Artigo do Carlos Ruiz Miguel,
Prof. Catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela.
Os Estados Unidos parecem dispostos a pôr em prática, de uma vez, a solução para o conflito do Sahara Ocidental. Não parece que a questão seja a de saber qual é a solução: pois as Nações Unidas não se têm cansado de repetir que a única solução passa por um referendo de autodeterminação, algo que Marrocos sabe melhor do que ninguém. A questão está em buscar uma "solução política" para pôr em prática essa "solução jurídica".
Tudo parece indicar que os Estados Unidos vão exercer pressão para que essa solução
política seja alcançada. Esta é a conclusão que parece depreender-se de uma
inusual, surpreendente e extraordinária "declaração conjunta" de apoio
a Christopher Ross que o "Grupo de amigos do Sahara Ocidental" nas Nações
Unidas acaba de tornar pública há apenas algumas horas. Essa "declaração
conjunta" exige uma análise.
I. CHEGOU CHRISTOPHER
ROSS AO PONTO A QUE CHEGOU JAMES BAKER?
Em março de 1997, James Baker III foi nomeado "Enviado
Pessoal" do Secretário-Geral das Nações Unidas para o Sahara Ocidental. Baker
era um prestigiado diplomata norte-americano que, enquanto Secretário de
Estado, conseguiu formar a amplíssima coligação internacional que empreendeu a
guerra do Golfo contra o Iraque quando este país invadiu o Kuwait em 1991. O
esforço de Baker deu os seus frutos e, em 1997, conseguiu que as duas partes do
conflito do Sahara Ocidental, Marrocos e a Frente Polisario, negociassem e chegassem
a uns acordos, os "Acordos de Houston" de 1997 que foram aprovados pelo
Conselho de Segurança.
No entanto, a morte de Hassan II abortou o processo. Mohamed
VI, seu sucessor desde julho de 1999, decidiu no início do ano 2000 romper com
os compromissos assumidos por Marrocos.
James Baker III |
James Baker procurou outras soluções e, após múltiplos esforços,
formulou o seu "Plano Baker". Esse plano foi avalizado pela resolução 1495 do Conselho de Segurança,
aprovada por unanimidade, sendo o Conselho presidido nesse momento por Espanha,
cujo governo era dirigido por José María Aznar. O Conselho de Segurança
qualificou o plano Baker como "solução política ótima baseada no acordo
entre as duas partes"
Depois do atentado de 11-M, acedeu à presidência do governo
de Espanha José Luis Rodríguez Zapatero que retirou o seu apoio a Baker. Baker demitiu-se
em junho de 2004.
Como já referi, em minha opinião, o
plano Baker é "a estação de terminus" do conflito do Sahara Ocidental.
Creio que, por mais que se tente, não há outra solução que possa satisfazer em
tanta medida ambas as partes.
II. O PARÊNTESIS DE VAN
WALSUM E A GESTÃO DE CHRISTOPHER ROSS BLOQUEADA POR CLINTON
Após a demissão de Baker não foi nomeado imediatamente nenhum
"Enviado Pessoal". No ano seguinte, em 2005, foi nomeado para o cargo
o diplomata holandês Peter Van Walsum, mas a sua gestão foi um fracasso e o Secretário-Geral
não lhe renovou a sua confiança, prescindindo dos seus serviços em 2008. Um ano
depois, em janeiro de 2009, foi designado para o posto Christopher Ross, outro
diplomata norte-americano mas com ampla experiência na região.
Peter Van Walsum: uma gestão fracassada |
Ross iniciou as suas diligências e, em fevereiro de 2009, afirmei
neste blog a ideia de que parecia que Ross
queria recuperar o plano Baker.
Porém, os intentos de Ross foram bloqueados no seio da
"administração Obama" por Hillary Rodham Clinton que, tal como o seu
marido, famoso pelo escândalo Lewinsky, são ativos membros do lobby pro-marroquino
nos EUA.
Clinton não conseguiu que Obama assumisse a posição da
última fase da administração Bush jr., isto é, o apoio dos Estados Unidos ao plano marroquino
de pseudo "autonomia" para o Sahara Ocidental; no entanto, conseguiu
travar o intento de Obama e Ross de ativar o plano Baker.
Hillary Clinton |
Certo é que, até hoje, Obama não aceitou receber ainda
Mohamed VI. Talvez isso tenha a ver com a posição racista da monarquia alauita em
relação aos emigrantes negro-africanos que se encontram em Marrocos.
III. NOVA ADMINISTRAÇÃO
OBAMA, CRISE DO MALI E CONFLITO DO SAHARA OCIDENTAL
A reeleição de Obama em finais de 2012 teve como consequência
imediata a substituição de Hillary Clinton por John Kerry que, até esse momento,
era senador e se havia mostrado favorável ao reconhecimento dos direitos do povo
saharaui.
O atual Secretário de Estado dos EUA, John Kerry |
Isso, por sua vez, coincidiu com o desencadeamento da guerra
no Mali em que confluem múltiplos interesses e causas.
Mas se há algo em que parece haver acordo é que os supostos
"islamitas" (que, como demonstrou Beatriz
Mesa numa esplêndida análise, devem, na realidade, antes ser designados por
"pseudojihadistas"), contam com o apoio
claro, entre outros Estados, do Qatar (com "Q", por suposto) que,
por acaso é um dos aliados de Marrocos país donde, também por acaso, provém o
haxixe com que traficam os supostos "islamitas" da zona.
A provocação de uma forte instabilidade no Mali, com a pretensão
de desestabilizar toda a região, alarmou em particular os Estados Unidos. Este
país considera que a solução do conflito do Sahara Ocidental contribuiria para estabilizar
a região.
A guerra no Mali, e o apoio do Qatar (e de Marrocos?) aos jihadistas ... |
Neste novo contexto, a famosa questão de saber a quem beneficia
o tempo tomou uma volta inesperada. Se até agora o lobby pro-marroquino gostava
de dizer que "o tempo joga a favor de Marrocos", o certo é que um
conjunto de novas circunstâncias levaram a que, neste momento, "o tempo jogue
a favor do povo saharaui". A rebelião pacífica saharaui em Gdeim Izik, em novembro
de 2010, afogada em sangue e destruição e dada por terminada em falso com um
processo militar iníquo constituiu um ponto de inflexão. Neste momento, a solução
do conflito saharaui URGE. A técnica do majzen de "marear la perdiz"
(fazer perder tempo propositadamente) não resulta neste momento.
IV. A SURPREENDENTE
"DECLARAÇÃO CONJUNTA" DO GRUPO DE AMIGOS DO SAHARA OCIDENTAL”
Esta é a situação.
No dia 15 de março, as Nações
Unidas anunciavam um novo périplo de Ross pela região entre 20 de março e 3 de
abril, voltando a visitar o Sahara Ocidental. No anúncio, o porta-voz das
Nações Unidas, Eduardo del Buey afirmou que
“o atual conflito do Mali e o incremento de risco de
instabilidade e de insegurança no Sahel e na região para lá dele fazem com que
a solução do conflito do Sahara Ocidental seja mais urgente que nunca"
Antes deste anúncio, mas provavelmente conhecendo a iminência
do mesmo, os
meios marroquinos, sob a batuta do majzen, empreenderam uma nova campanha
contra Ross.
Hoje, 19 de março, Ross era recebido por Gonzalo de Benito,
número 2 do ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol. A visita não foi anunciada
previamente, como se Espanha não tivesse interesse com o que ocorre com o território
não autónomo de que Espanha
continua a ser a potência administrante. A
página web do MNE refere-a muito sucintamente. Convém não esquecer que a
visita de Ross a Espanha no dia 19 não estava incluída no périplo que começa no
dia 20. E tampouco convém esquecer que o departamento que, com tão pouco acerto,
dirige García-Margallo foi o
único país do mundo ocidental que mostrou o seu apoio a Mohamed VI quando este
decidiu recusar Ross.
No entanto, e aqui está o surpreendente, esta tarde a página web da Missão
dos ESTADOS UNIDOS nas Nações Unidas publicava uma "declaração conjunta"
do "Grupo de amigos do Sahara Ocidental". Este grupo é composto
pelos EUA, Reino Unido, França e Rússia (membros permanentes do Conselho de
Segurança da ONU) e por Espanha, como potência administrante do território.
Chama no entanto a atenção que a página web dos MNE de Espanha,
França e Reino Unido nada dissessem sobre esta "declaração conjunta".
E chama ainda mais a atenção que esta "declaração
conjunta" se publique no dia "19 de março" na página web da
missão dos ESTADOS UNIDOS "para sua divulgação imediata", estando no
entanto datada com dia "15 de março".
Vejamos o texto (o texto espanhol é uma tradução não oficial
publicada pela WSHRW)
Declaração conjunta do Grupo de
amigos do Sahara Ocidental: Estados Unidos, França, Espanha, Reino Unido e Rússia,
aos 15 de março de 2013
Nova Iorque, NY
19 de março de 2013
PARA DIFUSÃO IMEDIATA
O Grupo de amigos do Sahara Ocidental congratula-se com o
anúncio da próxima viagem à região, incluindo o Sahara Ocidental, do Enviado Pessoal
do Secretário-Geral para o Sahara Ocidental, Christoher Ross. Os membros do
Grupo de Amigos expressam o seu apoio aos esforços de mediação do Secretário-Geral
e do seu Enviado Pessoal para preparar a próxima fase do seu compromisso com as
partes e os Estados vizinhos. O Grupo de Amigos do Sahara Ocidental tem
incentivado as partes a mostrar flexibilidade no seu compromisso com o Enviado Pessoal
e com a outra parte, com a esperança de acabar com este impasse e alcançar
progressos no sentido de uma solução política.
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PRN: 2013/033
Chistopher Ross, recebido hoje em Madrid por Gonzalo de Benito, número 2 do ministério espanhol dos Negócios Estrangeiros |
V. VÉSPERAS DE
ACONTECIMENTOS IMPORTANTES
A inusual declaração do grupo de amigos sugere desde logo várias
coisas.
1) Parece que estamos ante o anúncio de que algo importante se
vai passar no Sahara Ocidental.
2) o facto de esta declaração ter sido publicada pelos EUA constitui
uma mensagem, inequívoca, do apoio dos Estados Unidos a Ross.
3) Este apoio a Ross constitui uma advertência clara à
monarquia alauita para que cesse de atacar a Ross e facilite o seu trabalho.
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