terça-feira, 24 de novembro de 2020

Os sarauís esgotaram a paciência e regressaram às armas. “Marrocos quer uma guerra de desgaste moral do nosso povo”

 


 Um conflito que estava em ponto morto há quase 30 anos acaba de se reacender. Em entrevista ao Expresso, o delegado da Frente Polisário em Portugal justifica o que levou os sarauís a romperem o cessar-fogo com Marrocos e a voltarem a pegar em armas. Mohamed Fadel explica também porque se sente traído por António Guterres.


 

Um artigo de MARGARIDA MOTA - in jornal “Expresso” - Ilustração de Jaime Figueiredo

20-11-2020

 

A avalancha de notícias sobre a pandemia de covid-19 e ainda sobre as eleições nos Estados Unidos quase deixou passar despercebido o reacendimento de um velho conflito que cumpria uma trégua há quase 30 anos — a disputa do território do Sara Ocidental entre Marrocos e a Frente Polisário, o movimento de independência reconhecido pela comunidade internacional como legítimo representante do povo sarauí.

 

“Marrocos tem o seu exército destacado ao longo de todo o muro de 2700 quilómetros” que separa o Sara administrado por Marrocos e o território controlado pela Frente Polisário. “Onde quer que haja concentração de tropas marroquinas, essas áreas estão a ser atacadas dia e noite”, garante ao Expresso Mohamed Fadel, delegado da Frente Polisário em Portugal.

A gota que fez transbordar a paciência sarauí pingou faz esta sexta-feira uma semana. Militares marroquinos entraram na zona desmilitarizada de Guerguerat — junto à fronteira com a Mauritânia, na ponta sudoeste do Sara Ocidental — para expulsar dezenas de civis sarauís que bloqueavam uma estrada importante desde 21 de outubro, impedindo que o trânsito que saía de Marrocos seguisse para sul.

 

Para Marrocos, a rota por Guerguerat representa a principal ligação por terra com o resto do continente africano. Para a Frente Polisário, trata-se de uma passagem ilegal. “Quando foi assinado o acordo de paz, e se instaurou no território a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental (MINURSO), só havia quatro brechas abertas ao longo do muro, para que o pessoal da ONU pudesse deslocar-se no interior do território, para os dois lados”, explica Mohamed Fadel. “A brecha de Guerguerat foi aberta arbitrariamente por Marrocos.”

 

A Frente Polisário considerou a incursão militar marroquina na zona tampão uma violação unilateral do acordo de paz e, faz amanhã uma semana, decretou o fim da trégua. “A paciência dos sarauís tem os seus limites. A abertura da brecha e a expulsão dos civis deu-nos a oportunidade de reiniciarmos as hostilidades. Os nossos estão dispostos a continuar com elas indefinidamente até que Marrocos respeite a legalidade internacional no conflito do Sara Ocidental.”

A soberania marroquina sobre o Sara Ocupado não é reconhecida pelas Nações Unidas, nem por Estados Unidos e União Europeia, apesar de, no caso desta última, isso não ser obstáculo ao aprofundamento de uma parceria económica com Marrocos, por vezes com contornos embaraçosos para os europeus.

 

O mesmo acontece com a União Africana, onde se dá a insólita situação de ocupante e ocupado — Marrocos e República Árabe Sarauí Democrática (RASD), o Estado que os sarauís decretaram em 1975 e que reivindica a soberania sobre o antigo Sara Espanhol — serem membros da organização ao mesmo nível.

 

Hoje, dezenas de países reconhecem a RASD, mas nenhum deles é europeu. “Apesar da alardeada unidade, a União Europeia tem uma política externa absolutamente díspar. Infelizmente, é notória a influência da França em toda a agenda europeia.”

 

A CENTRALIDADE DO REFERENDO

Segundo o representante da Polisário, uma única condição pode levar os sarauís a depor novamente as armas: a realização do prometido referendo à sua autodeterminação. “Não haverá cessar-fogo até a comunidade internacional se comprometer com a realização do referendo, numa data definida”, diz Mohamed Fadel.

 

Sem recenseamento feito, estima-se que o número de sarauís ande à volta de meio milhão de pessoas, repartidas entre o Sara administrado por Marrocos, os campos de refugiados de Tindouf (na Argélia) e a diáspora.

Instituída pela Resolução 690 do Conselho de Segurança, de 29 de abril de 1991, a MINURSO foi criada para supervisionar o cessar-fogo e, como o seu próprio nome indica, realizar um referendo de autodeterminação, que chegou a estar planeado para fevereiro de 1992.

 

Quase 30 anos depois, e 15 representantes especiais nomeados pelo secretário-geral da ONU desde 1988, “as Nações Unidas não estão a fazer o seu trabalho”, avalia o responsável sarauí. “Existem claras intenções de desvio em relação ao acordo de paz inicial. Gradualmente, estão a procurar uma maneira de subtrair dos seus textos a referência ao referendo. Isso é percetível em especial nas últimas resoluções do Conselho de Segurança”, acusa Mohamed Fadel.

 

MINURSO FINGE QUE NÃO VÊ

“E temos provas suficientes de que a MINURSO tem servido de instrumento de Marrocos para ocultar as violações dos direitos humanos que ocorrem todos os dias diante do nariz dos funcionários da ONU. Assistem diariamente à violação sistemática dos direitos de mulheres, que são espancadas nas ruas, e a ataques a casas de pessoas suspeitas de simpatizarem com a causa sarauí.”

Mas até hoje, “a MINURSO nunca deu informações sobre estas situações”, nem sobre “a exploração dos recursos do território que saem em camiões que passam pela brecha ilegal de Guerguerat para toda a África. Está confirmado com provas evidentes que a maioria desses camiões, para além de vegetais, vão carregados de droga.”

Por ser o principal rosto da organização, mas também pelo seu currículo em defesa dos direitos humanos, António Guterres é especialmente visado pelas críticas de Mohamed Fadel. “Sinto-me totalmente traído. Ele foi Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, conhece este dossiê muito bem.” Em 2009, nessa qualidade, Guterres visitou os campos de refugiados sarauís, em Tindouf (Argélia), onde vivem cerca de 190 mil pessoas.

 

“Mantivemos a esperança um pouco ingénua de que António Guterres, como tinha defendido o referendo em Timor-Leste [em 1999, era ele primeiro-ministro de Portugal], seguisse a mesma linha em relação ao conflito do Sara Ocidental.”

 

AUTONOMIA EM VEZ DE AUTODETERMINAÇÃO

Da perspetiva sarauí, o português não correspondeu. “Prestou-se a servir a política que Marrocos quer para o território, de imposição dos factos consumados. As últimas resoluções do Conselho de Segurança da ONU fazem uma referência muito discreta à autodeterminação e dão prioridade à proposta marroquina de autonomia, como uma proposta real, pragmática e viável.”

 

O último relatório do secretário-geral da ONU classifica a situação no Sara ocupado como “calma”, expressão que se repetiu no texto da resolução do Conselho de Segurança de 30 de outubro passado, com a qual foi renovado por um ano o mandato da MINURSO. Os sarauís criticam também que a ONU continue a não estar mandatada para proteger os direitos humanos e que não haja qualquer referência à brecha ilegal de Guerguerat.

Após a escalada dos acontecimentos junto à brecha de Guerguerat, o secretário-geral da ONU falou ao telefone com o rei de Marrocos, Mohamed VI. Segundo um comunicado divulgado pela casa real, “durante a conversa, Sua Majestade o Rei sublinhou que depois do fracasso de todas as louváveis tentativas por parte do secretário-geral, o Reino de Marrocos assumiu as suas responsabilidades no âmbito do seu mais legítimo direito, tanto mais que esta não é a primeira vez que as milícias ‘polisário’ se envolvem em ações inaceitáveis”.

 

Segundo o comunicado, Marrocos resolveu a situação, restabeleceu o tráfego automóvel e enfatiza “o firme compromisso com o cessar-fogo. Da mesma forma, o Reino continua firmemente determinado a reagir, com a maior severidade e no âmbito da legítima defesa, a qualquer ameaça à sua segurança e à paz dos seus cidadãos”.

 

GUERRA EM TEMPO DE PANDEMIA

Com o mundo tomado pela pandemia, o regresso dos sarauís às hostilidades corre o risco de não colher a compreensão e apoio por parte de quem pouco ou nada conhece do assunto. “É uma realidade que o mundo inteiro está imerso na luta contra a pandemia. Mas também é uma realidade que Marrocos e as Nações Unidas se têm servido de múltiplos pretextos para atrasar indefinidamente a resolução do conflito”, conclui Mohamed Fadel.

 

“Nós respeitamos estritamente o cessar-fogo até 13 de novembro, e a principal causa [para o seu fim] foi Marrocos violar mais uma vez o cessar-fogo sem que a ONU se pronuncie. A estratégia de Marrocos, lamentavelmente com a cumplicidade das Nações Unidas, é fazer com que o tempo passe e que haja uma guerra de desgaste moral dos sarauís.”

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