quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Espanha no Conselho de Segurança? Para fazer o quê?

 
Mariano Rajoy na AG da ONU, 2014

A votação que vai decidir se Espanha terá um lugar no Conselho de Segurança da ONU realiza-se, por uma ironia da história, a 16 de outubro. Esse dia constitui o aniversário do importantíssimo parecer do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas sobre o Sahara Ocidental. E este será um dos temas, para não dizer "O TEMA”  em que a Espanha mais teria a dizer naquele órgão. A questão, portanto, é: o que quer exatamente Espanha para estar no Conselho de Segurança?

Autor: Carlos Ruiz Miguel, prof. Catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela
@Desdelatlantico


I. AS GRANDES QUESTÕES DA NOSSA POLÍTICA EXTERIOR

Em princípio, o cargo de membro (permanente ou não permanente) do Conselho de Segurança (CS) é atribuído [a um Estado] para participar no exercício de competências que a Carta das Nações Unidas confere a este importante órgão e que podem, não necessariamente, corresponder a interesses particulares desse mesmo Estado. No entanto, não há dúvida de que o exercício leal e de boa fé da responsabilidade de um membro do CS não exclui que, no exercício do mesmo, ele também possa fazer a defesa dos seus interesses particulares quando estes estão em conformidade com princípios da Carta das Nações Unidas.

Em minha opinião, não há dúvida de que os interesses primários e secundários da nossa política externa apresentam a característica de serem totalmente compatíveis com os princípios da Carta das Nações Unidas. Outra questão é se a política externa que está sendo seguida em Espanha serve os nossos interesses ou não.

Quais são as grandes questões da nossa política externa?

Em primeiro lugar, claramente, a defesa da integridade territorial do Estado, tanto face às pretensões de restringi-lo (Marrocos), como face à queles que se opõem (Reino Unido) ao restabelecimento da mesma, recusando-se devolver o território que nos pertence (Gibraltar) ;

Em segundo lugar, a necessidade de honrar os nossos compromissos internacionais, públicos e solenes, de terminar a descolonização do território do qual somos legalmente administradores (Sahara Ocidental).

Existem, naturalmente, outros interesses importantes, mas secundários, embora ligados aos principais. Por exemplo, em matéria de descolonização, são várias as questões onde os interesses de Espanha exigiriam um maior envolvimento (casos das Malvinas e Guam, fundamentalmente).

Entre estes assuntos, o de Gibraltar é matéria de que se ocupa a AG das Nações Unidas, enquanto o do Sahara Ocidental é uma questão em que, cada um na sua esfera de competência própria, se ocupam a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança.


II. O SAHARA OCIDENTAL, PRINCIPAL RAZÃO DE SER DA NOSSA EVENTUAL PRESENÇA NO CONSELHO DE SEGURANÇA

Como comentei antes, de todos os assuntos de que se ocupa o Conselho de Segurança, o do Sahara Ocidental é aquele onde a defesa do Direito Internacional (que cabe a todo o membro do Conselho) melhor se articula com o nosso interesse em solucionar o conflito de acordo com o Direito Internacional.

E, qual ironia da história, é no dia em que a votação ocorrerá para se saber se Espanha obterá o cargo de membro não-permanente do SC - 16 de outubro - , que se cumpre o aniversário do dia em que as Nações Unidas adotaram o mais importante documento da história do Sahara Ocidental, ou seja, o parecer do Tribunal Internacional de Justiça, de 16 deoutubro de 1975, após um processo em que a Espanha teve uma intervenção brilhante e bem sucedida.

Naquele parecer, o Tribunal declarou (parágrafo 70 do parecer) que:

le processus de décolonisation qui doit être accéléré et que l'Assemblée générale envisage dans cette disposition est un processus qui respectera le droit des populations du Sahara occidental de déterminer leur statut politique futur par la libre expression de leur volonté. Ce droit n'est modifié ni par la présente requête pour avis consultatif ni par la résolution 3292 (XXIX) qui le réaffirme expressément au contraire. Le droit de ces populations à I'autodétermination constitue donc un élément de base des questions adressées à la Cour.

TRADUZIDO:
O processo de descolonização que deve ser acelerado e que a Assembleia Geral contempla nesta disposição [refere-se à resolução 3292] é um processo que respeitará o direito das populações do Sahara Ocidental a determinar o seu futuro estatuto político mediante a livre expressão da sua vontade. Este direito não está modificado pela presente demanda de parecer consultivo nem pela resolução 3292 (XXIX) que o reafirma expressamente. O direito destas populações à autodeterminação constitui, portanto, um elemento base das questões colocadas ao Tribunal.

Precisamente por isso, NÃO PODE HAVER SOLUÇÃO que não passe pelo referendo de autodeterminação, exceto, é claro, a retirada unilateral da força de ocupação da maior parte do território, seguido pelo reconhecimento da República saharaui.


III. ESPANHA NO CONSELHO DE SEGURANÇA NO BIÉNIO 2003-2004 E O "PLANO BAKER"

A última vez que Espanha foi membro não permanente do Conselho foi no biénio 2003-2004. Naquele período, fora a questão da guerra do Iraque, a intervenção mais importante de Espanha foi em relação, precisamente, ao Sahara Ocidental.

Em  julho de 2003, os Estados Unidos apresentaram um projeto de resolução mediante o qual o Conselho aprovava (endorse) o chamado "plano Baker" que contemplava uns anos de autonomia após os quais se realizaria o referendo de autodeterminação. Dado este que convém recordar aos que por ignorância ou má fá dizem que os EUA "sempre" se alinharam ao makhzen.

Em 2003-2004, no Conselho de Segurança, Espanha não aprovou e deixou cair o «Plano Baker». Meses mais tarde o Enviado Pessoal do SG da ONU demitia-se...

Espanha apoiou em princípio esse projeto de resolução provocando o pânico na corte de Mohamed VI que imediatamente ativou o seu lobby em Madrid. Pouco depois, no último momento, numa atuação surpreendente e lamentável, ainda não totalmente explicada, a ministra dos Negócios Estrangeiros, Ana Isabel de Palacio y del Valle Lersundi (mais conhecida simplesmente como "Ana Palacio") ordenou ao embaixador espanhol nas Nações Unidas a fazer esforços na ONU para que o projeto, em vez de "aprovar" o "plano Baker" o "avalizasse". Um desempenho que espero um dia venha a ser conhecido se o Presidente do Governo de então, José María Aznar López, era a favor ou contra a iniciativa da sua ministra das Relações Exteriores.

Em abril de 2004, o governo de Rodríguez Zapatero [POSE], surgido após o atentado do 11-M, tomou a sua primeira medida de política externa (anterior à retirada do Iraque): deixar de apoiar o "plano Baker". Meses despois, em junho de 2004, Baker demitiu-se.


IV. O EVENTUAL CENÁRIO PARA 2015-2016

Que vai fazer Espanha em relação ao Sahara Ocidental se for eleita membro do Conselho de Segurança?
Surpreende, e muito, o absoluto silencio do nosso governo (e da oposição ) sobre este ponto.

E surpreende porque ninguém ignora que, tal como em 2003-2004, o Sahara Ocidental, por mais que silenciado pela imprensa espanhola, vai ser a questão mais importante em que vamos ter que nos pronunciar.


E surpreende, pois é muito claro o que a Espanha, com essa responsabilidade, pode e deve fazer. Especialmente porque, depois de ter deixado cair o "plano Baker", não há mais dúvida de que os argumentos utilizados na época para rejeitar e alhear-se  do que determina o Direito internacional,  dez anos depois demonstraram-se totalmente falsos.

Sem comentários:

Enviar um comentário