segunda-feira, 15 de abril de 2013

Espanha anuiu em segredo com Marrocos sobre a “Marcha Verde”

Juan Carlos queria que Franco "não desaparecesse de cena"
antes que o assunto do Sahara "ficasse resolvido".
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O agonizante regime de Franco, com Juan Carlos à cabeça, acedeu à estratégia de Rabat para ocupar o Sahara a troco de uma "saída elegante". O ainda príncipe quis desvincular-se das negociações pelas suas"consequências negativas". Artigo do diário PÚBLICO.es com base nos Kissinger Cables...

"Espanha está comprometida com a autodeterminação do Sahara". A declaração de intenções é de agosto de 1973. Mas então, o já esgotado regime de Franco, desistia da colónia. A Frente Polisario tinha iniciado a sua guerra de guerrilhas e a administração franquista tentava passar a sua responsabilidade para a ONU, de forma a abandonar aquilo que se tinha convertido num problema e para que, simultaneamente, a sua imagem não fosse demasiado atingida ante as ambições territoriais de outros países.

O que se passou durante os dois anos seguintes? Desde as declarações de Laureano López Rodó, o então ministro de Negócios Estrangeiros espanhol, até que Rabat assumisse a ocupação, sucederam-se milhares de conversações para negociar a sorte do povo saharaui. Os Telegramas de Kissinger  (Kissinger Cables) recompilados pela Wikileaks mostram a enorme atividade diplomática entre os países interessados em tomar conta de uma parte do bolo.

Os embaixadores norte-americanos detalharam as intenções de uns e outros, enquanto Espanha se agitava ante o ocaso da ditadura e o início da Transição. A Marcha Verde de novembro de 1975 promoveu e impôs Marrocos como novo proprietário, ainda que, durante meses, o Sahara espanhol fosse uma questão que preenchesse os relatórios dos funcionários norte-americanos em Rabat e Madrid.

O rei Hassan II tomou a decisão de enviar 350.000 civis marroquinos e 20.000 soldados ao receber a “paulada” da decisão de Haya. Em 1974, Espanha anunciou que não tardaria em realizar um referendo entre a população saharaui sobre a sua independência. O reino alauita, que sabia que tinha muito a perder com o plebiscito, apelou ao Tribunal Internacional de Justiça. O principal órgão judicial das Nações Unidas sentenciou, a 16 de outubro de 1975, que ainda que existissem vínculos jurídicos entre Marrocos e o território do Sahara Ocidental, estes não estabeleciam nenhum vínculo de soberania. Hassan II entendeu-o como lhe conveio. "Não nos resta outro remédio que recuperar o nosso Sahara", anunciou.

Conversações secretas

Da consulta popular sobre a autonomia dos saharauis nada mais se soube. Até hoje. Enquanto a administração franquista continuava a defender em público o direito de autodeterminação reconhecido pelas Nações Unidas, mandava um representante para iniciar as conversações secretas com Rabat. A estratégia marroquina para iniciar a sua conquista da região tinha começado. Espanha tinha a perder, mas nada mais longe da realidade. O regime não só conhecia os planos marroquinos, como os acordou com ele. Um telegrama enviado a partir da embaixada dos EUA em Marrocos a 23 de outubro deixa às claras os termos do pacto que alcançaram Hassan II e o enviado espanhol José Solis, ministro do Movimiento Nacional.
 
Marcha Verde: uma enorme encenação

Rabat e Madrid pretendiam utilizar a ONU para organizar um plebiscito "controlado"

O documento, dirigido ao Departamento de Estado de Henry Kissinger, resume uma conversa de Hassan II com os representantes norte-americanos em que se detalha a reunião. O monarca mostrou-se otimista já que "três quartas partes do problema tinham ficado resolvidas após o acordo alcançado com Solis". O pacto estabeleceu que a Marcha Verde, como grande ideia do rei alauita, iria em frente. "O conceito é meu. A organização é minha. Vou dar ordem de cruzar a fronteira. Só essa gente o pode cancelar e se o fizerem pode ser que eu também recolha as minhas malas e me mude para a minha casa de Madrid", avisou el monarca.

Como contrapartida, Marrocos e Espanha ficaram em buscar para o regime uma saída "elegante" para o Sahara, que lhe permitisse "guardar as aparências". A ideia consistia em utilizar as Nações Unidas para legitimar a ocupação marroquina através de um referendo "controlado". Para isso contariam com a ajuda da Mauritânia e, esperavam, a dos EUA. As conversações seguintes serviriam, segundo o telegrama, para trabalhar e definir esta fórmula. Mesmo assim, Solis aproveitou o encontro para anunciar que Espanha renunciava a um Sahara independente e, além disso, e para tranquilidade de Washington, deixaria de considerar a Argélia, aliada da União Soviética, como "parte interessada". 


A 2 de novembro de 1975 Juan Carlos
viajou ao Sahara: não os abandonaremos...!

Com Franco no seu leito de morte, foi o ainda príncipe Juan Carlos quem liderou as negociações. Ainda que, no início, o aspirante à coroa não quisesse saber nada do tema, segundo o relato do chefe de representação norte-americana em Madrid em setembro de 1975: "Juan Carlos não tem nenhuma intenção de se envolver neste problema, que só lhe poderá trazer consequências negativas". Wells Stabler explica no documento que o Bourbon negou-se a ser o interlocutor espanhol numa reunião em Nova Iorque proposta por Hassan II. Pretendia que o ditador "não desaparecesse de cena" antes que o assunto do Sahara ficasse resolvido.

O monarca espanhol assumiu a chefia do Estado a 31 de outubro de 1975 depois de se ter negado e fazê-lo uma semana antes. Nesse mesmo dia convocou um Conselho de Ministros e pôs mãos à obra. Os seus contactos com o seu homólogo marroquino foram constantes, como constatou o embaixador dos EUA em Rabat. Até então, segundo transmitia Stabler, "o Governo continuava vacilante" ante a falta de liderança e, sobretudo, face ao aumento das pressões marroquinas. Rabat enviou o primeiro grupo de "marchadores verdes" para o Sahara a 30 de outubro, e não a 6 de novembro, data oficial do início da Marcha Verde, para bloquear uma possível intervenção da Argélia contra a invasão.

Solís: "Seria uma tragédia que os soldados espanhóis se vissem envolvidos numa confrontação aberta”

Nessa altura "apenas uns poucos altos representantes espanhóis" participavam nas negociações, segundo informou desde Madrid o embaixador americano num dos seus telegramas. Entre eles já não estaria Pedro Cortina. O ministro de Negócios Estrangeiros, no cargo desde janeiro de 74 a dezembro de 1975, assegurou ao embaixador que a política espanhola original sobre o Sahara, a do referendo, não havia mudado. Noutro informe, Stabler comentou que, no meio da confusa situação, "o único claro é que [a opinião de Cortina] foi totalmente descartada".

A 25 de outubro, num encontro com Solis no seu regresso de Rabat, o ministro do Movimiento Nacional deu conta da sua reunião com Hassan II, uma reunião que qualificou de "realista, positiva, dura e frutífera". No documento, Stabler destacou que a maior preocupação de Espanha era, acima de tudo, evitar entrar numa guerra colonial com Marrocos: "Seria uma tragédia que os soldados espanhóis no Sahara se vissem envolvidos numa confrontação aberta". O homem de Franco também deixou claro que, por nada do mundo, o regime queria perturbar as suas relações com Rabat. "Espanha deseja sair do Sahara [...] Solis disse que está a favor de um acordo pelo qual a região se converta numa província autónoma de Marrocos". Quatro meses depois isso tornou-se realidade.
 
Hassan II e o rei Juan Carlos

A 2 de novembro de 1975 Juan Carlos viajou ao Sahara para, em teoria, dar o seu apoio às tropas ali estacionadas. Marrocos deu por cumpridos os seus objetivos e a 9 desse mesmo mês retirou a Marcha Verde. Durante todos esses dias nenhum legionário ou soldado espanhol moveu um dedo. A 14, Espanha firmava os Acordos de Madrid e era constituída uma administração tripartida junto com Marrocos e com a Mauritânia. Durou até 26 de fevereiro do ano seguinte, quando Espanha finalmente abandonou os saharauis, que passaram da ocupação espanhola para o domínio militar marroquino.


Fonte: PUBLICO.es

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