domingo, 10 de março de 2013

“Marrocos atirava napalm sobre o Sahara… e Espanha olhava para o lado”



Tòfol Fuster, Coronel de Infantaria na reserva

Militar na reserva, amigo do povo saharaui. Coronel de Infantaria na reserva e licenciado em  Direito, Tòfol Fuster, de 71 anos, esteve no Sahara espanhol em serviço militar entre 1965 e 1969, uma experiência que o marcou profundamente. Condena profundamente o papel de Espanha ao longo deste eterno conflito.

Como se estabeleceu a sua relação com o povo saharaui?

Em 1965, quando tinha 22 anos, fui, como tenente, deslocado para o Sahara e ali estive vivendo durante quatro anos. Eu estava muito animado. Mas foi um choque muito forte. Eles são povos nómadas que se deslocam de um lugar para outro. Eu estava integrado numa unidade constituída por cerca de 80 por cento de saharauis e o resto eram europeus. Foi uma experiência que me enriqueceu muito. Conheci uma cultura diferente e personagens que eram como que lendários. Não há muito tempo, tinha sido estreado o filme 'Lawrence da Arábia' e, de repente, vi-me em cima de um camelo com aquela gente... não que eu me sentisse como ele, mas quase.

Em que zona do território saharaui esteve aquartelado?

No norte, numa zona da qual fui responsável muito tempo, com uma extensão de 28.000 quilómetros quadrados, nove vezes a superfície das Ilhas Baleares, e que fazia fronteira com Marrocos, Argélia e Mauritânia. O ponto central dessa zona era uma cidade chamada Mahbes, que significa ´mar interior´. É um lugar em que desembocam uma série de rios em busca do mar e não o encontram. Está a quase 800 quilómetros de El Aaiún, que se situa na costa. Havia um forte de onde saíam patrulhas. Estive dois anos com patrulhas mecanizadas e outros dois em camelo.

Qual era a sua missão?

A missão era a de dar segurança à província, que era então uma mais província de Espanha, e recolher informação.

Que tipo de informação?

Um ano antes, tinha terminado a guerra entre Marrocos e a Argélia pela ocupação de Tindouf por parte de Marrocos. Na atualidade, em Tindouf, que é argelino, é onde estão os refugiados saharauis. Na altura, havia muito pouco tempo que Marrocos se tinha retirado de Tindouf e o conflito continuava ainda muito vivo. As hostilidades, entre aspas, ainda continuam, só há um cessar-fogo. Na verdade, a fronteira entre Marrocos e Argélia, que tem milhares de quilómetros, permanece fechada após as atividades de guerra em 1964. Na área onde eu estava, havia muitas atividades de tráfico de armas e tratava-se de dar segurança.

O aquartelamento colonial espanhol de Mahbes, em 1974,
onde o então jovem tenente Tòfol Fuster prestou
serviço militar de 1965 a 1969

Como faziam para garantir essa segurança?

Fazíamos patrulhas com veículos mecanizados ou, em zonas mais inacessíveis para as viaturas, fazíamo-lo com camelos. A informação que se recolhia era transmitida a El Aaiún, onde estavam os comandos do Exército que depois tomavam as decisões.

Como era o dia a dia no Sahara espanhol?

Bom…não havia propriamente um dia a dia porque havia guarnições grandes em diferentes pontos. Eu vivia no meio do campo, de um sítio para outro com os animais ou os veículos. Dormíamos um dia aqui e outro acolá. A vida que levávamos não era nada regrada.

Teve muitos contactos com os civis saharauis?

O contato era muito fácil porque o único europeu que havia era o chefe da patrulha. O resto eram saharauis, e a gente que nós encontrávamos pelo campo era das mesmas tribos e famílias. Eram parentes ou conhecidos. Estávamos muito integrados, e o europeu que não se integrava tinha que ir-se embora. Convivias com eles 24 horas por dia. Ou aceitavas a sua forma de vida, comida e costumes ou… As patrulhas a camelo duravam vários meses, um tempo em que permanecias fora do forte. Então tinhas que viver a sua própria vida, comendo e bebendo como eles. Era uma vida muito diferente da que tínhamos na guarnição.

A unidade militar estava muito profissionalizada ou os meios eram escassos?

A unidade designava-se ´Agrupación de tropas nómadas´ e era copiada das forças ´mehadistas´ francesas. Os franceses são os grandes conhecedores do deserto porque tinham tropas em Marrocos e, sobretudo, na Argélia.

Notaram hostilidade em relação ao exército espanhol? Encaravam-no como forças de ocupação?

Enquanto eu ali estive, não, muito pelo contrário. As hostilidades começaram em 1973, quando se criou a Frente Polisario, em parte integrada por soldados nómadas, que se dedicou a fustigar as forças espanholas. De facto, entre 1973 e 1976, ano em que Espanha se retirou, contabilizaram-se 28 atos hostis contra instalações militares e outros quinze ataques contra os interesses económicos espanhóis, basicamente as frotas pesqueiras. Num desses ataques nómadas foi ferido e sequestrado um jovem de s´Arracó.

E o que se passou depois?

Estes ataques da Polisario, que era gente muito jovem, deram aso a uma teoria, mais ou menos oficiosa, de que as hostilidades eram impulsionadas pelo governo. Eu achava que não tinha pés nem cabeça. As hostilidades eram reais, mas seguramente faziam-no devido à política de abandono por parte do governo espanhol. Em 1966 estive numa concentração em El Aaiún, onde Carrero Blanco e López Bravo prometeram aos saharauis que nunca seriam entregues ao seu inimigo secular, Marrocos; que Espanha o que fazia era preparar a província para que fosse capaz de se autogerir.
Obviamente, a história demonstra que não cumpriram…
Segundo a minha teoria, após a morte de Franco e durante o governo de Arias Navarro, o lobby económico marroquino em Espanha, que era muito poderoso, fez valer a sua influência para conseguir que a província espanhola fosse entregue a Marrocos. Estávamos no ano de 1976.

Viveu esses acontecimentos já à distância…O que pensou ao conhecer os acontecimentos?
Era como que um gosto ruim. Marrocos ocupou imediatamente o Sahara. Fugiram 70.000 saharauis para os territórios de Tindouf, que está a 800 quilómetros de deserto. Bombardearam com napalm, mulheres, crianças e velhos. Foi horrível, e aqui olhavam para outo lado. Recomendaria verem o documentário ´Hijos de las nubes´, que explica todo o processo. O que mais me impressionou após tê-lo visto é o nulo papel que atualmente Espanha desempenha ante esta situação. É um tema controlado por França, que reconhece que só defende o seu aliado marroquino, com grande cinismo. E já são 170.000 os indivíduos que antes eram espanhóis e que agora vivem abandonados num território assustador, onde só existem pedras, vivendo da caridade mundial.

Confia, porém, na realização do referendo pela independência do Sahara…?

O referendo não se fez e, segundo a minha teoria, nunca de fará. Marrocos sempre o adiou porque seria muito difícil que pudessem ganhar os pro-marroquinos.

Nesse caso, qual lhe parece o papel de la ONU?

A ONU está mediatizada tremendamente pela França, que integra o Conselho de Segurança de forma permanente. França obstaculiza todas as iniciativas. O problema do referendo era determinar quem votava… Mas quando as listas foram concluídas, Marrocos decidiu que não se fazia, através de artifícios e escusas legais. As forças das Nações Unidas encarregam-se de controlar o grande muro construído por Marrocos com ajuda norte-americana e francesa, e que tem milhares de quilómetros, mas não protegem os direitos humanos.

Como vê o futuro da região?

Apesar de tudo, quero continuar a ser otimista. Tenho muitos amigos saharauis que vivem nos acampamentos e… quero ser otimista. Existe o exemplo de Timor Leste, que foi descolonizado por Portugal e ocupado pela Indonésia. Num determinado momento, Portugal reconheceu que não tinha feito as coisas bem e lutou de forma honesta para que os timorenses dissessem o que queriam quanto ao seu futuro. Hoje é um país independente.

Acredita que Espanha possa seguir o exemplo de Portugal?

Creio que o lobby marroquino que conseguiu o abandono do Sahara por parte da Espanha continua a deter grande poder. Espanha mantem-se calada porque, em geral, os saharauis já estão abandonados. Todos os governos, tanto de direitas como de esquerdas, lavaram as mãos.

Regressou ao Sahara?

Não, e olhe que viajei por todos os países árabes do Mediterrâneo para conhecer mais a sua cultura. Fui convidado muitas vezes mas não tenho coragem de ir. Odiaria vê-los abandonados em Tindouf. Não obstante, mantenho o contato com eles.

Mantém a esperança?

Eles só vivem de duas coisas: a esperança e a caridade internacional, parte dela graças à solidariedade dos maiorquinos.

Fonte: diariodemallorca.es – entrevista de Joan Frau Inca

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