Luísa Teotónio Pereira | 21 Mar 21 - jornal online 7Margens
Sou a mãe do preso político saraui Mohamed Lamin Haddi, do grupo de Gdeim Izik, condenado a 25 anos de prisão, que está na cadeia marroquina de Tiflet. Está em greve de fome há 57 dias. Mais, faz hoje 15 dias que está em lugar desconhecido. Sem telefone, nem visitas, nada. Cheguei à prisão e negaram-me a visita. (…)
Desconhecemos em que estado se encontra e nem sequer sabemos onde está. (…) Que nos informem onde se encontra, como está de saúde, se está vivo ou não, qual é a sua situação. Também peço a sua libertação, junto com a de todos os presos políticos sarauís, todos em prisões marroquinas e condenados injustamente. Exigimos a sua transferência para o seu país, o Sahara Ocidental. Solicitamos que fique mais perto da sua família, porque devido à minha idade e à minha situação já não consigo viajar para o visitar. (…)
Munina Haddi
El Aaiún ocupado, 18 de março de 2021
Nas condições de Haddi, estão muitos outros presos políticos sarauís, condenados através de processos ilegais e injustos, sem possibilidades de defesa nem de monitorização internacional, baseados em supostas confissões obtidas sob tortura, e depois encarcerados em prisões a milhares de quilómetros de distância das suas casas, num outro país – Marrocos, a potência ocupante do Sahara Ocidental. Haddi protesta contra os maus tratos a que tem sido sujeito: três anos de isolamento, falta de alimentação adequada, ausência de luz na cela e negação de assistência médica. Situação semelhante à dos restantes companheiros, todos alvo também de frequentes ataques por parte de presos de delito comum.
As violações dos direitos humanos têm recrudescido nos últimos meses, dirigidas em particular a jovens, mulheres e ativistas pelos direitos humanos: raptos e assassinatos ou prisão e acusações falsas, normalmente ligadas a posse de droga, ofensas sexuais ou desrespeito pelas regras sanitárias, que dão lugar a tortura, violações e a meses ou anos de encarceramento; cercos a casas de famílias nas cidades sob ocupação, impedindo as pessoas de sair e outras de entrar, nem que seja para uma visita; intimidações constantes, incluindo junto de empregadores, para que não deem trabalho a quem as autoridades marroquinas sinalizam.
Em novembro de 2020, a guerra recomeçou no Sahara Ocidental: Marrocos violou o acordo de cessar-fogo assinado em 1991 entre as partes, a Frente Polisário relançou as operações militares contra o ocupante, num contexto de exasperante vazio da ação diplomática que deveria ser liderada pela ONU. Efetivamente, há quase dois anos que o Secretário-geral António Guterres não consegue nomear o seu Enviado Pessoal que teria como missão relançar o processo negocial, levando assim, objetivamente, a um favorecimento da política colonial de Rabat. Esta situação está em grande parte ligada ao facto de Marrocos e a França, sua protetora principal e membro do Conselho de Segurança, terem na prática minado a atividade dos anteriores Enviados Pessoais, em particular o último, o ex-Presidente alemão Horst Köhler, que acabou por se demitir, quando parecia estar a conseguir alguns resultados.
Acampamentos de refugiados saharauis, na região de Tindouf,
no extremo sudoeste do território da Argélia
Saara Ocidental
“António Guterres reconheceu finalmente os confrontos militares em curso entre os exércitos sarauí e marroquino.” Gravura: Mapa do conflito Saara Ocidental / R7 Notícias
A paralisação da ação diplomática facilitou também a proclamação, por parte de Trump, a 10 de dezembro, do reconhecimento norte-americano da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental. Até agora, foi o único país a fazê-lo e é claro que isso constitui uma violação do Direito Internacional. Perante os muitos protestos e apelos recebidos de várias partes do mundo, incluindo 27 senadores americanos (13 do Partido Democrata, 13 do Partido Republicano e um independente), ainda não se sabe o que vai a Administração Biden fazer quanto a este dossier.
Marrocos nega o recomeço do conflito militar, porque a sua estratégia assenta na propaganda do “desenvolvimento” das “províncias do sul” às quais procura atrair investidores estrangeiros e países em dificuldades ou cúmplices que se aprestam a abrir “consulados” na capital do Sahara ocupado, El Aiun, e em Dakla, cidade portuária em vias de expansão. É assim que, entre outros, a Guiné-Bissau e S. Tomé e Príncipe abriram consulados num território onde não têm quaisquer interesses económicos nem vivem nacionais desses dois países…
Numa recente reunião (9 de março) do Conselho de Paz e Segurança da União Africana, ao nível de Chefes de Estado e de Governo, sobre o Sahara Ocidental, foi decidido, entre outras medidas, “solicitar ao Secretário-geral da ONU que peça ao Conselheiro jurídico das Nações Unidas um parecer jurídico sobre a abertura de consulados no território não-autónomo do Sahara Ocidental.” No seu relatório semestral sobre a questão, divulgado a 15 de março, António Guterres reconheceu finalmente os confrontos militares em curso entre os exércitos sarauí e marroquino. O mesmo tinham feito, desde o início do ano, algumas multinacionais de segurança, que passaram a aconselhar os seus clientes a redobrar de cautelas quanto a investimentos no território.
A questão do Sahara Ocidental é fundamentalmente semelhante à de Timor-Leste. Trata-se de um caso de descolonização ainda pendente, o último em África. Por isso fará sentido lembrar algumas palavras de D. Ximenes Belo, bispo timorense que com José Ramos-Horta ganhou em 1996 o Prémio Nobel da Paz. No seu discurso de aceitação declarou: “O mundo censura aqueles que pegam em armas para defender as suas causas (…) Mas quando um povo escolhe a via não-violenta é frequente ninguém o ouvir”. A um jornalista sueco que anos antes lhe tinha dito que a população sofria mais quando a pressão internacional aumentava, ele respondeu: “Sim, mas é necessário que haja ainda mais pressão”.[1]
Luísa Teotónio Pereira integra a Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental
[1] Citações extraídas da comunicação de Jean Pierre Catry, “Timor-Leste: a Igreja Católica perante a ocupação indonésia (1975-1999)”, ao Colóquio Internacional autodeterminação de Timor-Leste: resistência, diplomacia, solidariedade (15 e 16, 18 e 19 de março de 2021).
Sem comentários:
Enviar um comentário