sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Marrocos aceita tacitamente a República Saharaui

 

É surpreendente que os meios de Comunicação social espanhóis não tenham falado disso, mas é um facto. O Reino de Marrocos aceitou, tacitamente, e em duas ocasiões praticamente consecutivas, a República Saharaui. O acontecimento, de importância transcendental, ocorreu na África do Sul (a 10 de dezembro) e no Quénia (a 11 de dezembro). Só um meio digital marroquino chamou a atenção para o ocorrido, mas em Espanha (como é costume) ninguém o fez. O assunto tem consequências importantíssimas.

I. A RETIRADA DE MARROCOS DA OUA DEVIDO À ENTRADA DA REPÚBLICA SAHARAUI
Para situar a notícia na magnitude do seu contexto convém recordar um dado importante. Em novembro de 1984 Marrocos abandonou a Organização de Unidade Africana (OUA) depois da República Saharaui (RASD) decidir tomar lugar na organização em que fora admitida dois anos antes. Marrocos chantageou a OUA com a sua retirada, despois da OUA ter admitido a República Saharaui como um dos seus membros em 1982. A OUA não aceitou a chantagem. Marrocos retirou-se da organização porque considerava inaceitável poder sentar-se num fórum internacional com a república saharaui.

II. A REPÚBLICA SAHARAUI E O REINO DE MARROCOS, JUNTOS NO FUNERAL DE ESTADO DE MANDELA
Quase 30 anos depois, em 2013, a República da África do Sul dirigiu um convite a diversos Estados para participar no funeral de Nelson Mandela, ele que talvez possa ser considerado como a (ou uma das) figura(s) política(s) mais importante(s) da segunda metade do século XX. O Reino de Marrocos enviou como seu representante o príncipe Mulay Rashid (irmão de Mohamed VI com direito de sucessão ao trono) e o ex-ministro de Negócios Estrangeiros e atual membro do Gabinete Real (e, de facto, o verdadeiro ministro de Negócios Estrangeiros) Taieb Fassi-Fihri. Por seu lado, a República Saharaui encontrava-se representada pelo presidente, Mohamed Abdelaziz.


Taieb Fassi-Fihri (ex-MNE de Marrocos) e o príncipe Mulay Rashid (irmão de Mohamed VI) 
presentes no funeral de Nelson Mandela
Marrocos sabia de antemão que Abdelaziz iria estar presente, entre outras coisas, porque um dia antes do Funeral, no dia 9 de dezembro, o Governo sul-africano publicou a lista dos chefes de Estado presentes, incluindo nela Abdelaziz.
Mais, na tribuna, o presidente saharaui e o príncipe marroquino estavam sentados muito próximo e viram-se perfeitamente.
Pois bem, os representantes de Marrocos foram ao funeral sabendo de antemão que iam compartilhar esse ato de Estado com o presidente da República Saharaui. E uma vez ali, e confirmada a presença do presidente saharaui, permaneceram durante todo o ato.
Em Espanha, porém, ninguém disse nada. E isso apesar do presidente saharaui, Abdelaziz, ter trocado algumas palavras com o presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy Brey.
Além disso, no funeral de Estado de Mandela, o presidente dos Estados Unidos, Barack Hussein Obama, não hesitou em saudar e fotografar-se junto com o presidente da República Saharaui numa foto de grande transcendência política e histórica.

O Presidente dos EUA cumprimenta e deixa-se fotografar
com o Presidente da RASD e SG da Frente Polisario

III. A REPÚBLICA SAHARAUI E O REINO DE MARROCOS, JUNTOS NA TOMADA DE POSSE DO PRESIDENTE DO QUÉNIA
Quarta-feira, 11 de dezembro, um dia depois do funeral de Mandela, o presidente Abdelaziz foi convidado na qualidade de chefe de Estado para participar na tomada de posse do novo presidente do Quénia, Uhuru Kiniata. O presidente saharaui era um dos 20 chefes de Estado convidado expressamente para participar na cerimónia. O Reino de Marrocos, por seu lado, esteve representado pelo seu ministro de Negócios Estrangeiros, Salaheddin Mezuar. O Reino de Marrocos conhecia, com antecedência, da presença do chefe de Estado saharaui e nem por isso deixou de se fazer representar. Durante o ato, o ministro marroquino esteve perto do presidente saharaui e nem por isso se retirou do ato oficial.
O facto tem uma dupla importância política.
Em primeiro lugar, este convite do novo presidente queniano ao presidente saharaui na qualidade de "Chefe de Estado" significa que o Quénia volta a reconhecer a república saharaui. Com efeito, a 25 de junho de 2005 o Quénia reconheceu a república saharaui, mas mais tarde, a 26 de junho de 2007, na sequência de pressões marroquinas decidiu "congelar" esse reconhecimento. O convite ao presidente saharaui na qualidade de chefe de Estado, constitui uma confirmação do reconhecimento do Quénia à república saharaui.
Em segundo lugar, a comum participação, enquanto representantes de Estado, do ministro marroquino e do presidente saharaui, constitui uma nova aceitação tácita da República Saharaui por Marrocos, depois da produzida na África do Sul.

IV. CONSEQUÊNCIAS
As consequências destes acontecimentos têm um longo alcance.
Em primeiro lugar, os embaixadores ou diplomatas marroquinos fora do seu país ficam desautorizados se se atrevem a criticar a presença de representantes da República Saharaui nos países em que estão acreditados: como criticar um país por receber um representante da república saharaui se o próprio Reino de Marrocos não criticou nem protestou junto dos Estados que convidaram os ditos representantes ao mesmo nível de Estado que eles?
E não só isso, o Reino de Marrocos perde a sua legitimidade para protestar contra a decisão de qualquer Estado de reconhecer a República Saharaui. No caso da Espanha, isso significa que a objeção que alguém pudesse levantar contra o reconhecimento da RASD fica assim privado de razão.
Em segundo lugar, a decisão marroquina desautoriza também os seus próprios atos do passado, como os "talibãs do majzen" que após a retirada marroquina da OUA criticaram a presença da República Saharaui (Gabão e Senegal, muito em especial).
Em terceiro lugar, a decisão marroquina reforça a posição da República Saharaui e da Frente Polisario como representantes do povo saharaui, posição que Marrocos tinha já reconhecido à Frente Polisario ao entabular negociações diretas com a organização sob os auspícios das Nações Unidas para decidir o futuro do Sahara Ocidental.


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