Marrocos continuou até ao Cessar-Fogo de 1991.
2.9. O Plano de Resolução sofre a obstrução contínua de Marrocos ao recenseamento e ao trabalho da MINURSO.
Em 1991 entrou em vigor o Cessar-Fogo, que Marrocos violou em 2020, no qual ambas as partes aceitaram o Plano de Resolução para realizar um referendo onde os saharauis que estavam no recenseamento elaborado pela Espanha votariam entre a independência ou a integração em Marrocos.
Para levar a cabo a realização do referendo, foi criada a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) que exerceria uma série de poderes num período de transição até à realização do referendo. Este período de transição nunca pôde
começar devido aos contínuos obstáculos colocados por Marrocos relativamente ao recenseamento.
Após a assinatura dos Acordos de Houston (1997) para desbloquear a elaboração do recenseamento, as listas provisórias foram publicadas em 2000 com um total de cerca de 86.000 eleitores.
Marrocos apresentou vários milhares de queixas contra o censo. O Secretário-Geral da ONU Kofi Annan arquivou o referendo com base no facto de que poderia levar mais de
dois anos a examinar as queixas e que o resultado do referendo não poderia ser imposto porque o Plano de Resolução é regido pelo Capítulo VI da Carta e não pelo Capítulo VII.
O Enviado Pessoal James Baker considerou várias opções para substituir o referendo (autonomia, divisão do território...) mas nenhuma obteve consenso.
Em 2003 apresentou uma proposta conhecida como Plano Baker II que estabeleceu um período de autonomia de 5 anos liderado por um governo eleito com o recenseamento das listas provisórias da ONU e finalmente um
referendo com três opções: integração, autonomia e independência, no qual todos os residentes podiam votar.
O Plano Baker foi apoiado pela Frente Polisario, os Estados Unidos, Espanha, Argélia e Mauritânia. Após a mudança de governo em Espanha, na sequência
do ataque terrorista de 11-M, Marrocos opôs-se ao Plano Baker. O novo governo espanhol e os Estados Unidos também mudaram de ideias e opuseram-se ao Plano Baker. Como consequência, James Baker demitiu-se.
A partir daí, o Conselho de Segurança deixou de fazer propostas e propôs negociações directas sem condições prévias.
3. SITUAÇÃO ACTUAL DO PROCESSO E VIOLAÇÃO CONTÍNUA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
3.1 O atual impasse agrava uma violação contínua dos direitos fundamentais da população saharaui.
A paralisia do processo impediu a MINURSO de adquirir as competências progressivamente previstas no Plano de Resolução para o período de transição
que garantiriam os direitos fundamentais da população saharaui.
Estes mecanismos de proteção também não foram substituídos por outros mecanismos imparciais que poderiam servir para controlar os direitos humanos
no território ocupado, concedendo pois impunidade à potência ocupante.
Além disso, os direitos a um repatriamento seguro dos refugiados e à liberdade de circulação e de estabelecimento nos territórios libertados foram
adiados sine die, quando são direitos inalienáveis que não podem ser negociados ou paralisados a fim de forçar um certo tipo de solução.
3.2 Não é verdade que o referendo seja inaplicável devido a discrepâncias no recenseamento: é porque Marrocos e os seus aliados querem adulterar
a Resolução 1541, eliminando a opção de independência.
A inaplicabilidade do referendo devido a discrepâncias no recenseamento é uma falácia. Marrocos aceitou o censo da ONU de 2000 a fim de eleger um executivo autónomo
no plano de "autonomia" de 2001 denominado "Proposta de Acordo-Quadro" ou "Plano Baker I".
Além disso, no Plano Baker II, aceite pela Frente Polisario, os colonos residentes no território podiam votar no referendo final.
Portanto, a discrepância sobre o censo não é o problema, mas sim que Marrocos e os seus aliados pretendem excluir a opção de independência de
qualquer processo de referendo ou negociação, contrariamente aos parâmetros da Resolução 1541, que prevê a opção de independência.
3.3 A proposta marroquina de "autonomia" como única solução que Marrocos e os seus aliados pretendem impor é contrária ao direito
internacional e é inviável como solução negociada.
Em 2007, Marrocos apresentou uma proposta para a chamada "autonomia" e a Frente Polisario apresentou a sua proposta de autodeterminação.
Desde então não tem havido progressos: Marrocos e os seus aliados têm vindo a introduzir nas Resoluções do Conselho de Segurança princípios
vagos sem valor jurídico, tais como "realismo", "viável", tentando pressionar a Frente Polisario a renunciar à independência e a aceitar uma "negociação"
que tem como quadro "a soberania marroquina".
Impor a suposta "autonomia" como a "única solução", como é reivindicada após o "reconhecimento" pelos Estados Unidos
da "soberania" marroquina sobre o território, está em contradição com as próprias resoluções do Conselho de Segurança, que falam de negociações
"sem condições prévias".
A imposição desta chamada "autonomia" mostra que o verdadeiro objectivo deste plano não é "negociar" uma solução que garanta
a auto-governação do Sahara Ocidental em conformidade com o direito internacional, mas tentar legitimar a anexação do território.
4. CONCLUSÃO
O problema da resolução da questão do Sahara Ocidental não reside nas discrepâncias do recenseamento, nem na viabilidade ou inviabilidade das propostas
apresentadas, nem na falta de diálogo. A única causa que impede a solução é a intenção de Marrocos e seus aliados de obter o reconhecimento internacional da sua anexação
ilegal, violando toda a doutrina das Nações Unidas e esvaziando de conteúdo todos os fins e propósitos da MINURSO, para o que não faz falta qualquer negociação, nem participação
da Frente Polisario, muito menos da Argélia.
Por estas razões, o regresso à guerra da Frente Polisario é totalmente legítimo. Não é apenas a resposta à violação de
todos os direitos fundamentais da população saharaui. É a resposta a um tratamento totalmente injusto para aqueles que confiaram em instituições internacionais por quase trinta anos.
Distribuído por CEAS-Sahara
Complementado com referências documentais
Abril a maio de 2021